por Álvaro André Zeini Cruz

Um bebê nasce e o pai consagra que o mundo irá ouvi-lo. Diz que ele será alguém grande, conta, anos mais tarde, Johnny Sims aos outros garotos, logo antes de saber que o pai partira do mundo sem ver a previsão se concretizar. Talvez até deixando um logro: o desejo dado como premonição.
Os anos correm, tal como a câmera, que percorre a fachada de um prédio como se esta fosse uma esteira industrial. Quando invade uma das janelas, encontra um escritório com mesas milimetricamente enfileiradas, ocupadas por assinaturas e carimbadas em coreografia de linha de produção. Os trabalhadores não são máquinas, porque não chegam a uma complexidade sistêmica; são engrenagens que, como diria Sartre, agem de má-fé, pois se prendem aos mecanismos do relógio à espera de um naco de um livre arbítrio controlado, aquilo que lhes é possível e permitido. O plano antecipa Se meu apartamento falasse, mas, diferente da cenografia do filme de Billy Wilder, em Vidor, não há teto, só o “chão de fábrica” preenchido por esses operários entre burocracias; as mesas abrindo precedente aos cubículos de Playtime, de Jacques Tati.
Se as ações sincronizadas introduzem esses homens como engrenagens, o tamanho e a disposição, revelados pelo plongéeradical, remetem a uma colônia, no sentido biológico. De cima, Vidor os vê, antes e a um só tempo, como roldanas e insetos, para, só então, movimentar a câmera num mergulho personificante, em que encontramos John Sims (James Murray).
É quando a multidão permitidamente se desordena nas saídas das fábricas que John conhece Mary (Eleanor Boardman), com quem logo se casa. Uma pequena vida se abre entre o companheirismo nos infortúnios e os desejos solitários. Enquanto a compreensiva Mary equilibra a dinâmica familiar entre concessões e panos quentes, John vive de uma esperança tola, intrínseca, instalada pelo pai, de que se destacará em meio à turba, de que será maior do que um inseto. É uma crença que aparece nos menores momentos, como na cena na praia, em que John insiste em tocar cítara até quando acompanha os filhos a um banheiro improvisado, como se não pudesse indispor o mundo desse seu suposto talento por um instante sequer. Mas o tal talento não existe, como observa um sujeito irritado — “num ouvido eu tenho areia… no outro, tenho você e essa sua cítara!”.
Quando algum talento consegue extrapolar a teia dessa mediocridade cotidiana, quase inescapável, o destino, imediatista, trata não só de anular as conquistas, mas também de arrancar-lhes algo do pouco que têm, impondo uma perda irreparável ao casal. Então, numa das sequências mais desconcertantes de A Turba, o homem que, segundo o pai, seria ouvido, implora silêncio à cidade para que não acordem o bebê. Em vão; além da janela, a vida corre como nunca, como sempre, sem brecha aos apelos paternos de um iludido. A criança não dorme; está morta.
Vidor usa um arranha-céu como trampolim a essa casa dos grandes vazios e das pequenas tragédias. Faz graça com um agridoce às vezes mais doce — como em Chaplin e Harold Lloyd —, às vezes mais amargo, como em Buster Keaton. Filma o melodrama em closes com a contundência, mas sem o peso formal de Griffith; são closes que não escorrem, que preferem o naturalismo dos olhos sutilmente marejados sob o blur da lente. Olhos que engolem o choro, mas mantém umidade o bastante para que a vida continue embaçada. Para que, assim, se possa seguir diante e adiante, como corpos-espectadores novamente organizados como se trabalhassem.