A Substância

por Euller Felix

O horror corporal é um dos mais interessantes subgêneros do cinema de horror. Consegue traduzir diversas histórias e sentimentos nos mais diferentes horrores da carne e da transformação corporal. As histórias podem ir desde um cientista que faz experimentos de teletransporte e acaba se misturando com uma mosca a uma discussão sobre crescimento e amadurecimento. Parece que há pouco ou nenhum limite quando se trata do horror corporal (ou body horror para quem gosta de usar o termo em inglês); tudo pode ser usado e o sucesso ou o fracasso depende da criatividade e da competência de quem decide se aventurar a contar uma história deste subgênero.

Por ser um filme que se insere no gênero de horror corporal, “A Substância” de Coralie Fargeat vem recebendo comparações com os filmes de David Cronenberg. Não sem razão, já que ele foi um dos responsáveis por obras que consolidaram o gênero na história do cinema; por causa disso, é muito difícil para um crítico ou cinéfilo assistir ao filme sem buscar referências nas obras de Cronenberg. Mas vamos ao filme, já que ele é muito mais do que uma mera referência ao cinema de horror corporal. 

 “A Substância” segue Elisabeth Sparkle (Demi Moore) que acaba demitida de um programa de televisão de ginástica que comandava. A sua demissão tem relação com a sua idade. Em um determinado momento, Elisabeth sofre um pequeno acidente de carro e no hospital descobre sobre a substância que promete te proporcionar a sua “melhor versão”. A melhor versão de Elisabeth é Sue (Margaret Qualley) que consegue seu programa de TV e uma vida bem mais divertida do que a de Elisabeth. Não é apenas uma versão melhor, é uma vida melhor. 

O que parece que não estava nos planos é que essa nova versão não tivesse a mesma maturidade que a “pior versão”. Isso vai acarretar no não cumprimento de regras simples, estabelecidas logo no início do experimento. O não cumprimento dessas regras acaba comprometendo a antiga (e velha) e a melhor (e nova versão). É interessante notar que desde o início há a fala de que mesmo que sejam duas versões, ainda são a mesma pessoa. Mas parece que, como a melhor versão é nova, ela possui todas as imaturidades que só são superadas com o tempo e com a experiência. 

Aliás, a experiência não é bem-vista no filme (e nem no nosso mundo, aliás) se tornar mais velho não é algo bom e te tira diversas oportunidades (de novo, no filme e no mundo). Há imagens no filme que mostram o quanto o decorrer do tempo degenera e é prejudicial. A estrela na calçada da fama me parece ser o mais significativo delas, está desde o início do filme até o final dele. A passagem de tempo mostrada através de uma câmera em cima da estrela, se degenerando e se destruindo “naturalmente”, representa que o tempo para aquela mulher está passando, e isso não pode ser admitido. 

O choque entre experiência contra maturidade e novo contra velho culmina em um final extremo e digno de um grande filme de horror corporal. É uma explosão das consequências das ações que vimos durante todo o filme. Esse conflito entre o novo contra o velho parece ser algo comum entre as pessoas que consomem a substância. Vemos que uma outra pessoa relata que está sendo “devorada” pela nova versão. Logo, dá a entender que estas versões melhores de uma mesma pessoa estão sempre buscando continuar vivendo sempre mais e mais, mesmo que isso signifique encurtar e envelhecer ainda mais a vida da matriz.

O “novo” tenta devorar o “velho”, a “melhor” devora a “pior” versão. Mesmo assim, por conta de sua vontade de viver aquela vida “melhor”, a matriz não consegue desistir da experiência. Afinal, elas são duas partes de uma mesma pessoa. Então, mesmo que a parte que se sente ultrapassada, e vivendo uma vida que não merece, que é representada como sua melhor versão, ela não consegue parar o experimento. Aquela sua outra parte, que vive a vida e não tem inseguranças (causadas pelos homens do mundo, pelas imagens de mulheres gigantes estampadas sem nenhuma imperfeição) não deixa que ela termine o experimento. Tem que continuar, precisa continuar. É como uma droga que, por ao menos 7 dias de felicidade, compensa uma vida inteira de sofrimento e morte.  

Vale também destacar a parte final do filme, que sem spoiler, é um deleite para todo e qualquer fã de cinema de horror e de horror corporal. São minutos de uma sequência inesquecível, que culmina com um desfecho simbólico. É, sem dúvida, um final memorável. Não gosto de “Revenge”, mesmo filme da diretora, mas “A Substância” é um grande filme, um dos melhores dos últimos anos. Ansioso por novos trabalhos da diretora, e espero que ela continue com filmes assim.