por Álvaro André Zeini Cruz

Embora não seja uma obrigatoriedade, coragem é um valor recorrentemente agregado ao arquétipo “Mãe” em seus desdobramentos cinematográficos. Isso posto, se me pedissem uma lista das maternidades mais destemidas da história do cinema, Mrs. Brisby, certamente, seria um nome a constar. Afinal, em minguados 82 minutos de duração, ela se lança contra um trator, parte numa jornada entre labirintos subterrâneos, escapa de uma gaiola dando o próprio sangue e usa o corpo para tentar impedir que o lar — a casa e os filhos dentro dela — afunde na lama. Não, Mrs. Brisby não é Sigourney Weaver encarando a Rainha-Mãe dos Alien, mas seu protagonismo materno é central para o reposicionamento do título brasileiro; do original The Secret of NIMH para A Ratinha Valente.
Brisby é essa mãe-coragem dos camundongos, que herda traços do tempo em que Don Bluth trabalhou para a Disney, mas transita por um mundo psicodelicamente sombrio, com cores elétricas relampeando entre chiaroscuros granulados ou porosos, um background atípico às animações do estúdio representado pelo camundongo mais famoso (salvo ousadias pontuais como Bernardo & Bianca, que contou com Bluth como diretor de animação). É verdade que Jonathan, o falecido marido da senhora Brisby, era um camundongo célebre, mas só na diegese, entre os ratos de rua que, como ele, ganharam inteligência humana após uma experiência de laboratório. Décadas antes de roedores serem tolerados em cozinhas parisienses da PIXAR, esses ratos conjugaram racionalidade e instinto ao se refugiarem no campo, longe dessa mesma humanidade que foi capaz de submetê-los à mutação, mas, ainda assim, sob alguma dependência do mundo dos homens; ou melhor, das coisas dos homens.
Instalados sob os espinhos de uma roseira, que se contorcem em cavernas sinistras, os ratos roubam quinquilharias e energia elétrica do fazendeiro, que, por sua vez, ameaça toda uma fauna clandestina com o rastelo acoplado ao trator. É essa rotina humana o que ameaça o lar da senhora Brisby, que busca ajuda dos ratos para deslocar essa casa “pré-fabricada”, sem expor a vida do filho acamado. Os ratos podem ajudá-la, pois, como comunidade pensante, reproduzem técnicas e processos civilizatórios, mas estão também cindidos: Jenner, o vilão ambicioso, planeja um golpe para tomar a liderança do grupo. Ele deseja seguir roubando dos humanos para assegurar outra condição civilizatória da humanidade — o fim do nomadismo, a fixação de um lar.
Estabelece-se um microcosmo contraditório entre lares e valores que friccionam aquilo que ora é movediço, ora é estanque. Mas a racionalidade deu a Nicodemus, o sábio chefe do bando, uma consciência moral: ao contrário do vilão, ele deseja deixar de roubar, “deixar de ser rato”. Propõe uma parcial negação da própria natureza em prol de uma humanização utópica, moralizada em harmonia com o mundo que ocupa (afastada, portanto, dos homens que transformaram os ratos em “monstros”), mas que retrocede ao nomadismo (talvez por entendê-lo como uma relação mais justa, menos exploratória). Jenner, por sua vez, quer manter-se sob esse castelo invertido, subterrâneo de luzes e espinhos que permite a esses ratos racionais roubar sub-repticiamente para manter um lar seguro e confortável. Protagonizada por homens, essa disputa política expõe as contradições de um pequeno capitalismo, dividido entre os que querem encontrar um sistema melhor e os que desejam uma estabilidade exploratória, compreendendo o roubo como subversão justa e subserviência cômoda. A crise é deflagrada pela chegada da senhora Brisby, essa mulher intrusa, cujo objetivo é mais urgente e pragmático: garantir aos filhos o teto que, ironicamente, será usado como arma mortal.
Entre figuras assustadoras (a coruja de olhos luminosos, o gato gordo e alucinado, o esquelético Nicodemus) e esse subterrâneo borrado entre abismos, matizes e tons (talvez venha daí meu gosto pelos túneis de Murakami), A Ratinha Valente me impressiona desde a infância, sobretudo por essa descida da heroína, cujo corpo se ilumina e apaga, aquece e esfria, satura e acinzenta conforme Bluth vai apresentando esse universo de cores atmosféricas e cavernosas, movido a traquitanas feitas das quinquilharias humanas (sendo o elevador-lampião a mais imaginativa). A arquitetura dessa cidade sob a terra ora lembra Metrópolis, ora Dalí, ora H. R. Ginger. O manto vermelho que recobre Mrs. Brisby muda a cada novo espaço explorado, mas o medalhão, da mesma cor, permanece inalterado. Se na cena da gaiola, o sangue surge como um fio contrastante entre forma e fundo acinzentados, é o medalhão que queima o mundo de cinzas do clímax, restaurando, num milagre materno, aquilo que homens e ratos ameaçaram. A casa se ergue e a paleta volta a se expandir. Mais do que isso: as cores não mais soam como auras eletrificadas, mas como conjunções orgânicas entra a mais natural das luzes e as matérias que formam o mundo. A mãe-coragem recupera o lar, o menor dos mundos, que continua um marcador melodramático; curiosamente, essa força restauradora consta no adjetivo instintivo do título em português, enquanto o desequilíbrio, a ameaça vem, de alguma forma, da razão implícita no Segredo do título original.