A Rampa

por Álvaro André Zeini Cruz

A rampa é um pouco tudo isso. A releitura de um medo arcaico. A arquitetura ainda teatral da sala de cinema: aqui, um pedaço de cenário; lá, uma insinuação do palco, um resto de bastidor, um fosso para a ausência de uma orquestra, um balcão ameaçador, uma cortina. A rampa é a linha de separação no cubo cenográfico que os fantasmas (cinzentos por não mais se banharem na luz) usariam para sair da tela e dirigir-se lentamente a mim como um bando de mendigos, exigindo minha piedade, rindo do meu incômodo. A rampa: os espectros do cinema, o espaço suspeito, propício ao temido rápido. — Serge Daney

A Rampa é o texto de abertura da coletânea homônima em que o crítico Serge Daney – que capitaneou a fase mais política da Cahiers du Cinéma – usa a estrutura arquitetônica como uma descida metafórica que se daria dos seres da tela aos seres na plateia. Mas meu retorno a esse texto de Daney deu-se graças a outra rampa; uma não cinematográfica, mas amplamente televisionada, mais precisamente no dia 1° de janeiro de 2023. Falo da rampa que, em 1960, deixou a imaginação de Oscar Niemeyer para concretizar-se como subida simbólica ao Poder Executivo; rampa que se pretendia democrática, mas que por 21 anos foi golpeada e, nos últimos 6, vítima de temerosas transações que cercaram de incertezas o último cerimonial da posse Presidencial.

É fato já conhecido (e bastante debatido) que a ruptura de Jair Bolsonaro com o rito da transição de Poder favoreceu uma flexibilização que o cerimonial soube converter em simbolismo. Isso se deu na coreografia in loco, que consagrou a fotografia-síntese desta nova lufada democrática, mas também na mise en scène quando pensamos para além da imagem estática; o plano como unidade espaço-temporal mínima da imagem em movimento. Nesse sentido, se a liturgia propõe a subida da rampa, é natural que o diretor de corte priorize (e assim fez) essa orientação, privilegiando a câmera frontal aos sujeitos e, consequentemente, ressaltando o movimento de transposição desse aclive. Para não gerar movimento relativo, não há travelling; a câmera em si não sobe (ou não a vemos subir), ela já venceu a rampa e aguarda, no polo oposto, o grupo que dá os primeiros passos, de mãos dadas. E se Rivette nos ensina a importância da angulação, aqui o ângulo reto não só sublinha a inclinação, como concatena o espaço e os personagens que, passo a passo, se destacam da multidão; esta, por sua vez, é posta em cena como único background possível (não é preciso céu; William Bonner já havia narrado que até as nuvens de Brasília estavam mais bonitas).

Então, um ex-metalúrgico inicia, pela terceira vez, a jornada rampa acima. Luiz Inácio Lula da Silva sobe acompanhado pela esposa, a socióloga Janja, pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (e sua esposa Lu Alckmin), mas, sobretudo, por Aline, Flávio, Francisco, Ivan, Jucimara, Murilo, Raoni e Wesley. Ou, uma catadora, um artesão, um estudante, um ativista, uma cozinheira, um professor, um cacique, um metalúrgico. Ou, crioulos, caboclos, sertanejos, sulinos, caipiras. A Bachiana Brasileira n° 2, conhecida como Trenzinho Caipira, conduz esse grupo que se destaca do fundo, das cabeças que flutuam tal qual no quadro Os Operários, de Tarsila; tal qual na capa do livro de Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro.

Se A Rampa de Daney retoma o fascínio (ou espanto) infantil diante das imagens cinematográficas graças à proximidade desse limiar arquitetônico imaginário, invisível, domesticadas, as imagens televisivas normalmente não têm tal apelo (porque preferem os mini-gozos contínuos, como pontua Maria Rita Kehl), exceto quando rompem um fluxo homogêneo (como a ladeira de delírios televisualizada nos últimos 4 anos). Nesse sentido, a subida da rampa pelo Povo Brasileiro produz essa ruptura ao contrapor-se às imagens da necropolítica bolsonarista (potencializadas em conluio com a pandemia) a partir não de uma, mas duas infâncias (cada qual a seu modo): ao subir de mãos dadas com Francisco e Raoni, Lula se cerca da infância como etapa carregada (como nenhuma outra) de futuro, e da infância do país, do passado que é presente naquele que relembra a origem que precede o que se data como origem oficial; naquele que é símbolo de existência e permanência pela resistência.

Resistência, portanto, é quem vem para alinhavar essa conjugação de passados e futuros coletivos ao passado pessoal recente, e, no meio da rampa, Lula passa a conduzir a cadelinha adotada como se trouxesse consigo a memória e a superação de sua prisão em Curitiba. Só vai entregá-la à Janja quando se vira ao povo, reconfigurando a mise en scène para o ritual da faixa e pontuando o plano da subida. A colocação do símbolo presidencial — que antes passa de mão em mão — é feita no contracampo, sob o contra-plongée em sua função mais simples e recorrente — engradecer, elevar. A faixa finalmente chega pelas mãos de Aline, mulher, negra, catadora de uma família de mulheres da mesma profissão; ou seja, é entregue pelas mãos de quem as usa para encontrar valor em meio aos resíduos. É posta como se recuperada em meios aos escombros, resultado de uma destruição deliberada, que voltaria a se materializar de forma contundente na mesma praça, uma semana depois, numa reação tardia à iminência da redemocratização.

Pois se a mise en scène da rampa reconduz o Povo Brasileiro à possibilidade de olhar do alto, buscando vislumbrar utopias e futuros, é também verdade que, em 8 de janeiro, a horda bolsonarista pareceu quicar pelas curvas arquitetônicas de Niemeyer como se a Praça dos Três Poderes fosse um enorme fliperama da devastação, como se precisassem destroçar a materialidade da rampa televisiva, materializar numa convergência simbólica os estragos do Executivo Destrutivo expurgado. Se Daney refere-se aos personagens cinematográficos como fantasmas, o terror televisionado foi protagonizado por zumbis-cameramans de si próprios, postos sob a estética da selfie instável e do discurso da dissonância cognitiva incapaz de nuance ou subtexto.

Ciente do poder simbólico das imagens, Lula decidiu, então, descer a rampa que havia subido com o Povo Brasileiro; e desceu-a com os representantes do Povo, com a classe política, após reunião com governadores e representantes dos demais Poderes. Registrada já sob uma mise en scène jornalística rendida ao acontecimento não antecipado, e protagonizada por engravatados sob luzes estouradas e câmeras na mão, essa descida da rampa é antítese estilística da cerimônia de posse. É nessa descida que Lula alerta – inclusive aos ali coniventes – que o horror não se confina à tela; é real, pode tocá-los, tocar-nos. Ao mesmo tempo, é a descida que produz a extensão consequente à subida: depois do Povo, há a política, porque a política existe para e pelo Povo. Lula faz seu A Rampa (bis).

Pode parecer desproposital – ou até sacrilégio – valer-me de Daney, um voraz crítico da televisão, para falar das imagens televisivas, jornalísticas, em contextos não cinematográficos. Mas se Daney diz que “o horror ante a indiferença […] tornou-se na televisão indiferença pura e simples diante do horror”, a subida na rampa é também acesso (as rampas sempre mais acessíveis do que as escadas) abrupto ao contra horror, à civilidade que promete interromper o fluxo das barbaridades. Não de uma vez, como demonstrou a violência reacionária, que produziu imagens opostas, mas que continuam sendo nossas, porque nos dizem respeito (e é papel das rampas interligar patamares, diferenças, contra-sensos; algumas com inclinações suaves, outras, mais bruscas). A Rampa de Daney, quem diria, pode aqui desembocar em Paulo Emilio, na recontextualização interna de sua fala – “A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser o outro”. Ou ainda nas palavras dele – um dos mais importantes críticos brasileiros – sobre Brasília: “Em Brasília tudo é fantasticamente real e ao mesmo tempo bastante imaginário. […] É incrível como chegou rápido o momento em que ver e ser brasileiro não é mais possível sem a ótica de Brasília”.

Lula, em suas imagens-símbolos, compreende Paulo Emilio. E compreende, se não Daney, ao menos a rampa; caminho de ascensão do medo à esperança, ou declive necessário para que não se esqueça o passado – longínquo ou quase presente – aos destroços mal-assombrados.