A Paixão de Cristo

por Álvaro André Zeini Cruz

Os quatro cavaleiros batem à porta da cabana isolada num pequeno Éden. Milhares de anos depois de Adão e Eva cometerem o pecado original e serem expulsos, outro casal reconstitui, entre a natureza, um paraíso particular para a instituição que intermedia a sociedade e o indivíduo. Pois, apesar de refilmar a cena da floresta estrelada por Bryce Dallas Howard, este novo Shyamalan não é A Vila, uma vez que a família substitui a comunidade como microcosmo da salvação. Tampouco estamos em Fim dos tempos; ainda que o vento farfalhe sobre as folhas, este movimento – que talvez seja dos menores possíveis ao olho da câmera – não é mais o acontecimento, mas uma anunciação: a sobrevivência independe da união; agora é uma questão de escolha.

Neste chalé digno dos superhosts do Airbnb, Eric (Jonathan Groff), Andrew (Ben Aldridge) e Wen (Kristen Cui) – filha adotiva, que tem na cicatriz uma marca de nascença e do possível abandono – são inesperadamente confinados. Por ironia, esta família é presa ao espaço doméstico que, sabemos, lhe é negado constantemente e de inúmeras formas; aqui, um lar de madeira robusta interrompida por janelas, sejam elas feitas dos vidros que aparam os gafanhotos (que não precisam ser gigantes como os de Frank Darabont) ou dos livros que erguem a tela-background do casal na maioria dos planos. Shyamalan, este contador de histórias, lembra que o mundo é feito delas, que, antes, batem, mas logo derrubam a porta, invadem. Sua cabana se solidifica como alegoria humana das forças e fraquezas, e do conflito entre essas duas coisas – ou seja, histórias.

Se essa arquitetura do aconchego logo se converte em fragilidade com o chalé exposto aos mistérios do mundo, o mundo em si será visto ou pela televisão ou pelos flashbacks de Andrew e Eric. A tela LED recoloca uma questão bíblica – é preciso ver para crer? –, enquanto a tela mental explicita as vistas que curam (mas guardam) chagas; a descrença na sociedade reelaborada na crença na família feita não pelo sangue, mas pelo amor que nasce das cicatrizes. Os cavaleiros do apocalipse carregam os grilhões de quem sabe que pede o indizível (e, em seu melhor papel, Dave Bautista é essa personificação): o sacrifício de uma parte daquela carne em troca da humanidade. No ínterim entre a dúvida e a crença, Shyamalan filma o porão de A Visita, o vento de Fim dos Tempos, a única casa de pé de A Vila, os heróis de Corpo Fechado. Um deles, no entanto, terá que fragmentar-se, soltar-se dessa carne que forma um só corpo. Um deles é coroado desde o início, enquanto o outro viverá para carregar as chagas e cicatrizes, a dor e o perdão. Se Verhoeven encontra Cristo no corpo livre (e milagroso) de uma mulher, o Cristo de Shyamalan vive no milagre desta família feita do mesmo sexo, feita de raças diferentes. M. Night Shyamalan faz transmutação ao som de Boogie Shoes e filma a Paixão numa cabana. Batem à porta é conto de Cinema como quase ninguém conta hoje em dia.