A Mulher na janela

por Álvaro André Zeini Cruz

Salto vertiginoso num breu salpicado por partículas. Estrelas? Flocos de neve? É cedo para que essa imagem se revele por completo. Mas o olho que se abre a seguir indica que se tratava de um sonho ou lembrança, uma imagem mental. Agora, no contracampo físico, uma sala se estende diante do olhar recém-desperto de Anna Fox (Amy Adams). No limiar desse cômodo, duas grandes janelas – olhos de uma casa – revelam pouco do exterior, pois a vista é obstaculizada e distorcida pelo amarelo translúcido das cortinas. Aliás, as cortinas (e suas cores) serão elementos mais impactantes do que as próprias janelas ao longo do filme; a dupla desta sequência inicial, por exemplo, é rapidamente abandonada pelo travelling lateral, que revela e explora uma outra casa dentro da primeira – uma casa de bonecas (casa, e não casinha, pois como se trata da réplica de um imóvel labiríntico, a cópia é grande o suficiente para que o diminutivo não caiba). Na casa principal, o espaço intrincado se desenrola na escada circular, que culmina num solar como aquele que se torna uma janela improvável em “O Fantasma do paraíso”, de Brian de Palma. Contudo, a arquitetura marcadamente hitchcockiana (aqui vista de baixo) pede que a imagem primordial anteceda a imagem maneirista, e James Stewart surge dependurado em “Janela Indiscreta” dentro da cena de “A Mulher na Janela”; e essa janela hitchcockiana será apenas uma entre as tantas internalizadas por esse espaço. 

A aparição da obra-prima de Hitchcock é rápida, mas vista de perto; mais importante é que tanto a proximidade quanto o movimento de câmera suspendem o real suporte e a moldura que encerra a cena. A imagem aparece como se fosse uma parede. Estaria numa televisão, num notebook? Não se sabe, e pouco importa, porque aqui as imagens não são mais meros objetos do olhar, e sim superfícies capturadas pelos sentidos (o olhar conduzindo aos demais), e que passam a compor o sujeito ao serem internalizadas, decodificadas e recodificadas pela mente. Assim, a moldura e o suporte se tornam irrelevantes, uma vez que a imagem é primordialmente um processo cerebral. No caso de Anna, logo fica claro que elas estão a mercê de uma mente traumatizada, e esse borrão de limites e preenchimentos internos impõe uma paradoxal limitação física, externa: Anna não consegue sair da casa habitada por ela e pelas imagens, que se soltam da televisão, do notebook, do celular. 

A casa, portanto, assegura o corpo presente, enquanto, dentro de si, se replica noutra, que é símbolo de um corpo ausente, cicatriz do trauma. Nesse sentido, se torna uma casa-mente, alicerçada num mise-en-abyme revestido pelo mosaico de imagens cujas bordas se invadem (como os pixels da imagem digital corrompida que aparece no filme). Essas invasões se reproduzem: o videografismo tosco de uma maçã, a sobreposição dos olhos de Hitchcock/Dalí, o personagem que escapa de uma tela diegética para roubar para si um background que não lhe cabe.  

A referência hitchcockiana permanece, mas com sinal oposto; na verdade, todo o início de “A Mulher na Janela” contrapõe o de “Janela Indiscreta”. No clássico, que traz questões cinematográficas como voyeurismo e escopofilia, a câmera antes percorria o espaço externo – a vizinhança-mural – para só depois se recolher ao apartamento que guarda o protagonista imobilizado. Num dos capítulos de “O Olhar e a Cena”, Ismail Xavier fala que o subtexto desta história revela um fotógrafo aventureiro que rejeita a ideia de casamento (com ninguém menos do que Grace Kelly!) por acreditar que este seria incongruente e limitador a sua vida de aventuras. Jeff (Stewart) só se convence do contrário quando seu par romântico se coloca em risco, mas, principalmente, assume a posição objeto do olhar voyeur e prótese da aventura.

Se a profissão do personagem de Stewart sintetizava a necessidade e o risco de se olhar o que está adiante, a de Anna, uma psicóloga, pressupõe o auxílio para que se veja o que há dentro. Ela inclusive evoca a profissão quando tenta interceder pela proteção de Ethan (Fred Hechinger), vizinho adolescente que ela acredita ser violentado pelo pai, Alistar (Gary Oldman). Anna, no entanto, tem a vista enviesada pela própria mente, que escamoteia a verdade sob uma fumaça interna, não mais diante dos olhos. Isso vai do ofício à posição de voyeur trapalhona (logo descoberta) – ela vê flashes de um casamento em crise e, depois, de um assassinato, mas o olhar titubeia e essas imagens desabam, pois cutucam o trauma, põem em risco o fetiche enquanto rede de segurança. Se para Stewart o caso bisbilhotado corroborava a tese anti-casamento inicial, aqui o crime é antiilusionista, pois aponta para a imagem traumática e, consequentemente, para o fato de que o arquivamento de todas as imagens está comprometido. A dicotomia “aventura e casamento” permanece, mas em sentido oposto; Anna se aventura fora do casamento e esse é o pecado que faz com que ela não mais se reconheça, disparando a fobia, o trauma, o confinamento (revelação de roteiro que oscila entre pragmatismo e preguiça). A moral hitchcockiana se mantém: uma vez desperdiçada a bênção do matrimônio (e da família), cabe à protagonista viver esse calvário onde a casa objetifica a mente, a culpa e a pena; por isso mesmo, é um imóvel frágil, aberto a invasores e ilusões, com paredes que encarceram apenas a protagonista (não mais acrofóbica ou claustrofóbica, mas agorafóbica).

Se no romance originário, dizem, as referências cinematográficas e a cinefilia da personagem são coisas explícitas, nesta transcriação fílmica, Joe Wright recupera imagens clássicas ao mesmo tempo que as dissolve. Pois não há mais sentido em emoldurá-las, delineá-las; são imagens de um cinema passado, que Wright olha com a típica consciência maneirista de quem chegou tarde tanto no que diz respeito ao classicismo, mas também ao próprio maneirismo. A presença de Julianne Moore, atriz de “Safe”, de Todd Haynes, e do “Psicose”, de Gus Van Sant é indício disso. Aqui, ela é assassinada quase como em “Dublê de corpo”, mas ressurge numa pista que evoca “Blow up” e “Twin Peaks” (ou seja, passeia-se entre o moderno, o maneirismo e a televisão). E se a violência gráfica sob cores saturadas (e sob a chuva) lembra o “Suspiria” de Argento, os travellings em serpentinata de De Palma já não fazem mais sentido; quando não desdobra reflexões ambíguas ou o vaivém da cadeira de balanço de Norman Bates, a câmera simplesmente se atira entre cômodos fechados por cortinas e corpos que se alinham como num corredor polonês. 

É o único movimento possível: num tempo de self-service das imagens que se acumulam (como diz Bergala), Wright crê que, por mais apreço que se tenha por elas, não há mais contornos a serem distorcidos. Assim, resta apenas o movimento de se lançar entre elas, vistas de vislumbre, arquivadas como flocos dispersos na mente. Nesse filme de imagens sem alicerces, o clássico mistério da casa da frente só é desvendado depois da queda, não mais para o lado do fora, mas para dentro (não à toa, é um filme de fosso e porão). A imagem-olho perde para a vertigem volátil da imagem-mente. Maneirismo do maneirismo. Maneirismo tardio.

Em cartaz na Netflix.