por Álvaro André Zeini Cruz
(contém spoilers)

Segunda passagem pela ilha Crocket, mesmo havendo nada nela de paradisíaca. Quer dizer, os habitantes de A Missa da meia-noite até miram o paraíso, mas transformam a cidadela, por si só desagradável, num inferno literal. Na série de Mike Flanagan, o demônio cumpre seu papel; causa assombro, ainda que democratize esse potencial como suas variantes humanas, cuja representação máxima é a inquisidora Bev (Samantha Sloyan, da escola Marcia Gay-Harden de fanáticas religiosas). Nada, no entanto, retoma tanto a etimologia do horror e a personificação do melodrama – essa costura bem engendrada que Flanagan propõe desde a A Maldição da mansão Hill – quanto o close humano e seu contracampo, conjugados na síntese imagética dos temas postos em jogo.
É o rosto de Erin Green (Kate Siegel) que alinhava todo o desenlace desta Missa macabra. Recostada na grama, ela encara uma noite em que as estrelas se impõem entre a fumaça, a volatilização da matéria que arde ao redor. Belo e sereno, esse rosto tem sua fotogenia imediatamente perturbada pelo pescoço rasgado; sangue e fibras musculares expõem a traqueia, espaço por onde corre o ar e a voz, a vida e a vibração. Soando não mais do corpo, mas do espírito, a voz over didatiza a conjunção das imagens – ser rosto e pontilhado, tudo e nada, energia e pó. Pois se o horror em sua etimologia (de tremor, arrepio) é retomado pela fragilidade do corpo – a imagem da garganta aberta –, essa conjunção kuleshoviana entre o rosto – a um só tempo belo e grotesco – e o céu de estrelas faz com que a experiência paralisante transcenda ao terror, que “expande a alma e desperta nossas faculdades ao mais alto grau da vida” (RADCLIFFE apud ZANINI, 2022). É justamente a compreensão que Erin tem ao final.
Nesse trânsito entre terror, horror e melodrama familiar, Flanagan tem dissecado o medo; aqui, o mais universal deles atravessa esta comunidade ilhada (uma bolha?) e conservadora. Dos corpos (rejuvenescidos) às ideias, a conservação surge como valor opositor por parte de quem teme a morte, uma vez que, para além da consciência da finitude, há ainda o temor de que a cinética do mundo apague continuamente os ínfimos decalques destes grãos que um dia o percorreram. É preciso, então, mumificar o mundo para que, no embalsamar das crenças, repliquem-se os gestos, os gostos, as visões. O conservadorismo, então, é mola ao retrocesso, azeitado por medos e ressentimentos. Nesse microcosmo político-religioso, cabe à mãe solteira (Erin) unir-se à médica homossexual Sarah (Annabeth Gish) e ao delegado muçulmano Hassan (Rahul Kohli) para, juntos, agirem como reis-magos que não mais presenteiam, mas exorcizam esse mutualismo contagioso entre conservadorismo e paranoia, o ódio que se alastra disfarçado de palavras como fé e bem.
O paradoxo humano é resumido por uma personagem: “Todos acreditamos no Céu […] mas lutamos desesperadamente por uns minutos a mais no final”. Quando encara o céu, sob essa epifania do terror que tange o sublime – a consciência de ser areia na praia, de ser pó no cosmos – Erin tem a jugular aberta, mas o rosto sereno. Não estamos mais no terreno do melodrama, tampouco do horror (apesar do pescoço dilacerado). É a tragédia que desponta dessa confrontação de que somos únicos – grandes, em close – e nada. Para Flanagan, a fé que salva é a aquela capaz de trazer serenidade a essa verdade implacável. Enquanto o coral de Nearer my God to thee míngua até sumir (na última palavra), o semblante de Erin tem a serenidade de quem olha as estrelas ouvindo, em si, David Bowie:
There’s a Starman waiting in the sky
He’d like to come and meet us
But he thinks he’d blow our minds
ZANINI, Claudio. Horror. 2019. Disponível em: http://www.insolitoficcional.uerj.br/h/horror/. Acesso em: 05 set. 2022.