por Álvaro André Zeini Cruz

“As luzes mudam a aparência de tudo…”
…diz o Sr. Fabelman (Paul Dano) na volta do cinema. O pai se refere aos piscas-piscas que contornam a vizinhança, mas o menino Spielberg… digo, o pequeno Sammy Fabelman (Gabriel LaBelle) está fascinado pela projeção dO Maior espetáculo da Terra, que ele reconstituirá, numa brincadeira luminosa, diante do semblante sombrio da Sra. Fabelman (Michelle Williams). Esse pacto pela luz, que restitui instantaneamente um centro ao olhar sempre longínquo da Mitzi, começa a se dissipar sob os faróis do carro da família, quando o facho transparece o tecido opaco, revelando o corpo da mãe, refletindo o desejo do “tio” (Seth Rogen); posto na moviola, essa luz de ataque se transforma numa revelação a la Blow-up. Desta forma, o destino da única família que não tem piscas ao redor da casa é atravessado por uma claridade que se manifesta de dentro para fora, desintegrando o lar numa pulverização gradual, uma câmera lenta daquela de Guerra dos Mundos. Resta, então, a mais concreta das evidências fotográficas, aquela que impregna sobre o papel e que não é volátil como a imagem em movimento — a fotografia que revela (e dói) na profundidade (de campo).
Autobiografia ficcionalizada, Os Fabelmans é a trama de um menino com a câmera e da tentativa de domar a luz vazada por portas e janelas, resquício de um horizonte interditado pelas paredes familiares (algo alertado pelo tio-avô). Logo a claustrofobia dessa luminosidade vai se tornando explícita, especialmente quando as imagens leitosas dos filmes de família se contrapõem ao sol escaldante do filme de praia, produção que permite Sammy/Spielberg extrapolar a esfera doméstica. Então, um paradoxo se estabelece: o ranço da melancolia cuja realidade embebe a imagem ou a plasticidade dos corpos remontados em narrativas sob o sol a pino? O conselho sobre como filmar horizontes – e, consequentemente, nasceres e por-dos-sois – é a lição final de um encontro entre “camboy” e cowboys; no plural porque Lynch é John Ford (e o classicismo, o western), mas permanece Lynch (e a modernidade, o sonho). Ou seja, neste duelo cujo desafio é encarar horizontes pintados (que antecedem a fotografia, portanto), há proposições de cavalgadas por diferentes cinemas. Vislumbres luminosos que vão do ordinário (a formatura, cuja fotografia conecta este filme ao anterior, West Side Story; o horizonte resplandecente em Louca Escapada, opaco em Munique; as peles plásticas em A.I., as superfícies em Minority Report) ao extraordinário (as naves de Contatos Imediatos e ET; a névoa cintilante em Guerra dos Mundos; a fada e os extraterrestres em A.I.), quando não entrelaçam essas duas coisas (como em Jogador Número Um, o Livro das imagens de Spielberg).

Se para Spielberg a luz é um elemento a ser domado (para que não cegue, nem revele demais), para Mikhaël Hers, é um elemento atmosférico implacável; tanto que seu Les passagers de la nuit (traduzido como Noites de Paris) é absolutamente solar. A incontornabilidade da luz começa pelo apartamento de Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), que, com janelas imensas, não só revela a arquitetura atípica (para a cidade) de prédios altos e modernos (mas que Rohmer e Brisseau filmaram tão bem), como também deixa a luz do sol entrar o tempo todo (e misteriosamente, já que o sol em si é uma ausência, está atrás desses prédios). Invasiva e incansável (mas com uma intensidade heterogênea), essa luz recai sobre refeições, conversas, cigarros, sobre o sexo matinal. Nesse sentido, os corpos que por ali trafegam – e que constituem uma família – parecem atuar como placas solares, que armazenam a energia diurna para brilharem à noite; como na cena da dança, em que Elisabeth e os filhos se abraçam aquecidos contra o azul-acinzentado da noite que cai sob uma cidade-luz que ainda não se acendeu.
Mas a luz é, sobretudo, vida, sobrevida e renascimento. Se a referência rohmeriana se explicita na cena em que Talulah (Noée Abita), Mathias (Quito Rayon Ritcher) e Judith (Megan Northan) assistem Noites de lua cheia, evidencia-se também o fato de que Talulah é uma releitura imagética de Louise (Pascale Ogier) (a montagem inclusive constrói a impressão de que um personagem de Rohmer fala tanto com Louise quanto com Talulah). Anos mais tarde, quando Mathias informa a morte de Ogier, o choque de Talulah se relaciona diretamente ao conflito dela como personagem, mas abre uma brecha: Ogier não existe, mas seu corpo continua sendo projetado, Noites de lua cheia continua em cartaz, e Talulah é o empréstimo (reelaborado) que Hers faz de Ogier e Rohmer. Quando, no alto do prédio, ela diz a Mathias que há “filmes que só gostamos um tempo depois”, ambos estão cercados pela cidade que, no entanto, é um mosaico de luzes desfocadas, vagalumes cheios de histórias possíveis, piscas-piscas para além dos de Natal. A ponta do baseado que eles dividem se acende contra um background muito mais luminoso do que aquele que parece querer engolir os cigarros e extinguir as luzes em Drive my car. Nesse Aos Nossos Amores às avessas – que se interessa mais pelos levantares do que pelos trancos e barrancos –, Elisabeth encerra narrando uma carta em que fala de “vislumbres” de uns aos outros, todos “passageiros da noite”, e dos sonhos “acolhedores e perenes que a luz do dia não podia preservar”. Sr. Fabelman tinha razão: “as luzes mudam a aparência de tudo…”. Elisabeth, no entanto, fala de outra luz, interna, como o filme guardado que matura como sonho ou ser ao longo dos anos.
Talulah tem razão: há filmes que só gostamos um tempo depois. Questão de luz. E de tempo.