por Álvaro André Zeini Cruz

O necessário é um vocabulário — descritivo, não prescritivo — de formas.
Susan Sontag. “Contra a interpretação”
No bar do camping, diante de uns tantos copos de cerveja (uns vazios, outros pela metade), Édouard (Édouard Sulpice) se diverte no karaokê. Quando termina sua “performance”, ele anuncia o “irmão” Chérif (Salif Cissé), que está com Héléna numa mesa próxima. Na verdade, Édouard e Chérif se conheceram dias antes, envolvidos por Félix (Eric Nantchouang) numa carona cheia de imprevistos e implicâncias. Mas esses dias de férias os fez como irmãos. Fez também com que Chérif se apaixonasse por Héléna, essa jovem mãe deixada pelo marido no meio da viagem. É ela quem convence Chérif a um dueto, levando-o para diante da tela do karaokê (no extrecampo) e, consequentemente, estabelecendo o quadro. É também quem escolhe a música (o barman e outros clientes riem): “Aline”, de Christophe. Mal as primeiras notas soam e o olhar de Chérif titubeia, espalhando sua timidez pelos arredores. Mas Héléna tem a firmeza de quem está prestes a cantar a música mais importante da vida.
J’avais dessiné sur le sable
Então, a luz azulada do televisor se intromete, recaindo sobre as peles como um rubor compartilhado. Chérif cruza as mãos nas costas e olha para Héléna. Não canta, sequer se arrisca; no máximo, contorce os lábios enquanto se divide entre observá-la e vislumbrar a tela. Ela, sim, canta; o corpo pairando leve no ritmo da melodia e contrapondo a firmeza com que segura o microfone nas mãos entrelaçadas. A princípio, Héléna quase não tira os olhos da tela (que, em cena, se resume a esse fiapo de luz sobre os rostos); o sorriso, no entanto, é evidentemente endereçado a Chérif, esse homem imenso, mas desconcertado como uma criança, que está poucos centímetros ao lado. Ao fundo, na pequena abertura entre os dois, um cliente valsa consigo mesmo.
Puis il a plu sur cette plage
Quando Héléna estende o microfone a Chérif, ele não tem outra saída senão cantar. Quer dizer, ele mais cantarola do que canta, o que é o bastante para que encare os próprios pés. Esse vacilo dos olhos (acanhados e apertados) interrompe a constância do rosto a um só tempo fascinado (por ela) e fascinante, porque é incapaz de dissimular o que está estampado. Essa incapacidade (ou a consciência dela) se transforma, no decorrer da música (e da voz de Héléna), em aceitação. Então, o sorriso de Chérif começa a se abrir mais seguro, como se imitasse o dela, desde o início largo, rasgado, tal qual os olhos, grandes, resplandecentes.
Et j’ai crié, crié “Aline!” pour qu’elle revienne
Ele disse que conhecia o refrão, então, ela estica e, desta vez, mantém o microfone. Chérif canta um pouco até que se desvencilha, empurrando carinhosamente o braço de Héléna. O sintoma dessa ação é imediato: aperta-se por inteiro, o corpo todo tímido e gigante. Héléna é menor na composição da imagem, mas, paradoxalmente, é maior, pois parece ter plena consciência da partilha daquele instante e do que quer a partir dele. Ela quer dilatar o dueto. Quiçá por toda uma vida.
Je me suis assis auprès de son âme
O verso que cita um encontro de almas é a deixa para que Chérif olhe mais demoradamente para Héléna. Ela retribui, mas se solta, passando o jogo dos olhares aos corpos. Inclina a cabeça em direção a Chérif, tentando diminuir a pequena distância entre eles. Ele responde ao buscar o microfone, como se quisesse equilibrar o dueto. A partir daí, os corpos se aproximam e envergam como se estivessem sob magnetismo; rostos e olhos se encontram e se recuperam, entremeados pelos desencontros em prol do horizonte em comum, que estabelece a harmonia – a letra da música. Esta, por sua vez, responde com o refrão, enquanto o azul da tela vagalumeia uma fotogenia fulgás (como deve ser), que ora cintila, ora restitui o viço dessas peles que buscam uma a outra.
Et j’ai crié, crié “Aline!”
O corte surge justo ao nome que intitula a canção. Revela Édouard, que dança com a caneca meio cheia. Uma panorâmica não só demarca a distância entre ele e o casal, como sugere que Édouard entende e admira a beleza daquele encontro. Não porque Édouard seja especial, mas porque adiante há algo que emana, que é inevitável. Nesse reenquadrar do movimento de câmera, a separação entre Chérif e Héléna se desfaz: os corpos agora se encontram, se encostam, cantam e dançam sem o resguardo da timidez, da insegurança, das diferenças entre eles. A despeito do que diz o refrão, sorriem e extravasam mesmo neste segundo plano, ainda mais aberto e mais sucinto do que o primeiro. Então, um corte abrupto interrompe o dueto, talvez porque o que deveria ser visto já estava posto na medida, na economia desses dois planos aparentemente simples, mas difíceis de descrever, impossíveis de interpretar.
Se uma das proposições da crítica é prolongar a obra de arte, há que se reconhecer quando o prolongamento já se anuncia insuficiente e frustrante diante do que é belo. Um belo vital – que aqui registra as nuances de um fenômeno borbulhante e implacável –, mas que também fulmina, pois impede qualquer prolongamento senão pela descrição. Quando voltamos à defesa de Susan Sontag pela necessidade de um vocabulário descritivo, nos esquecemos de casos como este, em que a descrição se impõe como única possibilidade de tentar minimamente fazer jus à obra. Sem conseguir.
Em cartaz no MUBI.