A Deusa Perdida

por Álvaro André Zeini Cruz

Em A Deusa Ferida, os pesquisadores Silvia Helena Simões Borelli e Gabriel Priolli propuseram um trocadilho ao título da novela A Deusa Vencida (da Excelsior e, depois, da Band) para referirem-se à TV Globo, ou melhor, a um momento bastante particular desta que segue ainda a principal emissora de televisão do país. O livro se debruça sobre o abalo de audiência sofrido pela emissora a partir e ao longo dos anos 1990. Uma crise que começa “contratada”, sem querer, pelo próprio canal, mais especificamente na conhecida recusa à produção de Pantanal, que, com estrondoso sucesso, veio ao ar pela Manchete. O trauma Pantanal só teve cura recente, com a também bem-sucedida versão realizada pela Globo. No entanto, a novela de Benedito Ruy Barbosa e Jayme Monjardim foi o abre-alas para uma década de seguidos tremores, causados tanto pela Manchete (com Xica da Silva), quanto pelas novelas mexicanas (e por Chiquititas) do SBT, na época, consolidado na segunda posição. Retorno ao caso e ao título desse livro, indispensável aos estudos da telenovela brasileira, para propor um novo trocadilho à Globo atual: A Deusa Perdida. Passo os próximos parágrafos explicando o porquê. 

É público que, já há alguns anos, a Globo tem promovido um verdadeiro passaralho. Não sei se foi o primeiríssimo nome, mas a dispensa do primeiro escalão a me acender um sinal de alerta foi a de Malu Mader, uma das atrizes que, desde os anos 1980, compuseram a cara da emissora. Daí em diante, elenco e, mais tarde, autores e diretores foram sendo dispensados; entre os que tocaram no assunto, há a recorrência de términos sem muito sobreaviso ou tato. É verdade que há relatos mais diplomáticos, que tentam enxergar o lado cheio (e particular) do copo, mas alguns depoimentos mais diretos e retos — como os de Nívea Maria, Aguinaldo Silva, Boni e, mais recentemente, Antônio Fagundes — arranham a superfície cromada da emissora, que, de uma hora para outra, decidiu se desfazer do esquema importado diretamente da Hollywood clássica — o chamado star system. De uma hora para outra, não: desde o estabelecimento dos streamings e de uma decorrente uberização da economia criativa.

Não se pode perder de vista que, embora a concessão do canal seja pública, a Globo e a grande maioria das televisões brasileiras são empresas privadas, que, portanto, visam lucro; e para que se haja lucro, é preciso administrar custos. O que o modelo de negócio Netflix e companhia apresentou à Globo foi a possibilidade efetiva de economizar ao aposentar práticas da velha Hollywood e adotar as contratações por demanda, dispensando o expediente — outrora estratégico — de reservar os talentos para si. Obviamente, isso pode trazer — e já trouxe — alguns contratempos: com o vencimento de seu contrato, Camila Queiroz recusou-se a gravar as cenas finais de Verdades Secretas II, assim como Juliana Paes, com uma agenda apertada, optou por não voltar ao final de Renascer (logo depois, Murilo Benício declinou a participação — anunciada sem contrato assinado — em Mania de Você)Essas negativas não fecham as portas a todos os artistas (Queiroz, por exemplo, logo voltou ao ar em Amor Perfeito), mas podem atrapalhar possibilidades criativas na dramaturgia, matéria na qual a Globo é especialista e que priorizo neste artigo. 

Ao que tudo indica, essa nova possibilidade de acionar atores e atrizes quase que como por aplicativo afeta menos os jovens, que costumam ter mais personagens disponíveis (e, consequentemente, trânsito garantido), mas impacta diretamente na vida dos artistas mais velhos, cujos papeis são sabidamente mais escassos. Talvez para o público da geração Z — mais atento à Jade Piccon do que à Fernanda Montenegro — isso não importe tanto, mas para millennials(como eu) e antecessores, que cresceram diante da Plim-Plim, pode apresentar um relance, mesmo que subliminar, de negação da própria história. Não me parece à toa que a participação de Malu Mader em Renascer tenha causado tanto alvoroço: o público que via e vê a Globo sente falta da estrela, cuja imagem está entranhada na da própria emissora. Entre as dispensas, um caso me parece emblemático: o de Tarcísio Meira, irmão coragem que alicerça a História da telenovela e da Globo, demitido pouco antes de falecer. As devidas homenagens foram prestadas, claro, mas, na subjetividade de quem vê televisão, é possível que uma palavra tenha ecoado — ingratidão.

A demissão desses veteranos me parece central para pensar a Globo de agora, pois abre um paradoxo: a mesma Globo que refez Renascer (e tantas outras) e refará Vale Tudo para comemorar seus 60 anos, não conta mais com Antônio Fagundes em seu casting (aliás, Fagundes fez comentários contundentes no último Roda Viva). A mesma emissora que surfa a onda da comercialização da nostalgia — do Viva às novelas da Globoplay e remakes — nega sua história ao reduzi-la a reapresentações ou homenagens, que compõem um interessante caso de agenciamento calculado do passado. O reaparecimento de Xuxa e Angélica são exemplares, nesse sentido: enquanto a loura do táxi — que não tem um programa na Globo desde 2020 — ganhou um quadro no Fantástico para celebrar sua própria história, a da nave espacial está, até agora, em dois documentários na Globoplay. Em ambos os casos, a nostalgia acionada revive as apresentadoras infantis sem abrir brecha para que elas, ainda apresentadoras, se coloquem em jogo como possibilidades à programação atual. Xuxa e Angélica seguem como presenças esporádicas, piscadelas de outrora, contraditórias justamente porque visam lucro e repercussão a partir de uma consciência histórica dada em reapresentações, mas não em continuidade (e não trago isso como defesa da permanência dessas apresentadoras em específico, mas como estudo de caso para pensar essas negociações televisivas). A série Tributos segue a mesma linha, só que sem os “acertos de contas” programados parar repercutir: prestam homenagens a artistas que, televisivamente, sobrevivem nos arquivos dos videoteipes, mas têm poucas oportunidades de apresentarem suas imagens na tela da Globo atualmente. Enquanto isso, medalhões como Nathália Timberg, Othon Bastos e Irene Ravache refugiam-se no teatro, ao que consta, em sessões que dão um recado — o público quer vê-los.

Se até aqui, este texto parece sustentar a tese de que a origem da tal crise artística da Globo está na dispensa desses talentos históricos, é preciso deixar claro que esse etarismo diluído em homenagens é, me parece, um dos sintomas — talvez dos mais paradoxais — de uma crise criativa financiada, literalmente. Não, é muito improvável que a Globo esteja numa crise financeira (ainda que telespectadores da Jovem Pan ventilem e torçam por isso à direita da direita). Mas a questão não deixa de ser money, uma vez que a Globo, ao mesmo tempo em que perde seu (quase) monopólio (mas não a hegemonia), se deixa levar pelo canto do cisne do modelo de produção dos streamings, o que acarreta numa redução de custos, mas já afeta perceptivelmente o conhecido Padrão Globo de Qualidade. O caso da telenovela é o mais evidente e preocupante: não basta ter traquitanas tecnológicas lançando fumaça nos olhos, é preciso voltar a um desenho de produção seguro, mas não acomodado, que contemple as particularidades de cada obra, de cada dramaturgia. Mania de Você, por exemplo, precisa ser arejada com mais externas e locações, assim como deveria-se ter voltado à Bahia em Renascer. Esse era o diferencial da Globo; buscar histórias que, gradualmente, elevassem o patamar dessa teledramaturgia (para ver estúdio e imagem de 2ª unidade, tem série de sobra e no demand). O sucesso de Pantanal talvez se deva ao fato de que, ali, houve o que agora soa como uma exceção produtiva; provavelmente porque a Globo precisava provar algo a si própria. Mas se antes a telenovela se alternava entre padrão e ousadia, a uberização do audiovisual contemporâneo não deixa de ter um ranço fordista (praticamente convencionados em gêneros, os LUTs da Netflix talvez sejam das principais evidências dessa linha de produção). A anunciada dispensa de Lícia Manzo, novelista inquieta, cujo último projeto foi rejeitado depois de considerado complexo demais, é mais um episódio ilustrativo de que falta menos ousadia aos criativos do que à gestão. Assim como a Netflix fez com Pedaço de mim (de Ângela Chaves, outra ex-global), cuja trama dificilmente caberia na TV aberta, a Globoplay poderia cumprir esse papel de abrigar narrativas mais arriscadas; digo, para além da embalagem, não como Verdades Secretas II, que era mais publicidade de uma suposta ousadia do que dramaturgia (mas, aparentemente, houve gastos demais e retorno de menos com a plataforma, o que, na verdade, é o grande dilema atual dos streamings).

Em suma: a pasteurização criativa é inquestionável, mas a crise artística me parece um engodo, cortina de fumaça abanada para desviar a culpa e a atenção aos profissionais da arte — o “chão de fábrica” que é quem tem salvado as novelas dessas restrições produtivas — quando a bola está nas mãos dos engravatados. Vendo de fora (da Globo), mas de dentro dos estudos da telenovela, diria que crise é de gestão, é estratégica, está instalada naquilo que a publicidade — que financia o modelo de televisão brasileira e, passa agora, a financiar os streamings — chama de posicionamento. Diante de um cenário audiovisual cada vez mais voraz e fragmentado, é no mínimo curioso que a Globo — peça-chave na construção de um imaginário de modernidade brasileira — vá, de certa forma, na contracorrente dessa mesma modernidade que foi incapaz de abandonar as tradições. Hoje, se não as abandona por completo, a Globo parece manter apenas suas raízes pivotantes conectadas à própria história, ao passo que a axial, aparentemente, se nutre da Netflix e, cada vez mais, das dinâmicas das redes sociais. O ritmo solavancado da primeira fase de Mania de Você é resultado desse cenário, tonificado pela picotagem de uma produtora/emissora que mal pôs a novela no ar e já passou a desconfiar não só da própria aposta, mas do próprio tino. Contudo, a prova cabal desse desposicionamento não está na TV, mas na internet: falo da maneira como a emissora passou a se referir a si mesma nas redes sociais — e acho que deve ser estranho para entusiastas televisivos da minha geração e de antes verem a Vênus Platinada se apelidar de Glô.

Essa crise de posicionamento tem sido bem percebida, mas reduzida à mera crise artística, inclusive por ex-artistas da casa. A questão, me parece, não é que emissora “desaprendeu a fazer” (como li num artigo, dias atrás), mas não sabe mais ao certo “o que fazer”, principalmente sendo uma televisão generalista engolida entre disputas diversas e cada vez mais estilhaçadas. Entre indecisões e apostas ruins (Ana Clara é o único acerto do erro mais recente, esse reality-Frankenstein que lançaram), a Globo não desaprendeu, mas descuidou-se de um know-how construído ao longo de décadas. Claro que esse conjunto de hesitações se dá em contextos maiores, envolvendo o planejamento de uma emissora que tem uma imagem a zelar — e sabe o custo inapagável de ter sustentado uma ditadura. Uma imagem que, hoje, não escapa do contexto de polarizações externas (que a emissora continua a abastecer, basta ver algumas figuras da Globo News). Talvez seja oportuno voltar ao antigo slogan “Globo e você, tudo a ver”, perguntando-se quem é esse “você”, sujeito decodificador que precisará ser interpretado não mais como um público amplo, de (classe) A à E, mas como uma amálgama, em personas mais delineadas, “decodificadores ideais” sintetizados para que se recalibre as codificações e o posicionamento. No fundo, a pergunta é simples: se não dá mais para falar com todo mundo, com quem a Globo quer falar?

Trinta anos depois, A Deusa sarou suas feridas, mas agora é A Deusa Perdida, que segue planejando e produzindo bons produtos, mas perdeu seu tino de vanguarda, sua capacidade de propor antecipações afiadas. Hoje, mesmo na liderança, a Globo persegue uma telespectatorialidade utópica, embaçada entre reflexos e refrações de tantas telas (sua sorte, até agora, é que as produtoras e streamings descobriram que não é fácil fazer novela). Essa perseguição imediatista, acompanhada por uma espécie de “síndrome de impostor” empresarial (desconfia-se de todas as próprias apostas, sempre com extintores de incêndio a postos) pode fazer velhas cicatrizes coçarem até reabrirem em feridas. Não sejamos tão pessimistas: na pior das hipóteses, a Globo se rebaixará ao resto do mercado, quando, ao menos no que diz respeito à teledramaturgia, sempre esteve no topo, inclusive ao redor do mundo. Uma coisa é certa: tem sido cada vez mais difícil olhar para a Globo hoje e reconhecer a de antigamente. Ao que tudo indica, a Hollywood brasileira — como diz o título de outro livro, de Mauro Alencar — não será derrubada, mas, descuidada, pode abrir um vácuo que, me parece, será ocupado por ninguém. Enquanto isso, se nada mudar, a Globo seguirá rumo às outras, embarcada na uberização, seduzida pela Netflixização. A Deusa Perdida precisa de um GPS; de preferência, não da Google Maps.