por Álvaro André Zeini Cruz

Aula online. Cabeças emolduradas num mosaico, cujo centro é um retângulo vazio. É sentido a essa ausência imagética que a câmera plana até ser engolida pelo abismo enquadrado. Pois, supostamente, este é o tema a mover o filme — o que o vazio poderia fazer ao homem?
A psicologia de A Baleia é digna de uma hipótese levantada nos minutos iniciais de uma primeira sessão de terapia: a obesidade de Charlie é diretamente proporcional ao vazio que ele tenta saciar. Mas o vazio não é substantivo no filme de Darren Aronofsky, e sim adjetivo. A questão é que esse complemento caracteriza Charlie menos como sujeito ficcional único, singular, e mais no que diz respeito à própria condição de personagem.
Isso porque Charlie mal existe senão sob um acúmulo de circunstâncias clichês — o luto, a raiva da filha abandonada, a benevolência (quase obsessiva) da cunhada, a condenação do (suposto) missionário. É este último personagem quem melhor representa o olhar de Aronofsky sobre o corpo obeso: o olhar fetichista de quem vê o outro sob o julgo do abjeto, para crer em si como imagem melhor do que de fato é.
Assim como Thomas (Ty Simpkins), Aronofsky se ilude por essa psicologia burocrática para que possa ver Charlie da única maneira que lhe interessa: como um corpo obeso, a ser retratado pela perspectiva da saúde (o que me parece legítimo, ainda que esta seja uma entre as várias perspectivas possíveis de serem lançadas a este corpo). A questão é que, para além do corpo, o que se tem ali é um vistoso trabalho de caracterização, que coloca Brendan Fraser sob a ostentação técnica de uma maquiagem. E é por essa maquiagem — ostentada desde os paratextos fílmicos — que a câmera parece sentir um misto de fascínio (pelo trabalho) e nojo (pela materialidade).
Essa dicotomia transparece em dois momentos/movimentos: no primeiro, Aronofsky circunda Charlie, mas o travelling circular não basta. Ele decide, então, fazer um movimento helicoidal, cuja pretensão parece ser a de mostrar essa maquiagem como num pack shot publicitário, expondo vagarosamente o corpo talhado em látex, da calvície aos pés inchados. O segundo momento poderia ter sido deslocado do (tenebroso) clímax de Réquiem para um sonho: a câmera sobrevoa a pizza gordurenta, prestes a ser abocanhada por Charlie, mas ultrapassa a comida e o corpo para ver a cena na totalidade, para assistir de camarote esse corpo se lambuzar na compulsão alimentar. Assistir assume o duplo sentido: vê, mas também auxilia na continuidade da ação, uma vez que anseia/existe por ela.
Entre o vazio e o homem, só o que Aronofsky enxerga é esse corpo, enquadrado sem qualquer generosidade — ou mesmo sem qualquer justiça —, com a câmera posicionada como se aguardasse (sem nem se dar ao trabalho de se espreitar) uma implosão, um desmoronamento, um chafurdar em si. Afinal, são essas as imagens constantes do cinema de Aronofsky: o corpo em situação limítrofe, objeto de um olhar insaciável pela dor e pela morte.
Não temos, portanto, um cineasta da dúvida; pelo contrário, Aronofsky dirige certo de que não encontrará beleza na órbita de um corpo obeso. A contradição é que, para ele, alguma beleza (e não “a” beleza) há de ser a salvação, e, na impossibilidade de encontrá-la entre imagens, ela vem das palavras, da literatura; que, curiosamente, ele defenderá como uma possibilidade de “verdade” (com razão, já que não há verdade possível num filme que se faz e se deslumbra por enchimento e látex).
A Baleia soa como o mau irmão de outro filme de anos atrás — Direito de amar, de Tom Ford. Ali também havia um homem assolado por vazios, mas que redescobria lampejos de beleza ao longo de suas últimas horas. Ford força beleza nas imagens, talvez porque seja um cineasta-estilista. Aronofsky é um cineasta-legista, que começa a cutucar os corpos antes do tempo. Não faz um filme nem sobre um homem, nem sobre um vazio, porque ambos são sobrepostos por um corpo concebido para ser excessivo, composto sob um olhar sedento por excessos. Talvez, por isso, o melhor plano seja justamente o primeiro; aquele em que, entre a voz off e o vazio que magnetiza a câmera, vislumbra-se um homem, até que surja o título, preciso à maneira animalesca como Aronofsky encara essa existência: A Baleia.