por Álvaro André Zeini Cruz
Todo registro imagético parte de um processo, dirigido por uma ou mais pessoas (físicas ou jurídicas) que constituem uma autoria. A princípio, toda imagem tem um direito autoral inalienável àqueles que produziram seu registro: é o chamado direito moral, que garante uma vinculação vitalícia entre obra e autor(es). As fotografias de Cartier Bresson sempre serão de Cartier Bresson, assim como as de Walter Firmo sempre serão de Walter Firmo. Evandro Teixeira, Dorothea Lange, Adriano Machado, Gabriela Biló, idem; todos têm garantido o direito de que seus nomes estarão atrelados às imagens que fizeram.
Para além do direito moral, há ainda o direito patrimonial, que trata da exploração econômica de uma obra (no caso, aqui, estou reduzindo ao universo das imagens). Por exemplo: um fotojornalista a serviço de um veículo impresso tem o direito moral à imagem que produziu, mas os direitos patrimoniais costumam ser desse contratante, que pode, inclusive, negociar para que essa imagem seja reproduzida em outros veículos. Os dois últimos citados acima, Machado e Biló, trabalham, respectivamente, para a agência de notícias Reuters e para a Folha Press. Ambos cobriram a tentativa de golpe em 8 de janeiro e, por isso, foram vítimas de campanhas de desinformação articuladas por bolsonaristas, que — numa típica operação de ficcionalização delirante — tentaram transubstanciar o recorte/registro do real em farsa. Não colou; a fartura dos registros, inclusive realizados por integrantes da massa de manobra golpista, respalda o caráter factual desse evento. Testemunhas profissionais, Machado e Biló seguem com os direitos morais das fotografias que fizeram, assim como cada invasor que, porventura, usufruiu do caráter indicial da fotografia para reviver o gozo e se autoincriminar. O que quero tratar aqui não é desse direito inalienável, mas do outro — o patrimonial.
Trago todo esse preâmbulo para embasar a defesa de que os direitos patrimoniais das imagens de 8 de janeiro de 2023 sejam realocados e repartidos entre aqueles que estão pagando mais — com um valor que, inclusive, extrapola o monetário, mas que tem sido normalizado como moeda de troca em tempos de crise democrática. Nesta peça, advogo que o direito patrimonial das fotografias e vídeos das violências físicas e depredações seja segmentado em cotas, a serem atribuídas àqueles que pagam por elas com a própria democracia, a moeda que, ironicamente, lhes garante o poder para as mais tenebrosas barganhas. Defendo que a concessão patrimonial dessas imagens (e sons, tratando-se dos vídeos) passe aos 264 congressistas que assinaram a urgência por um projeto de anistia.
É o mínimo, uma vez que a intenção desses deputados é de se apropriarem dessas imagens para, mais uma vez, colocá-las no rodapé da História; mais um causo de um país conciliador e positivista (Ordem e Progresso; Pra frente, Brasil!). Citando um coronel das antigas, “é justo, é mais que justo, é justíssimo” que esses novos coronéis, institucionalizados pela democracia, tomem posse dos decalques digitais da Festa da Selma, para que possam, em breve, assistir (na polissemia da palavra) a novos eventos que expressam a “festividade” e “alegria” dos brasileiros.
É, de fato, incontornável a delicadeza dessa divisão: quem ficará com o que? A hipótese mais lógica é que as imagens mais violentas fiquem com os partidos mais truculentos. Cabe um exemplo: nessa perspectiva, a foto do policial derrubado do cavalo e cercado pela turba segue sob o direito moral do fotógrafo Sérgio Lima, mas o direito patrimonial da Agence France-Press deveria passar a deputados do PL, como Carlos Jordy, Bia Kicis e Alexandre Ramagem (que, ontem mesmo, beneficiou-se de um estratagema parlamentar votado na surdina). Contudo, há possibilidades menos óbvias, mais dialéticas: a mesma imagem tem em seu centro um cavalo robusto e intimidado, o que friccionaria bem com a adesão unanime do minúsculo NOVO.

Sérgio Lima / AFP
Nesse sentido, que imagens caberiam aos partidos que estão na base do governo, mas que têm integrantes que seguem no flerte fatal com o golpe? Que tipo de decalque do real estaria à altura desses congressistas de turno e contraturno, que se mantêm no poder seja na democracia, seja em detrimento dela? Fotografias mais simbólicas, como a de Gabriela Biló — o vidro estilhaçado emoldurando a tomada da rampa — talvez sejam mais propícias às assinaturas de partidos como o MDB e o União Brasil, que vivem entre as rachaduras (às vezes ajudando a emendá-las; outras, a partirem de vez). Por outro lado, há nesses partidos figuras como o estatístico Osmar Terra (MDB) e Kim Kataguiri (União Brasil), que não merecem tal complexidade. Barulhentos dessa categoria deveriam compartilhar a guarda das imagens de Dona Fátima, a vovozinha de Tubarão, que mostra os dentes como tal.

Mas não façamos todo o trabalho; deixemos que, da partilha interna, eles cuidem. Voltemos às imagens, como o conjunto de fotos de Adriano Machado, que mostram Flag Blocks na antessala do gabinete presidencial. Nelas, os partidos da base podem voltar à baila, desta vez não por um simbolismo de contraste, mas de afinidades casuísticas de deputados e deputadas que se mantém nas cercanias do poder, com um pé na atual canoa econômica e outro na antiga canoa dos costumes mais retrógrados.

Adriano Machado / Reuters
Seria digno se os partidos contemplados nesse leilão imagético presenteassem anistiadores de bastidores, que não puderam votar, mas são firmes à causa e seus trios elétricos: governadores como Ratinho Jr. (PSD), Romeu Zema (Novo), Jorginho Melo (PL) e Ronaldo Caiado (União Brasil) merecem seu naco dos direitos patrimoniais, para usarem as imagens como bem entenderem: emoldurando-as em gabinetes ou salões de jantares com o mercado, ou até mesmo em memes duvidosos (uma especialidade do de MG). Adepto a leilões e marteladas, o governador de São Paulo, naturalmente, ficaria com a cena do sujeito que, após estraçalhar móveis, marreta uma câmera de segurança do Planalto com um extintor de incêndio. No entanto, nenhuma imagem será mais tenebrosa do que a que o governo e coparticipantes da iniciativa privada conseguiram ontem, numa estação de metrô.
Entre as imagens do dia 8, talvez a mais concorrida seja aquela que sintetiza uma ética e uma estética, retomando o debate entre forma e conteúdo, um só corpo em retroalimentação. Me refiro ao homem cuja bandeira do Brasil roça nas nádegas, de cócoras sobre um gaveteiro, numa mise en scène por si só irônica: centralizado sobre esse “púlpito”, o sujeito se compõe como uma espécie de estátua viva em meio à sala devastada. Na incapacidade de defecar, ele age pela expertise do bolsonarismo: a simulação, o grotesco desde a performance. Balança a bunda e sai em êxtase do palco. A performática Carla Zambelli poderia arrematar esse tipo de imagem se não tivesse sido cassada, mas, por ser uma espécie de imagem-troféu, talvez caiba um sorteio entre os partidos que pautam anistia como se os interesses individuais fossem de interesse público. Uma outra opção é a guarda compartilhada: a imagem, em passe-partout e em moldura rococó, viajando semanalmente entre os gabinetes. Se der briga, que se faça em diárias. Justo mesmo seria imprimi-la em botons, a serem anexados às lapelas de cada deputado que assinou pela venda da democracia em troca de anistia. Sob o bumbum, viria escrito — “lembrancinha da Festa da Selma”.
A mais recente edição da revista Piauí trouxe uma capa com apelo didático, colocando anistiadores, como Tarcísio, Bolsonaro, Heleno e Braga Neto, ao lado de vilãs e vilões icônicos, como Malévola, Darth Vader, Odete Roitman, Cuca, Carminha e cia, numa associação por analogia. A intenção aqui é apelar ao contraste, associando as imagens factuais aos sujeitos que as representam. Ainda que sejam indivíduos imageticamente montados em performances políticas, são agentes antipolíticos, que, ao proporem anistia, atuam para que essas imagens sejam privatizadas e depois escanteadas, até que os principais interessados possam voltar ao jogo. Sem titubear, pagam o mais alto preço para que elas sejam, como de costume, deixadas para trás; algo que, a História ensina, dá merda (sem necessidade de simulação). Digno dos príncipes mais insonsos da Disney, Nikolas Ferreira não está na capa da Piauí, mas poderia; a caneta dele e de seus colegas assinam cheques em branco com a mesma truculência das estacas que, porte sorte, afundaram o capacete — ao invés da cabeça — de uma policial. A imagem é de autoria da profissional agredida, mas o direito patrimonial poderia ser designado e compartilhado aos 264 congressistas, cujas penas só atuam em motivo e circunstância da pena por si próprios.
A lista completa de deputados que votaram a favor da urgência na discussão da anistia pode ser conferida no Poder 360: https://www.poder360.com.br/poder-congresso/saiba-quem-sao-os-deputados-que-assinaram-a-urgencia-da-anistia/

Reprodução / Fonte: g1