A Outra Margem

Por Álvaro André Zeini Cruz

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Assim como as artérias oxigenam o corpo, mantendo-o vivente, as ruas são espaços transitórios, por onde circulam existências que, normalmente, habitam o meio das quadras. Entre quatro paredes – sejam elas dos lares ou bares –, pulsam os amores e latejam as dores. A rotina tem seu encanto ou não, mas é preciso penetrar e permanecer no seio desse espaço para que se chegue a tal compreensão. Jean (Pepa Quadrini), entretanto, mantém-se em movimento centrífugo por trás do volante da caminhonete. Dirige aparentemente sem rumo, excluso aos jovens que curtem a noite na calçada. Na verdade, à margem de qualquer espaço que possa destituí-lo do trânsito irrefreável e integrá-lo à pulsação variável dos demais organismos.

A cabine da camionete – espaço principal de A Outra Margem – torna-se uma espécie de cápsula, cuja o intuito é manter a integridade de um único ser – Jean. A cidade, corpo central, rodeado por vias, se dissipa em luzes eterizadas pela pouca profundidade de campo, e, em seguida, pela paisagem cada vez inóspita. A única presença para além da de Jean é, a princípio, a voz do locutor do rádio, que entremeia canções românticas pedidas ou dedicas aos corações solitários.

O programa de rádio intermedia o encontro entre Jean e Carol. Ela quer encontra-lo, embora a dedicatória que precede Four Your Babies, do Simple Red – a todos que realmente são apaixonados pela vida e que querem aproveitar o melhor que a vida tem a oferecer – contrarie involuntariamente esse desejo. Juntos na cabine, a incompletude das relações – até então sugerida – se potencializa: Carol, começa a viagem como voz off, cujo corpo é suprimido no extraquadro; quando invade a lente rigorosa da câmera, surge como mero borrão, que vela Jean, fazendo com que hajam ali dois corpos e, ao mesmo tempo, nenhum. A rigidez do quadro potencializa a margem primeira do cinema, aquela que delimita o que será presença e o que será ausência – a moldura do enquadramento –, e se desdobra espacialmente nos planos e contraplanos, na impossibilidade de um plano conjunto decente, ou em sobreenquadramentos como o proporcionado pelo retrovisor, que esquarteja as faces dos corpos já retaliados.

A câmera só remonta e agrega esses corpos quando, ao ar livre, eles se tocam num beijo. Desorientada, ela passa a circulá-los, curiosa, errática e orgânica, como se estivesse deslumbrada com o encontro e a dança que se estabelecem. Nathália Tereza poupa o momento mais vigoroso de sua mise en scène para esse raro instante de beleza e verdade, que filma à maneira de Brian De Palma nos encontros dos amantes em Dublê de Corpo e Trágica Obsessão.

Quando pede para que Jean não suma, a resignação de Carol parece antever a cena adiante; numa boate, ele assiste a apresentação de outra figura solitária. Juntos ali, somam dois. A permanência do plano no rosto enigmático da cantora é impregnada de sofrimento da voz, que, na letra de Guilherme Arantes, sofre por um súbito e insonhado amor. O prolongamento dos olhares em plano e contra-plano faz vir à tona a outra margem: o tempo. Rememora, nos planos finais, a languidez rítmica que paira por todo o filme, evidenciada agora pela insistência na angústia dos rostos mal iluminados. Se as linhas espaciais do quadro são vencidas para um átimo de beleza, o traço invisível do tempo é o que Nathália Tereza encontra. É dessa outra margem que ela filma o tempo da solidão.

PS.: considero ético informar que Nathália Tereza foi minha colega de graduação.