por Álvaro André Zeini Cruz
“Crítica folhetinesca” originalmente publicada nos stories do Instagram da revista.
1.
– Renascer retorna sob a assinatura de Bruno Luperi, que, pelo menos na estreia, parece mais livre ao reler a obra do avô. Nesse sentido, o crescimento das personagens femininas chama a atenção: a Jacutinga de Juliana Paes parece ser mais viva e manipuladora do que a de Fernanda Montenegro (que era uma matrona sobrevivente), e a sensibilidade de Inácia é diretamente vinculada ao candomblé, algo que (se não me falha a memória) não ocorria frontalmente na original. Mas é a personagem inédita de Maria Fernanda Cândido (que costura uma lacuna da primeira versão) a mais curiosa, pois traz essa figura da mulher dona de terras, que encara e desafia esse universo masculino. Uma participação que, somada às outras duas já mencionadas — e à Quitéria de Belize Pombal, que também me pareceu ter mais voz do que a de Ana Lúcia Torre —, traz novos ventos ao universo masculino e patriarcal de Benedito.
– Enrique Diaz faz um coronel cheio de nuances; ameaçador, mas com brechas que expõem fragilidades. Ah, e com a dissimulação/deboche do Belarmino de José Wilker; na nova versão, Calloni parece ir por outro caminho, compondo um sujeito mais ressentido e pragmático.
– Boa ideia essa a de Norberto (Matheus Nachtergaele) quebrar a quarta parede, uma vez que ele é uma espécie de personificação da memória, que tece comentários sobre aquele microcosmo social.
– A roda do Bumba, que na original acontecia na metade do 1° capítulo, deixou o gancho da nova versão. A decupagem de Luiz Fernando Carvalho “rodava” a roda, enquanto esta priorizou não o rito, mas a troca de olhares entre o casal (a conferir como se dará a continuidade).
-A nova versão tem maior quantidade de cenas, mas, à primeira vista, abandonou os tempos mortos, os planos contemplativos da original.
2.
– Sérgio Buarque de Holanda dizia existir dois tipos de colonizadores — o aventureiro e o trabalhador. Ao meu ver, os Josés Inocêncios das 1ª fases ecoam, cada qual, uma dessas vertentes: o de Leonardo Vieira era o aventureiro intrépido; o de Humberto Carrão parece ser o trabalhador, menos vivaz, mais grave e marcado. Uma opção complexa, que deve afetar a composição de Marcos Palmeira, e que, por ora, está nas mãos de um dos melhores jovens atores que despontaram na televisão nos últimos anos.
– O Belarmino de Antônio Calloni ganha substância nesse segundo capítulo e se distancia ainda mais da languidez trapaceira dada por José Wilker. O de agora soa mais ameaçador, e isso se coloca na articulação disforme do bordão “é justo, é muito justo, é justíssimo”.
– Belo momento da direção aquele em que Venâncio (Fábio Lago) se desvela por trás do lençol, ameaçador, à espreita de Maria Santa (Duda Santos), que sequer pode pensar em paz. (Curiosamente, o plano em que Venâncio aparece diante dos chifres do boi foi usado como chacota a Teodoro, quando traído por Eliana, na primeira novela).
3.
– A pendenga entre coronéis abre espaço para o avanço do romance de José Inocêncio (Humberto Carrão) e Maria Santa (Duda Santos). O primeiro beijo do casal construiu-se melhor do que na original, em que Inocêncio avançava sobre Maria Santa, jogando-a ao chão. Desta vez, uma longa conversa é modulada pela aproximação de Maria Santa. Ela sai da cachoeira e vai se aproximando de Inocêncio, que, respeitosamente, permanece de costas para não vê-la nua. Há, então, o grande plano da cena: o recorte dos olhos de Maria Santa que, sublinhados pelo ombro de José Inocêncio, titubeiam entre o temor e o desejo. A Maria Santa de Duda Santos é inocente (será inclusive no nome), mas não tola, ingênua.
– Um plano complementar acontece entre Belarmino (Antônio Calloni) e Venâncio (Fábio Lago): se na cena dos protagonistas o olhar destacado é o da paixão, o chapéu do jagunço sublinha a antítese desse olhar no coronel, que lança o ovo da serpente por trás dos óculos fundo de garrafa (boa sacada do figurino).
– Tiveram destaque objetos importantes na mitologia de Renascer: a manta de Maria Santa, que Inocêncio tira do varal para cobri-la (e que, no futuro, servirá a ele como o manto de um rei enlutado), e a garrafa, que ainda não revelou o diabo. Na dúvida, Inácia (Edvana Carvalho) acende a vela entre a Santa e o “outro”; o sincretismo religioso entra em cena.
4.
– A casa dos “agregados” Quitéria (Belize Pombal) e Venâncio (Fábio Lago) desponta como um dos espaços mais ricos desta 1ª fase: se a sala arejada guarda as pinturas religiosas e a cabeça do Boi, a cozinha se transmuta em um ambiente austero, barroco, na cena em que Quitéria questiona Maria Santa (Duda Santos) sobre o possível abuso de Venâncio . A princípio, achei até que a adaptação atenuaria essa trama de herança colonial — a violência sexual nessas fazendas-feudos —, mas a dilatação narrativa trouxe profundidade ao tema e acentuou a dramaticidade das cenas. No plano mais simbólico do capítulo, Quitéria, refletida sobre Maria Santa, é “partida” — pela janela, pela dúvida, pelos anos de sofrimento sob esse patriarcado, de pequenos poderes e grandes ressentimentos, exercido por Venâncio.
– Esse plano retoma outro da novela de 1993, que emoldurava o rosto Maria Santa (Patrícia França) na janela “dela” (ausente na nova versão), cercada pelos galhos de uma árvore; a mãe (Ana Lúcia Torre) surgia no contracampo. Desta vez, mãe, filha e árvore aparecem em uma única composição, que aprisiona, sobrepõe e corta, mas deixa uma fresta na janela basculante.
– Fábio Lago faz um Venâncio assombrado por dúvidas, abrindo brecha para que Belarmino (Antônio Calloni) alimente a virulência do empregado (da mesma forma, Belarmino é manipulado pelo Firmino de Enrique Diaz, o coronel que transita entre o mundo das tradições e as transações modernizadas do capital). Acerca dessa relação patrão-empregado paira ainda o suspense relacionado à Marianinha, primogênita de Venâncio, expulsa de casa por engravidar. O caso, retomado nas ótimas cenas entre Quitéria e Nena (Quitéria Kelly) — cuja relação patroa-empregada guarda uma aliança prudente, contrastada a dos maridos —, era mais lacunar na versão original.
5.
– Duda Santos dá nuances a sua Maria Santa: antes presa a ambientes regulados por homens, a personagem disfarçava sua inocência (em parte, imposta pela ignorância) com uma postura defensiva de quem intui a necessidade de se proteger. Neste 5° capítulo, essa Maria Santa desaparece diante de Morena (Uiliana Lima) e Jacutinga (Juliana Paes); desponta outra, com olhos não de quem teme, mas de quem encara e conhece o mundo pela primeira vez. Espantada com o que vê diante de si e em si (reconhecendo o próprio desconhecimento), mas também sabida de que precisa saber. Uma virada que ganha destaque porque encontra tempo para aparecer.
– Esse tipo de diálogo, com alta carga dramática, tem reverberado a direção de 1993 ao enquadrar os campos e contracampos em backgrounds esvaziados, desenhados pela luz (muitas vezes diegética, como o abajur ao fundo de Maria Santa), privilegiando rostos e atuações.
– Lugar regido por mulheres — primeiro Jacutinga (Fernanda Montenegro), depois Sandra (Luciana Braga) —, a Casa de Jacutinga era uma espécie de espaço-personagem na 1ª versão. Até aqui ainda não ganhou essa dimensão (mas este foi o primeiro capítulo em que a casa teve tempo de tela). Em 1993, havia ali uma cena muito bonita no trato com o popular (que espero que retorne): um jogral musical, com a câmera seguindo as moças pela casa enquanto elas cantam em meio aos afazeres domésticos.
– Adanilo faz um Deocleciano leal ao coronelzinho, mas mais questionador, preparando, desde já, os conflitos que surgirão entre os “dois pais” de João Pedro (Juan Paiva).
– Pela primeira vez, a luz de uma cena me remeteu à novela original. Foi na conversa entre Jacutinga e Norberto (Matheus Nachtergaele), na qual o afeto entre ambos transparece, mas é endurecido pelo sol, que arde sobre o rosto de Juliana Paes. Contudo, o espaço é bem diferente: se em 1993, a vila era aquela rua única, posta sob a horizontalidade árida do western, a cidadezinha atual (pelo pouco que se viu) parece mais estruturada e independente das fazendas, e não como mera extensão delas. Lembra mais Jorge Amado (penso principalmente em Terras do sem fim) ou até mesmo as novelas nordestinas de Aguinaldo Silva.
6.
– Renascer (1993) era uma trama nostálgica pelo “homem cordial”, o patriarca que coopta o comunitário para si, colocando-se como coração dessa comunidade, transformada em extensão familiar. Uma novela bastante masculina, portanto (o que não quer dizer que o olhar feminino era ausente; falarei sobre isso no próximo post do Projeto Renascer). Nesse sentido, Bruno Luperi expande e potencializa um movimento começado em Pantanal (mas que se concentrava na Maria, de Isabel Teixeira) — o de tornar mais feminina essa trama de “cabras machos”.
– Isso se evidencia nesta primeira semana: além da personagem inédita de Maria Fernanda Cândido, personagens muito planas na 1ª fase de 1993 ganharam sustância. A Nena de Quitéria Kelly vai além do rancor inerte da original, a inveja de Juliete (Flávia Barros) passa da caracterização à narração, e Edvana Carvalho faz sua Inácia sensível e generosa desde o começo, remetendo mais à composição de Chica Xavier do que à de Solange Couto.
– A trama de Quitéria e Venâncio ganhou cenas inéditas após o casal abandonar Maria Santa (Duda Santos). E acho que, desde “Amor de Mãe”, a telenovela não tinha uma cena como a última, em que Quitéria confronta Venâncio sobre Marianinha (trama que também aparenta ter novos contornos); cena melodramática na raiz do gênero, nos rostos imensos, na dor da revelação reprimida dessa mãe, no desconcerto de Venâncio como pequeno patriarca que, destituído do poder, dissimula, em vão. Grande momento de Fábio Lago, que modula o olhar do ardiloso ao abalado. Belize Pombal é o nome que sintetiza e marca as mudanças propostas por Luperi nesses primeiros capítulos.
– O José Inocêncio de Humberto Carrão não sai incólume: Carrão compõe um coronelzinho menos afoito, mais medido. Ecoa menos o príncipe aventureiro de Leonardo Vieira do que o cordial contador de causos de Antônio Fagundes.
– A Jacutinga de Fernanda Montenegro era uma sobrevivente felliniana. A Jacutinga de Juliana Paes parece saída de um Almodóvar, vivíssima.
– A dilatação narrativa transformou estruturalmente a 1ª fase (os seis capítulos atuais equivalem a dois de outrora). Antes, os primeiros capítulos encantavam pelo universo; agora, interessam mais as personagens.
7.*
– O capítulo ilustrou a mudança de tom desta releitura: em 1993, a farsa da falsa morte persistia até o gancho; desta vez, desmanchou-se antes (sem o “morto” se levantar literalmente do caixão) para dar lugar à sangrenta sequência final. O plano do cacau manchado de sangue (de agora) / a câmara subjetiva (de Belarmino) caindo do cavalo (de 1993): sínteses-estilísticas de cada versão.
– A sequência do velório ganhou nova dinâmica desenhando-se em duplas: os aliados pelo afeto (Deocleciano / Adanilo e Jupará / Evaldo Macarrão) — e os aliados por interesse — (Belarmino / Antônio Calloni e Firmino / Enrique Diaz). Destaque para o jogo de cena entre os vilões à beira do caixão, com Diaz observando o outro de esguelha, como um lagarto à espreita (aproveitando as lentes negras-faiscantes; boa sacada da caracterização). Os mocinhos brilham especialmente adiante, quando inventam, em sintonia, a história das roças (e juparazinhos) que Inocêncio supostamente compraria no céu.
– Birin-birin, canção-lamento angolana que marcou o capítulo correspondente em 1993, deu lugar a outro canto africano, colocado sem a mesma força.
– Se o crítico de cinema André Bazin nos ensina que encenação em profundidade não necessariamente significa profundidade de campo (foco), a confissão de Belarmino, diante do caixão, ilustra o desfoque criando tensão quando, em (des)contornos, Firmino se abre como um corvo, no fundo do close do outro coronel.
– A violenta sequência final tem um plano frágil (aquele a pino, em que o cacau soterra a boca de Firmino), mas que desaparece diante dos últimos planos de Enrique Diaz e toda a ação final de Calloni. Calculista, Firmino é posto sob uma decupagem calculada; o coronel de Enrique Diaz é esse ser abjeto, que, ciente disso, tenta disfarçar a própria abjeção nesse visual meio tarantinesco de suor, couro e gomalina. Calloni foi pelo caminho oposto: levou Berlarmino em banho-maria até chegar a essa erupção, em que a loucura contagia e descompensa a câmera. Outros personagens descompensavam a câmera na Renascer original (Mariana, Teodoro, Joana), mas o Belarmino de Wilker — entre espertalhão e bonachão — não chegava a tanto.
8.
– Depois de um capítulo climático, este 8º diminui a tensão e começa a preparar a 2ª fase: futuro rival de José Inocêncio (Marcos Palmeira), Egídio, ainda moço, é mostrado no velório do pai, Firmino (Enrique Diaz). E o plano detalhe no colar de Nena (Quitéria Kelly) indica que o acessório terá valor de amuleto para Mariana (Theresa Fonseca) na 2ª fase.
– Se o velório vazio acende o rancor que revolverá Egídio, abre também uma divertida trama episódica envolvendo Norberto (Matheus Nachtergale), Padre Santo (Chico Diaz) e Jacutinga (Juliana Paes). Personagem com trânsito em todos os núcleos dessa comunidade, Norberto cumpre a tarefa dada pelo padre, atraindo os clientes de Jacutinga para o velório. Pequeno conflito cômico, que, no entanto, carrega uma questão que atravessará a novela — o limiar (às vezes tênue) entre “sagrado” e “mundano” (nas inúmeras acepções que essas palavras podem carregar).
– Importante esse aumento do número e da dramaticidade das cenas entre Inocêncio (Humberto Carrão) e Nena, já que elas chocam o ovo do ressentimento, que atravessará gerações até contaminar Mariana (e a presença das crianças em cena asseguram a memória para além de Nena). Carrão traz para a cena um Inocêncio dúbio, titubeante, ora generoso, ora mesquinho, ora culpado, ora… inocente. Nena não tem dúvidas, mas Kelly também segue pela ambiguidade: embora se ressinta, tem um ar conformado, como se vivesse, enfim, um destino que, mais cedo ou mais tarde, lhe estava reservado.
– Os relacionamentos entre Morena (Uiliana Lima) e Deocleciano (Adanilo), Flor (Júlia Lemos) e Jupará (Evaldo Macarrão) ganham cenas inéditas, importantes não só no desenvolvimento dos casais, mas também na distinção entre as personalidades dos escudeiros de José Inocêncio: Jupará mais romântico, Deocleciano bambeando entre espertalhão e desajeitado. Como a 1ª fase tem ainda 5 capítulos, esses casais devem ganhar conflitos próprios. O mesmo vale para Norberto e Jacutinga, cujo amor (platônico?) aparece mais do que na versão anterior (em 1993, esse amor surgia principalmente como saudade, depois da partida de Jacutinga).
9.
– O casamento de Maria Santa e José Inocêncio “impulsiona” outros dois; em 1993, Morena (Uiliana) & Deocleciano (Adanilo) / Flor (Júlia Lemos) & Jupará (Evaldo Macarrão) já apareciam casados; a cerimônia “aproveitada” era só mencionada. A dramatização atual potencializa essa característica comunitária de extensão familiar (ainda que não apague as hierarquias internas). De quebra, dá a Chico Diaz a oportunidade de compor “dois” Padres Santos: um recatado na 1ª cerimônia; outro mais solto — um pouco alto — na cerimônia seguinte.
– A 1ª vez de Maria Santa (Duda Santos) e José Inocêncio (Humberto Carrão), aos pés do Jequitibá, era idílica na primeira versão; agora é sensual, com a câmera rente, explorando um caráter háptico que desponta nesta Renascer. Um dado interessante: a pacto de proteção é reiterado, mas restrito ao patriarca. Não há tentativa de renegociação para abranger Maria Santa; ela está entregue à própria sorte.
– Delicada a cena em que Morena conversa com Flor sobre a noite de núpcias. Aliás, mais do que acentuar as vozes femininas da trama, Bruno Luperi parece se preocupar em estabelecer laços fraternos entre essas mulheres, indo além das relações maternais dadas com Jacutinga e Inácia.
10.
– Bonita a cena em que Padre Santo (Chico Diaz), ao fazer um mea-culpa, se desconcerta diante da fé de Maria Santa (Duda Santos). Igualmente bonita uma certa mise en scène do toque entre mulheres, que desponta especialmente neste capítulo: Jacutinga (Juliana Paes) embalando Mariana Santa, rosto a rosto, durante o parto, e, depois, amparado Morena (Uiliana Lima), cuja dor da perda ganha outra dimensão agora. Embalar/amparar, ações paradoxalmente próximas e distantes, postas num dobradinha de cenas distribuídas numa arquitetura que carrega as diferenças sociais internas dessa “família”.
– A ideia de Norberto quebrar a quarta parede me parece ir além do fato de que o personagem é uma espécie de memorialista/comentarista daquele universo; aproveita a memória afetiva que Matheus Nachtergaele (e seu João Grilo) ocupa junto ao público para estilizar uma característica central em Renascer — a oralidade como história e como História. Ao invés de opacidade, a sequência em que Norberto proseia conosco sobre o “diabinho” traz intimidade e suscita curiosidade sobre o cramulhão (que ainda não nos foi apresentado).
– Além da cena com Morena, Deocleciano tem dois dos momentos mais fortes do capítulo: o travelling in em contra-plongée, que destaca o caminhar e a postura de Adanilo (e os olhares horrorizados de Jacutinga e Inácia quando se dão conta do acontecido), e a cena em que ele, pai, conversa e se despede do filho, antes de enterrá-lo em meio aos pés de cacau. Aliás, não sei se foi proposital, mas, para além da dramaticidade interna, a cena rememora outra, das mais comoventes escritas por Benedito Ruy Barbosa: aquela em que Jeremias Berdinazzi (Tarcísio Meira) “planta” a medalha do filho em meio ao cafezal para que ele renasça. Luperi, Adanilo e a direção criaram uma cena inédita e à altura dessa clássica, das maiores de Renascer até agora.
11.
– Se em 1993, Renascer usou a película para diferenciar cor e textura de determinadas sequências (como a visita de Damião a São Paulo), o VHS surge aqui como tecnologia contemporânea à época da trama e opção estilística ao sumário narrativo que mostra a passagem dos anos. A direção foi feliz na encenação, que remete a vídeos caseiros/familiares, mas, principalmente, por não exagerar no uso de filtros que emulam o VHS (a luz estourada e o trabalho de câmera foram o suficiente). Na voz de Gal Costa, “Força Estranha” deu o tom emotivo; a interrupção, num raccord abrupto (do chapéu à louça quebrada), trouxe o presságio como marca melodramática.
– Falo em melodrama porque, desde o capítulo anterior, o gênero rasga a tela, inclusive em sua dimensão cristã. Há, no entanto, uma perspectiva feminina: Inocêncio (Humberto Carrão) não negocia com Deus, mas com a Santa, que atende não o desejo do pai, mas o da mãe, sua devota. Incompreendido pelo patriarca, esse sacrifício mudará a sorte da família, do núcleo aos agregados.
– Em 1993, o sacrifício de Maria Santa aparecia dramatizado, mas sem o mesmo suspense e tempo de tela; a sequência, do parto à morte, durava cerca de 12 minutos. Na versão atual, o capítulo é dominado pelo sacrifício dessa mãe, da má intuição à má sorte. Se a Maria Santa de Patrícia França morria sem muito sobreaviso, a de Duda Santos parece consciente desse destino. Esse crescimento gradual, aliado à interpretação, faz com que haja uma distância maior entre o início e o “fim” da personagem, entre a menina do Bumba e a mãe que dá a vida pelo filho. A quebra de outra tigela confirma o que antes era mau agouro (e muda a ação de Inácia em cena). Da original, volta a luz do luar, que aqui, no entanto, se transforma em presença divina, com um contraluz iluminando a barriga e Maria conversando com a Santa (plano que remeteu a uma das aberturas mais memoráveis de nossa teledramaturgia, a de Barriga de aluguel).
– A grande mudança da direção, até aqui, parece estar nesse caráter tátil, dado não só pelas câmeras rentes, mas nessa encenação do corpo a corpo, da mão a mão. A relação entre Maria Santa e Jacutinga (Juliana Paes) muda a partir disso: se em 1993, Jacutinga era “a mãe de coração”, agora é quase como se tivesse, da fato, parido Maria Santa. O adeus do casal, pelo toque das mãos, lembrou a despedida entre Padre Santo (Jofre Soares) e Padre Lívio (Jackson Costa) na Renascer original.
12.
– Televisão bem decupada a cena em que Maria Santa (Duda Santos) aparece para Morena (Uiliana Lima): campo, contracampo e plano detalhe, mas com composições cuidadas, ressaltando as interpretações e a diferença dos planos (no sentido espiritual); o foco restrito ao rosto de Maria Santa borra a luz estourada ao fundo, delimitando o close como um espaço metafísico. Na aparição seguinte, ao fundo de José Inocêncio (Humberto Carrão), a manta se torna manto; no movimento, o pano vela e “abduz” Maria Santa, transmutando-se em símbolo sagrado.
– Se em 1993, a dor de Morena (personagem marcada pela interpretação expansiva de Regina Dourado) era memória, ganha outro peso nas cenas de Uiliana Lima, seja aquela em que ela enterra o cordão umbilical, seja no embate com José Inocêncio, quando Morena avança como uma leoa contra o coronel. A maternidade afetiva ganha caráter efetivo nessa releitura. *ps.: o embate existia na novela original, mas não com a mesma dramaticidade.
– O mesmo não acontece a Deocleciano (Adanilo). Leal ao coronel, ele subjuga a possibilidade dessa paternidade afetiva (e, consequentemente, faz o mesmo com a maternidade de Morena). É o primeiro personagem a corroborar a figura de pai-ideal (sobre a qual fala Maria Rita Kehl) que cerca José Inocêncio. Esse patriarcado, portanto, se expande na admiração e na inação de Deocleciano. Mas Morena está ali, com novas nuances, para proteger João Pedro (se não me engano, essa atribuição do nome a ela é uma novidade que muda muita coisa). Promete bons embates para a próxima fase.
– Nas bordas do drama, Jupará (Evaldo Macarrão) se diferencia de Deocleciano, demarcando que sua lealdade não é acrítica. Flor (Júlia Lemos) também amadurece ao se colocar como mediadora desses conflitos.
– Algo que já estava em Luiz Fernando Carvalho e que volta nesta direção (talvez por conta da presença de Walter Carvalho nas duas versões) é esse uso da mobília para criar linhas de direcionamento ao olhar. A mais bonita no capítulo está nessas curvas que apertam Morena e Deocleciano*.
13.
https://www.youtube.com/watch?v=2rgqSUOQDCI&t=14s
14.
– Principal cena do capítulo, a revelação da identidade de Mariana ganha contornos condizentes à atualização das personagens: nesta, Mariana permanece sentada durante quase toda a cena, não ocupando a sala (diante de um Inocêncio sentado) como Esteves fazia. José Inocêncio é quem dita a espacialidade cênica; aborda Mariana de pé e só se senta no decorrer da confrontação, feita com sobriedade, sem aspereza na voz. Fagundes fazia uma voz meio enfezada, enquanto Palmeira traz à cena um Inocêncio quase sussurrado, que modula o tom pontualmente, sob as demandas motivacionais do personagem (como quando ele menciona o diabinho e pontua a fala com um riso cheio de dubiedade; aliás, parte dessa fala era, originalmente, de Mariana).
– Mariana segue nesse tom mais grave, com os olhos baixos, às vezes úmidos. É uma composição bem diferente daquela Mariana moleca, com a voz quase infantilizada da trama anterior. Ainda na voz, Theresa Fonseca coloca uma nuance interessante: às vezes, quando se dirige à Inácia ou a João Pedro, ela parece errar o tom, como se essa personagem dentro da personagem lhe escapasse ao ter que lidar com figuras para quem não se preparara. Com José Inocêncio, homem que move esse retorno, ela não titubeia; está ensaiada.
– Para fechar a questão da voz, Ana Cecília Costa e Jackson Antunes optam por interpretações que rememoram e estendem as da novela anterior: Costa faz essa Morena de fala volumosa, com vogais abertas, tal qual era a de Regina Dourado; em uma cena à mesa, Antunes solta um falsete que lembra o jeitão do Deocleciano de Roberto Bonfim.
– João Pedro tem todos os motivos para ir se afundando no ressentimento que tem com o pai, mas torço para que Juan Paiva mantenha, em alguma medida, esse sujeito solar que compôs. Zinha segue promissora, não só no ciúme que sente de Mariana, mas pelas possibilidades de articulação com Sandra quando a filha de Egídio (ex-Teodoro) surgir adiante.
– Com atraso: importante a cena romântica (inédita) entre Jacutinga e Norberto; consolida uma relação que, em 1993, ficava implícita.
15*.
– As alterações na apresentação do triângulo Buba-Venâncio-Eliana apontam mudanças nos perfis das três personagens. Devem se consolidar (ou não) rapidamente, já que há (ou havia) um predomínio dessa trama neste início de 2ª fase.
– Momento inspirado da direção a cena em que José Inocêncio apresenta Mariana à Morena: Mariana avança em direção à câmera, que recua (num travelling out). A passada da personagem cria o que David Bordwell chama de jogo de velar e desvelar: quando Mariana vela Inocêncio, desvela Morena; quando vela Morena, desvela Inocêncio. Ou seja, na profundidade do campo, a confiança (de Inocêncio) e a desconfiança (de Morena) se alternam num movimento pendular, que reforça as dúvidas acerca de Mariana.
16.
– A mudança de Buba não só é bem-vinda, mas necessária: em 1993, ela era apresentada como amante de José Venâncio (Taumaturgo Ferreira), numa relação já duradoura. Nesse contexto, era uma personagem que ia se anulando sob as vontades de Venâncio (deixava até de trabalhar). Mulher intersexo (na época, usava-se o termo hermafrodita), Buba (Maria Luísa Mendonça) era submissa a ponto de personificar uma espécie de esposa idealizada pelo patriarcado, aquela que vive ao redor do marido e cujo único desejo é o de ser mãe; acho que só por isso esse universo masculino arcaico não a subjugava pela lente do preconceito. Mulher trans, a Buba de Gabriela Medeiros confronta não só o preconceito de José Venâncio (Rodrigo Simas), como o fato de ele ser casado e ter enganado tanto ela, quanto Eliana (Sophie Charlotte).
– Originalmente, Mariana (Adriana Esteves) embarcava na viagem de José Inocêncio (Antônio Fagundes) em uma elipse. Bruno Luperi redimensiona esse arco, fortalecendo o conflito e a personagem: ela instiga João Pedro (Juan Paiva), que, no entanto, volta a abaixar a cabeça para o pai. Diante desse vacilo, Mariana impõe, via chantagem, sua companhia a José Inocêncio (Marcos Palmeira). Theresa Fonseca ganha e faz uma personagem mais cerebral, menos instintiva (até aqui) do que a vivida por Adriana Esteves. Luperi corrige ainda alguns atropelos na sequência da viagem a Ilhéus.
17*.
– Em 1993, o apartamento de Eliana (Patricia Pillar) e José Venâncio (Taumaturgo Ferreira) tinha ecos modernistas, compondo um espaço artificial (tal qual o casamento); uma espécie de “espaçonave”, antítese máxima à casa de José Inocêncio (da mesma forma como Eliana era a personagem mais contrastante ao coronel). Nesta versão, o apartamento ganha realismo, mas guarda motivações geométricas, numa referência/homenagem ao original.
– Se não me falha a memória, creio que houve uma inversão: antes Venâncio e Eliana moravam em São Paulo, e Zé Bento (Tarcísio Filho) e Kika (Cláudia Lyra), no Rio; agora, o bon vivant e a advogada estão de visita no Rio de Janeiro. Cidade muito presente na 1ª versão, São Paulo ainda não apareceu.
– O diabinho mora na garrafa e nos detalhes: José Inocêncio (Marcos Palmeira) agora vira o rosto, se desvencilhando do beijo de Mariana (Theresa Fonseca), relutando mais do que o protagonista de Fagundes. A cena em que Mariana/Esteves ergue o vestido foi substituída pela sensualidade desta; o plano em que a personagem — vestindo uma camisola transparente — se coloca diante da imagem religiosa, poderia estar num filme de Jean-Claude Brisseau.
– Mudança de tom na conversa entre João (Juan Paiva) e José: menos bravo, o pai parece menos enciumado e mais zeloso com o filho, enquanto o rapaz se coloca à altura dessa autoridade paterna; os olhos firmes e o apoiar sobre a mesa aumentam João na cena.
– Simbolismo no retorno/reencontro de José, João e Mariana: a decupagem compõe conjuntos com triangulações entre os atores, mas, no meio, estão sempre João Pedro ou José Inocêncio, nunca Mariana. Ela sabe o que quer, não está entre um ou outro.
18.
https://www.youtube.com/watch?v=ekmM08kH6LM&t=687s
19*.
– Kika (Juliane Araújo) dá a letra: “só tô dizendo que o patriarcado ali bate com força. Se a gente não abre o olho…”. Pela relação com o filho, Kika enxerga esse patriarcado herdado, quase “genético” — mesmo criados longe, os filhos estendem o pai —, alicerçado no medo, na dependência, na hierarquia e na distância (que ajuda a manter essas relações idealizadas). Kika era uma personagem pequena na original, que servia de “grilo falante” para Eliana, trazendo-a ao chão. Aqui, demonstra não só personalidade, mas consciência de que a relação com José Bento está na iminência de acabar, reconhecendo-se também em Eliana. Se continuar como na original, ela e Eriberto (Pedro Neschling) são personagens que “ficam pelo caminho” (trajetória parecida com a de Gustavo e Nayara em Pantanal), mas, seguindo nessa toada, Kika pode render bem mais do que a personagem feita por Claudia Lyra.
– Em 1993, Eliana (Patrícia Pillar) era uma espécie de femme fatale, que prorrogava o casamento entre manipulações e chantagens; a narrativa se aproveitava desse caráter para justificar o caso extraconjugal de José Venâncio (Taumaturgo Ferreira). O atual reposicionamento de Eliana (Sophie Charlotte) complexifica também Venâncio (Rodrigo Simas), que se torna um sujeito contraditório; bem-informado e consciente das questões do mundo, mas nem por isso menos machista nas relações que mantém. Interessante a cena do sermão que ele dá em José Bento (Marcello Melo Jr.), pois, embora acertado no discurso, soa hipócrita pelo que vemos do personagem.
– Juan Paiva é desses atores que conseguem sustentar uma cena solo, silenciosa, só no olhar. A cena em que João Pedro olha para a santa (Ele ora? Conversa? Pede? Culpa?) é exemplo disso. A direção arremata: a câmera sobe rente à nuca de João Pedro, colocando-o numa interlocução direta, sincera; campo e contracampo se alternam em aproximações uniformes, moderadas, movimentos quase espirituais. Por fim, reenquadra Pedro/Paiva num contra-plongée (de baixo para cima) que escancara os olhos tristes, mas firmes, certeiros, gigantes.
– Sinto falta das cenas de transição que mostravam a labuta na fazenda e a vida na vila, sempre em composições ousadas, brincando com o fora de campo. Traziam um outro tempo à Renascer 1993.
– Easter egg: Zinha (Samantha Jones) usa uma camiseta cuja estampa é muito próxima ao logo da novela “Sol de Verão” (1982). Além de lugar da cultura popular, talvez “esses confins de mundo” guardem, agora, resquícios memoriais da cultura de massa.
20*.
– Negociações televisivas: sob o patrocínio de uma grande marca de chocolates, a novela discute a indústria do cacau e a importação como método para estrangular a produção interna. Último dos coronéis (como diz o motorista da van), José Inocêncio não representa mais o coronelismo enfraquecido, mas ainda em condições de negociar (como descrito por Vitor Nunes Leal em Coronelismo, enxada e voto); revela-se (na conversa com João Pedro) um coronel refém do capitalismo predatório, o mesmo representado pelo deputado-coronel Carlos Eduardo em Velho Chico. Uma questão se abre: o capital aceita a agrofloresta, mais sustentável, desde que ganhe na outra ponta, estrangulando na venda. João Pedro, pelo discurso, é a faísca do futuro, talvez, utopia.
– A discussão do patriarcado está no texto, mas, melhor ainda, no subtexto: José Inocêncio apresenta Kika e Buba, não pelos nomes, mas como “mulheres dos filhos”. Buba toma a iniciativa de se apresentar; Kika atravessa a cena fuzilando o sogro com o olhar.
– Plano meticuloso aquele em que Morena aparece à esquerda do quadro, enquanto Zinha se coloca no vácuo entre a parede e uma coluna. A linha dessa última estrutura arquitetônica sublinha milimetricamente o rosto triste da moça, que confessa sofrer por João Pedro. Abre-se um novo conflito e, se Sandra demorar, periga este amor platônico cair nas graças do público (eu shippo).
– A pintura de José Inocêncio se torna prop (objeto cênico com importância dramática). Buba “conserta” o estrago de Eliana, antecipando simbolicamente as relações que as duas terão com o sogro. Para além disso, o quadro sintetiza as diferenças estilísticas das duas Renascer: a pintura atual é realista, quase fotográfica, seguindo o tom desta releitura; em 1993, era um retrato figurativo estilizado, um quase-Carybé posto no maneirismo televisivo daquela trama. O retrato, que destoava da “espaço-nave” de Eliana, ornava perfeitamente com o apartamento de Buba, extensão urbana da fazenda do sogro.
21.
– O José Bento de Tarcísio Filho era um bon vivant que, embora sanguessuga do pai, vivia um dia de cada vez. Tinha mais malemolência, traquejo; por isso, era mais sedutor do que o Bento de Marcello Melo Jr., que é ambicioso, pragmático, retrato de uma outra geração. A cena no capítulo anterior, em que o motorista da van fala do declínio do cacau, corta acertadamente para o rosto de Bento, incomodado com os nós que embolam (e estrangulam) sua rede patriarcal. Talvez nasça um novo vilão.
– A consumação de José Inocêncio como “pai ideal” está enraizada na relação do patriarca com o matrimônio: os anos devotados à viuvez provam uma lealdade que é recompensada por um novo amor (que ele agiliza em formalizar no casamento). Inocêncio, no entanto, não deseja esse matrimônio idealizado só para si; também o projeta aos filhos, o que cria atritos com Kika — que não conseguiu “dar jeito” em Bento ao longo dos anos — e Buba, que, aos olhos desse marido fidelíssimo, é a outra (ainda que Buba tenha mais afinidades com Inocêncio do que Eliana jamais terá).
– Buba, aliás, se torna uma personagem mais arejada na casa do coronel. Sua cena com Inácia passeia entre subtextos e essa prosa com tom de rotina (ainda que a cena tenha um obetivo claro: evidenciar que Buba não conhece Eliana).
– A mise en scène revisita outras novelas de Benedito: essa câmera baixa que passeia/bisbilhota entre os batentes e aberturas existia na Renascer original, mas, sobretudo, em O Rei do Gado, nas cenas na fazenda de Jeremias. Um recurso de 1993 que ainda não vi (ou não reparei) na de agora, é a câmera interna, que rente ao teto, desce à altura da ação.
– Nada como uma novela com bons diálogos. João Pedro, por exemplo, soltou a linha que sintetiza seu arco interno: “Mas me alivia saber que, se por um lado eu lhe tirei mãínha, por outro, lhe trouxe Mariana”.
– Kika põe no texto uma questão já problematizada nas redes: Mariana tratar Inocêncio por “paínho”. O design do diálogo é interessante, porque Kika tenta orientar Mariana, mas sob um tom paternalista, que vai misturando proteção ao preconceito. Então, Mariana olha para fora de campo (à esquerda do quadro); um olhar visto de perfil, que parece esconder muito mais segurança e esperteza do que Kika supõe ou expressa em palavras (ditas em tom assertivo, mas com teor titubeante). Quando Mariana volta a encará-la, o olhar já é outro, firme, voraz.
22.
– Bento quer as terras mais altas para construir uma casa toda de vidro, deixando implícito seu desejo de vigiar e regular a vida ao seu redor. Faz discursos sobre “trabalho ocioso”, “gente encostada”, “assistencialismo”, “vínculo empregatício”. Vai do saudosismo do alpendre da Casa-grande (que quer fechar com blindex) à defesa das “reformas” trabalhistas (na verdade, demolições), tudo isso dito por um personagem negro. Patrimônio e patriarcado misturam-se como apagadores das demais consciências.
– Essa luz desenhada entre cores quentes e frias sobre os corpos nas cenas noturnas me parece que já estava na Renascer original. A diferença é que lá, a luz fria era um azul gélido, como se a luz do luar não tivesse onde rebater naquele sertão e caísse direto sobre os corpos. Nesta Renascer de matas, é um azul-esverdeado, que contorna os ombros e as nucas das personagens, destacando-os dos fundos.
– Detalhes: para enfrentar Inácia, Mariana senta-se à mesa de braços abertos; não basta o rosto erguido, é preciso ocupar os espaços. É preciso acariciar a lâmina da faca no porta-talheres enquanto remói a dúvida que tem sobre José Inocêncio.
– Gabriela Medeiros retoma algo que estava na Buba de Maria Luísa Mendonça: uma ternura quase infantil, mas que Mendonça usava para reforçar as inseguranças da personagem. Medeiros vai por outro caminho: é a infantilidade da curiosidade, da capacidade pelo encantamento, pelo fascínio. Isso aparece na cena terna entre ela e José Inocêncio. Não à toa, o contador de causos desponta até mais aqui, do que na cena à beira da fogueira, em que os causos já fazem parte de uma memória familiar (e Palmeira criou uma nuance ótima, uma espécie de impulso, sempre que Inocêncio fala de seu diabinho).
23.
– Pastor Lívio chega, e a questão do celibato — marcante na época em que era padre, em 93 — fica para trás. Sua “rusga” inicial com Inocêncio vem pela questão da reforma agrária. Lívio é um dos personagens que mais deve passar por adaptações, mas, desde já, Breno da Matta se apresenta com uma altivez contraditória — contestadora e serena —, rememorando o Lívio de Jackson Costa. E que o Padre Santo de Chico Diaz, menos austero do que o de Jofre Soares (às vezes, meio macunaímico), viva por muitos capítulos para seguir na garupa de Lívio.
– As cenas de João Pedro ganham densidade melodramática, tanto na briga com Bento, quanto na conversa com Zinha. Aliás, é difícil não se comover com Zinha: se originalmente, Zinho Jupará era o amigo-irmão que ouvia e apoiava, Zinha vai além; ela sofre pela dor dela e pela de João Pedro. O plano rente ao rosto de João Pedro, com Zinha levemente desfocada ao fundo, cria vetores complexos: enquanto a face dura de João/Juan entrega o sofrimento sem empecilhos em primeiro plano, o rosto de Zinha/Samantha se impõe contra a suspensão dada pelo desfoque, fazendo com que Zinha exploda na tela, tal qual a personagem, que cobra uma atitude de João.
– Luperi troca a ordem das cenas, atualiza um merchan e joga a despedida de Jacutinga para o gancho. Mais uma vez, a “mistura de quenga e santa” (como dizia o Norberto de Nelson Xavier) olha para o passado e relembra a dança no casamento de Maria Santa. Mas, agora, com a relação com o Norberto de Nachtergaele saindo das elipses, há uma última dança, cuja emoção contamina o trabalho de câmera. Nachtergaele desenha os beats da cena, indo da descoberta da despedida à conformidade, quando dança brincando de aplaudir Jacutinga/Juliana. E se a Jacutinga de Montenegro partia na carroceria com a “peruca torta” (outra descrição de Norberto/Xavier), a de Juliana Paes se desmonta ao despir-se da peruca (como Fagundes, quando se despia do Saruê em Velho Chico). Depois de Maria Marruá e Madame Catarina (aquela Maria Antonieta de brinquedo de Meu Pedacinho de chão), Paes se firma como atriz indissociável do universo de Benedito/Luperi, fechando essa Jacutinga almodovariana. O trabalho de câmera e a ação da dança remetem ao desfecho do recente Noites alienígenas, com a diferença que, no filme, os personagens se ancoram para suportarem uma dor, enquanto em Renascer, a compreensão da dor, da despedida, vai soltando a dança, libertando Norberto e Jacutinga. Um para ficar, outro, para ir embora.
24.
https://www.youtube.com/watch?v=yxATYxcQwWQ&t=15s
25.
– Teca chega e, com ela, Neno, Pitoco e Du (!), que, na novela original, era só mencionado; em 1993, Du era assassinado na chacina da Candelária. Du, por sinal, surge controverso: cumpre um “save the cat” (e conquista simpatia) quando se sacrifica para garantir comida do grupo, mas isso vai por água abaixo quando ele ludibria Teca, querendo obrigá-la a abortar. O casal já começa, portanto, com um conflito forte. A morte de Du (que deve permanecer) seria uma boa deixa para que Teca exponha logo seu caráter sensitivo.
– Ao pedir informações sobre a lista de adoção, Buba não mais se apresenta como Eliana (como acontecia na original) e logo revela que é uma mulher trans. Duas ações que respeitam a coerência da personagem, que segue impulsiva, mas mais segura e orgulhosa de si. Aliás, os diálogos da cena sobre os processos de adoção foram didáticos; ressaltaram uma das características mais importantes da telenovela — seu potencial educativo —, sem parecerem exposição, palestra. Outro ponto importante é o corte de uma frase da Buba de 1993, que dizia querer um “menino homem, como se diz. Mas se for mulherzinha, tudo bem”. Buba até reconhece que o desejo pela maternidade foi reavivado por José Inocêncio, mas se livra da coisa machista do “filho homem”.
– Em 1993, Mariana só sonhava com João Pedro mais adiante, no capítulo 53 (numa cena glauberiana, formalmente radical, sobre a qual devo escrever nos posts do Projeto Renascer). Essa visão de João Pedro, em plena lua-de-mel, abre mais cedo a dúvida sobre os desejos (e planos) da personagem.
– Eliana começa a se desvencilhar do ressentimento e, consequentemente, da apatia. Seu caráter permanecerá dúbio, masela logo deve assumir a postura ativa que a fará uma das personagens mais cinéticas da novela.
26.
– Apoiados em um parapeito, Teca e Du surgem emoldurados entre colunas e rocalhas. Ao fundo, a cidade se ergue em arranha-céus luminosos. A modernidade brasileira incompleta (como descrita por autores como Renato Ortiz e Vivian Schelling) está nesse plano: as superfícies tecnológicas conciliadas à estrutura austera e arcaica. Enclausurados pela arquitetura pretérita e contrastados pelo presente escorregadio e urbano, estão o menino e a menina de rua, casal de segregados sociais que, neste mesmo capítulo, é separado pela mesma tragédia de todos os dias, de 524 anos. A Chacina da Candelária, tratada na novela de 1993, é aqui pulverizada a ponto de ser invisível, de estar na elipse. O plano simboliza também a jornada de Teca, que perambulará entre esses mundos.
– Em 1993, a gravidez de Teca era indesejada, mas também memória desse amor perdido. Com Du ganhando corpo — e tornando-se ausência —, o público passa a ser cúmplice dessa memória.
– Mariana cresce nesta volta para casa, não só pelo rosto aberto, seguro, mas na composição corporal mais solta, sem os braços cruzados que pareciam atos-falhos de uma autoproteção. É a dona da casa.
– José Augusto chega à fazenda e à novela. A reformulação geográfica faz sentido: filho mais distinto e distante, Bento mora em São Paulo, enquanto Augusto, o mais amável, vive em Salvador. Será o primeiro a voltar para ficar.
– Deliciosas as cenas à mesa de Morena e Deocleciano. Ali se desenrola uma dinâmica familiar natural, baseada nos afetos e afinidades. Há uma confissão interessante: Morena assume a maternidade de João Pedro, e Deocleciano, a paternidade de Zinha. O casalzinho (que não é casal) protagoniza uma das cenas mais ternas desta versão. João e Zinha são sopro fresco por essa Renascer verdejante.
– A chegada de Damião foi fatiada entre os capítulos, mas a estratégia original de suspender o rosto do jagunço até o fim da cena só se manteve num primeiro momento. Falo sobre a cena de 1993, protagonizada por Jackson Antunes, no post mais recente do Projeto Renascer.
27.
– Em 1993, a cena entre Damião e Norberto tinha diálogos enxutos e priorizava a decupagem importada do Western. Agora, nem o jagunço, nem Norberto entregam o jogo de uma vez; sustentam e desmascaram pequenas dissimulações, que vão se esgotando conforme a cena avança beat a beat (no roteiro, beat é um conceito, popularizado por Robert McKee, que designa a mudança de comportamento a partir de conjuntos de ação-reação entre personagens). A caracterização do jagunço também é outra; oculta mais o sujeito sinistro que Jackson Antunes trazia já na primeira cena.
– Irandhir Santos deve ter alguma sincronicidade misteriosa com Osmar Prado: dividiram Joventino em Pantanal e, agora, carregam Tião, que teve e terá vários nomes (Galinha, Sonhador). Falo no plural por Irandhir parece trazer propositalmente o Tião de Osmar nessa interpretação que espelha e estende, que renasce e rememora. É quase como se o Tião de outrora voltasse como um diabinho, não na garrafa, mas invisível, ali, soprando no ouvido do outro. Indissociável do personagem, a canção Palavra Acesa irrompe naquela câmera a pino sobre o jipe de Padre Santo. Alice Carvalho transborda desde a 1ª cena (“quem tem fome não tem fome de que não”) nessa Joana que acompanha e acredita no marido.
– Assim como aconteceu com Palavra Acesa, torço para que Confins, Parabolicamará e Mentiras, da trilha sonora original, surjam em momentos pontuais, mas importantes.
– A apresentação de Egídio é mais preparada do que a de Teodoro, que já aparecia de supetão, dando abrigo a Tião e Joana. É um vilão passivo-agressivo, que gosta de simular civilidade. Ecoa o Tenório de Pantanal, mas menos grave, mais malemolente.
– Renascer é uma novela cheia de pequenos solilóquios e sempre que um aparece, lembro das aulas na faculdade em que Doc Comparato quase excomungava o solilóquio da dramaturgia (quer dizer, nos orientava, com veemência, a não os fazer). Doc continua certo; solilóquios quase sempre soam meramente expositivos e, por isso, ruins, mas há que se verificar o gênero e o pacto que cada obra propõe. Em Renascer, essa novela da oralidade, dos causos, os solilóquios não só se encaixam, como fortalecem a identificação com as personagens e com o universo de Benedito/Luperi.
28.
– O quadro de Inocêncio aparece como vértice de duas triangulações: com Buba e Teca, forma um triângulo equilátero, que iguala, equilibra e recompensa as ausências paternas das futuras mães de seu neto (o giro do rosto de Buba com a resposta à Teca marca esse primeiro momento). Já com Buba e Eliana, compõe um triângulo escaleno, com Eliana na ponta mais distante. É afiadíssimo esse encontro entre a atual e a ex de Venâncio, dos diálogos (“sororidade ou veneno?”) ao jogo de cena entre Gabriela Medeiros e Sophie Charlotte. É Buba/Medeiros quem se coloca ao lado do coronel, como se buscasse força, ainda que, desta vez, ela não seja surpreendida pela visita; Buba é quem decide receber Eliana. Uma decisão que prioriza a espacialidade do embate, que, em 1993, destacava-se principalmente pelos super-closes.
– “Ouve, Inácia!”, ralha José Inocêncio para chamar a atenção dessa companheira de anos, evidenciando que a afeição mútua passa pela cumplicidade da prosa. Mariana ouve quieta; quando fala, fala como quem não quer nada, mas planta uma ideia na cabeça do marido. A questão é saber se faz isso porque tem sangue “justo, mais que justo, justíssimo” ou se está tramando algo. O diabo dessa personagem mora nesse tipo de detalhe.
– “Senhor coisa nenhuma, seu moço. Sou senhor de nada, não”, disse Damião, ontem, a Norberto, para, hoje, ouvir de Ritinha, “sou dona de nada, não”. Diálogo breve, mas cheio de graça.
– Que gancho bonito esse com Tião, Joana e os filhos, iluminados não por uma de nossas várias telas contemporâneas, mas pela luz da geladeira, mais simples e essencial. “Isso aqui é o fresco da vida”.
29*.
– Tião sofre a primeira humilhação nessa fazenda onde será colocado em situação análoga à escravidão. O plano final da cena usa uma composição típica do western (a moldura da porta, que geralmente constrói a altivez do homem contra o mundo que vaza ao fundo), mas é aqui subvertida por esse primeiro rebaixamento de Tião. Permanece o homem contra esse mundo de mato que se ergue, sem horizontes.
– Se nossos olhos se movimentam pela imagem em movimento, a cena seguinte brinca com a fixação do olhar ao criar uma afinidade entre a porta anterior e a janela, que revela Egídio. Antes Teodoro, o coronel era composto por Herson Capri como uma espécie de lobo mau que, quando convinha, se disfarçava de vovozinha, o que dava a ele um tom cômico; o público sabia que a vovozinha já estaria na barriga do lobo. Vladmir Brichta, ator que a televisão ainda não oportunizou entregar tudo o que tem, vai um tom abaixo, investindo nos detalhes: o pescoço jogado para trás quando reage como se tomasse o melhor café do mundo, a pausa — e a mudança de tom — no meio da frase “eu gosto… do seu jeito”. Egídio nasce promissor.
– A Joaninha de Tereza Seiblitz era uma mulher que confiava em Tião porque era apaixonada pelo marido, mas já entrava em cena sob certo cansaço. A de Alice Carvalho mantém a consciência do seu lugar no mundo, mas não perde a confiança de que o mundo pode melhorar. Surge com um brilho nos olhos que indica uma sede pela vida; maior até do que a de Tião, cujo arco interno é inverso.
– Marcante na teledramaturgia, campo e contracampo é uma estratégia que pode se apagar nas demandas mais pragmáticas da direção/produção, ou pode se brilhar, como na cena entre Morena e Ritinha, um interrogatório mútuo em que Morena se desvencilha do afazer para lançar olhares certeiros à Ritinha. A moça, por sua vez, “se esconde”; os olhos dançam pelas bordas do quadro, dissimulando o interesse de Ritinha, sem diminui-la no jogo com Morena. A cena termina numa composição em moldura; a direção tem sabido aproveitar essa replicação de colunas e vigas, boa sacada cenográfica da casa de Morena e Deocleciano.
– Mariana bule com o diabinho e se solta nas diabruras — “epa, que eu vou abrir!”, ela diz. Ação/cena que carrega molecagem e ameaça. A dúvida sobre a neta de Belarmino permanece.
30.
https://www.youtube.com/watch?v=cMLaga6ik0o
31.
– José Inocêncio se desvencilha de Mariana e segue para a sala, para a manta de Maria Santa. Mariana, no encalço, entra como uma aparição, desfocada entre uma coluna e a santa. O rack focus devolve à ela os contornos; Mariana passa de silhueta à corporeidade. Na cena seguinte dos dois, Mariana começa recostada no outro canto do altar, como se a prosa (agora sobre o diabinho) impusesse uma disposição oposta. Diferente da Mariana de Esteves, que ouvia os causos sentada no chão (como uma menina aos pés do painho), Mariana, agora, passa por essa posição, mas antes toma a sala. Quando pergunta a José Inocêncio se ele crê na proteção da criatura, o tom da fala abre brecha ao desinteresse ou à sagacidade, impondo que a decupagem passe a um plano frontal do rosto de José Inocêncio. Esse set-up de câmera propicia que vejamos o olhar de Inocêncio, que se fixa num ponto no extracampo, racionalizando uma desconfiança indicial.
– O roteiro tem conseguido boas saídas para que Mariana chame Inocêncio de painho, “deschamando-o” logo em seguida. Há momentos em que soa como ato-falho dessa personagem que veio por vingança, mas que, herdeira de um coronelismo ausente, encontrou em Inocêncio a reparação dessa falta. Uma das questões de Mariana é, justamente, esse encantamento por uma vida que lhe era causo, e que agora é, para ela, imagem e referente.
– A câmera gira em torno de Damião e Ritinha quando o jagunço rodeia a moça de perguntas. Mais tarde, com Ritinha comandando o encontro, faz um travelling in, que a reenquadra num contra-plongée e mantém Damião num ¾ de costas (posição pouco comunicativa). Entre essas duas cenas, o conceito de fotogenia, segundo Jean Epstein (a fotogenia não é o rosto, mas o rosto que se prepara para o riso): Damião beija Ritinha e, quando se afasta, deixa o rosto da moça num desabrochar lânguido, banhado pelo sol, contrastado pela mata, com o ínfimo movimento da brisa movimentando os cabelos. Fotogenia pura (destaque também para os cenários/fundos dos encontros anteriores).
– Esperto o diálogo entre Zinha e João, personagens astutos, cujas prosas são cheias desse bate e rebate em que as palavras são sacadas, cortadas, mas continuam no ar.
– Vai se complexificando a composição de Jackson Antunes para esse Deocleciano de olhos apertados, resmungos, fala para dentro (quando a fala sai, esganiça), corpo jogado para frente (como se, na falta de um diabinho, fechasse o próprio corpo). O diálogo com João Pedro expõe esse Deocleciano cheio de detalhes.
37.*
– O gancho de Mariana com a arma é novo (ou, pelo menos, foi deslocado de outro ponto da trama). É o tipo de episódio que cria uma tensão que, embora se desfaça logo, movimenta a personagem. Mais importante é que, no caso de Mariana, cria uma espécie de prenúncio…
– A presença de Chico das Mortes se expande no número de capítulos e na tela: Mac Suara compõe esse sujeito cuja voz, grave e articulada, retumba pelo pescoço teso para escapar entre a mandíbula cerrada. É um matador deslocado do Cinema Novo, que teve sua grande cena hoje, contra Damião, na venda de Norberto. Como se não bastasse, houve também a cena com Inácia, com Edvana Carvalho expondo a dor inédita da personagem; esse entrecho com Chico e Ritinha trouxe à Inácia um conflito para chamar de seu.
– A conversa com Inocêncio ilumina Damião; literalmente, com o sol despontando no limar dos cabelos de Inocêncio para cair sobre o jagunço.
– Entendi meu “problema” com o novo José Bento: o personagem voltou como uma espécie coach/youtuber, cheio de certezas, incapaz de expor uma fragilidade sequer. O Bento de Tarcísio Filho também era sabichão, mas, a essa altura, já expunha suas inseguranças. O de Marcello Mello Jr. é interessante pela contemporaneidade de um sujeito que não cria para si um duplo, uma imagem; ele é a pura imagem, no sentido mais fetichista da negação e do apego à ilusão.
– Em 1993, Teodoro cobrava o intermediário da tocaia emoldurado pelas grades de uma janela. A cena atual volta à mise en scène original e cria outro sobreenquadramento, mas coloca os dois no mesmo espaço. Brichta usa bem os elementos de caracterização para pontuar as nuances durante a cena (o lenço usado entre uma fala intimidadora e a outra em que confessa algo).
– Sophie Charlote acerta no tom dessa Eliana “perua”: a prova cabal está na cena de hoje, quando ela pronuncia “menina de rua” com uma empáfia incrédula, como se aquelas palavras fossem impossíveis à ela até na pronúncia. É o tipo de personagem que, como a de Marieta Severo (em “Pátria Minha”) pediria “duas gotinhas e meia de adoçante”.
– Tião, esse personagem de sonhos, faz dos poucos objetos que o cercam, uma ferramenta lúdica: o freezer que refresca a cabeça, a lâmpada que ele usa para “ensolarar” Joana. Essas cenas entre Irandhir e Alice Carvalho parecem, inclusive, pular o limiar do realismo para uma outra coisa. Têm uma singularidade dentro da novela.
– Capítulo de embates em triangulações: Damião, João Pedro e Inocêncio; Damião, Chico e Norberto. Os proseadores no miolo para desarmarem os mais calados.
38.
– Entre os acertos desta nova versão, o maior é a adaptação de Zinha; a personagem ganha uma história nova, para além do ressentimento pela morte do pai. É um coming of age que aparece nesse espaço muito singular, restrito às relações próximas, embaralhando a descoberta da sexualidade. A atuação coroa o texto matreiro, com expressões deliciosas (minha preferida é “conversa véia”). Samantha Jones consegue transitar da leveza à emoção talhada na sutileza, que emerge sem que se perceba; quando vemos, já está ali (como na conversa com Morena). É bom ver Ana Cecília Costa — que emendou personagens televisivas de melodrama rasgado — como Morena, essa mãe ora ardida, sempre solar.
– Travellings (in e out) vão se consolidando como um recurso da direção; curiosamente, usados em cenas em que os atores têm marcações fixas. Criam uma dilatação temporal interessante (mas sem gerar tempos mortos), uma vez que sobrepõem a economia do campo e contracampo.
– Cacau não é só chocolate; pode ser até salada. Renascer ensina!
– Egídio remete um pouco ao conceito de Afrânio, o coronel-colcha-de-retalhos de Velho Chico: amarrado no pescoço, o lenço de seda já seria por si só démodé, mas contrasta ainda com o excesso das ombreiras e, principalmente, com os óculos de sol de corredor da São Silvestre (contraponto aos óculos de grau que José Inocêncio pegou emprestado do Durval, de Amor de Mãe).
– Norberto e Tião contracenam; é como se o contador e o personagem de um causo se reunissem. Uma desconfiança mútua acontece, ainda que, no fundo, esses dois personagens pareçam ser feitos do mesmo barro (o modo de assar e o acabamento são outros). O ápice da cena está justamente no gancho que os contrapõe: Irandhir se debruça; Nachtergaele se recosta. Irandhir trabalha as pausas entre as palavras; Nachtergaele coloca tônica nas letras — “cría”, “sáábe”, “capêtá”. Uma novela da oralidade, que tem consciência disso.
39.*
– As tramas de Inocêncio e Tião se tocam; não há trama que não passe pelo protagonista, e a mão de Inocêncio muda até mesmo os rumos de quem só se tangencia a ele, como Tião, que inicia um longo arco em que encontra não o diabinho, mas o inferno. Tião comove pelo desejo basilar que o move — ele deseja crer, ou melhor, ele crê, simplesmente; como ele mesmo diz, tem esperança. Tião crê com todas as forças, porque é a força que encontra para tirá-lo da letargia do ressentimento, mas também porque é o milagre que irá igualá-lo aos patrões (uma vez que o trabalho não o fará). Acaba títere nas mãos desses coronéis, seja na do mal-intencionado Egídio, seja na de José Inocêncio, que joga com a ingenuidade e entocaia o catador de caranguejos por meio de um causo. É preciso lembrar que esse homem-esperança nasce, no início dos anos 1990, sob a sombra desesperançosa dos anos de inflação e poupanças confiscadas, numa democracia que se reerguia decepcionada, aos trancos e barrancos. Tião é a semente que planta Regino, de O Rei do Gado, que acaba como ele. Tião, que, a partir de agora, será Tião Galinha, cujo desfecho ecoa a composição de uma das fotos mais fortes da nossa História — aquela de Vladimir Herzog.
– A cena segue o texto original, a decupagem continua privilegiando os rostos em campo e contracampo, os olhos de Irandhir Santos cintilam como os de Osmar Prado, mas o tom agora é outro, mais grave. Talvez a zombaria de Inocêncio soe menos inocente agora; talvez o Tião do passado, encarnado no Tião presente, nos lembre que, no passado, havia ali o duplo nascimento de uma tragédia e de uma farsa. Isso se repete, mas com a potência desses fatores alterada. Sob a consciência da farsa revisitada, o trato, mitológico e bíblico, agora pesa mais a Tião, a Inocêncio e a nós (aliás, a sequência toda é mais impactante do que aquele filme inteiro do Lanthimos, que partia da mesma premissa). No final, comprimidos pelo batente da porta, os dois apertam as mãos, mas Tião flexiona levemente os joelhos como se reverenciasse esse patrão-pai que, de qualquer forma, mudará sua vida. A música, com violinos arranhados e dedilhados pontuais, é outro fator atmosférico importante.
– Entre as cenas, o encontro entre Joana e Dona Patroa se contamina com o tom da sequência principal; na novela original, era uma conversa dura, mas mais pragmática.
– Não bastasse a beleza da luz durante a conversa entre Lú e João Pedro, há ainda um cuidado minucioso da composição nas marcações: quando a professora se senta no sofá, seu rosto é precisamente emoldurado por uma boiserie (essas molduras talhadas na parede) circular. Por fim, Zinha entra para mais um desses diálogos “a rotina (baiana) tem seu encanto”.
– Sentado na cama, o casal é sobreenquadrado pela porta. A luz é basicamente sombra. Ela, em primeiro plano, está mergulhada na penumbra, tendo só os olhos e o nariz perfumados pela luz; ele, praticamente de costas, numa posição pouco comunicativa, tem os cabelos cobrindo-lhe o rosto. Poderia ser o casal de Tokyo Story, mas são Chico e Inácia em outra cena desse arco inédito, que traz outra Inácia a esta Renascer.
40.*
– Inocêncio verbaliza: renasceu pelas mãos de Inácia. A salvação, inédita, reposiciona Inácia nesta releitura. Inácia cuida, zela, mas não como quem é simplesmente lançada sob as circunstâncias; também se adianta: contorna a autoridade patriarcal de Chico e, diante do mar, conversa, de mãe para mãe, com Yemanjá, na cena mais tocante do capítulo. Deixa de ser a mamma — vivida com garra e ternura por Chica Xavier —, para ter uma história própria e para desejar que a filha (também inédita) renasça sem as submissões vividas por ela.
– “Falar patrãozinho é só um jeito de falar, não é mesmo, amigo?”. A relação se horizontaliza no plano detalhe das mãos dadas e nesse afeto exposto. A intimidade é de corpo e espírito (“você é minha companheira”, confessa Inocêncio), mas a língua continua sujeita à hierarquia da “zona superficial de confraternização”, remetendo à maneira como Pedro Meira Monteiro descreve às relações do homem cordial.
– Ritinha olha, e o travelling in em direção à porta da igreja denota a ausência de Inácia. A lentidão fluida e o efeito sonoro de vento que brada dão ao plano uma dimensão espiritual justa (mais que justa, justíssima), afinal a mãe ausente está justamente cuidando de questões espirituais.
– Coincidência gráfica: Tião é “atravessado” pela retidão de uma tábua no galinheiro. No plano seguinte, a linha de um corrimão conduz o olhar ao close de Inácia. Mais adiante, Tião e Joana aparecem simbolicamente engaiolados pela trama da galinha. – Interessante o uso do travelling in junto com o rack focus, que, no decorrer do plano (em que recebem a notícia da morte de Chico), altera o foco de Inácia para Inocêncio. Não me parece comum ver esse recurso usado com um movimento de câmera tão marcante, como o visto em cena.
41.*
– Dia de diálogos dois a dois: Buba conta à Teca que é uma mulher trans; a cena, como não poderia deixar de ser, fica nos rostos, favorecidos pelos espaços rasos em desfoque. A relação entre as duas já era das mais bonitas na novela anterior, mas a Teca de Paloma Duarte desafiava mais Buba, que, por sua vez, reagia de maneira infantil. Desta vez, a amizades, às vezes fraterna, às vezes maternal, ganha maturidade. Cena sensível e pedagógica (tivesse ido ao ar semanas antes, talvez o ex-presidente soubesse dizer se é um homem cis em seu depoimento à PF).
– Zinha é um pouco filha de Deocleciano: quando João Pedro e Lú saem de cena, os dois conversam com cumplicidade que extravasa numa característica em comum, quase herdada — os rostos baixos durante a prosa matuta e afetuosa, que acaba num abraço.
– São sempre boas as cenas entre Juliane Araújo e Theresa Fonseca. Isso porque as conversas iniciam descompromissadas, como comentários sobre os outros, mas logo escalam numa tensão subterrânea, mas crescente. Kika se coloca de maneira ambígua diante de Mariana, estabelecendo um jogo passivo-agressivo; é como se, num nível consciente, ela precisasse “ensinar” seu feminismo à Mariana, mas as frases são sempre pontuadas por uma provocação, uma malícia, ou um tom de superioridade, algo que escapa do controle de Kika e coloca uma indisposição entre elas. Na segunda cena entre as duas, Kika come uma goiaba, ação que dá outro tempo à cena, além de travar a mandíbula e distorcer o rosto, o que interfere na maneira como o diálogo é dito — ora como se ela saboreasse as palavras, ora como se lutasse com as sementes.
– Tião abre a ação conversando com a galinha, mas a cena é menos sobre ele e mais sobre Joana, que ganha a câmera: um travelling discreto se aproxima dela, mas o movimento se torna imperceptível diante dos olhos de Alice Carvalho, que, ao mesmo tempo que arregalam e umedecem, tremulam num piscar que nunca se completa, como se ela tentasse conter as lágrimas, mas quisesse manter os olhos abertos, a visão completando aquilo que ouve do marido (e que a assusta). Contraplano forte, que passa a perna no plano e toma a cena.
– José Venâncio é o personagem que mais “colhe” sinceridade: primeiro, de José Augusto; agora, do pai, José Inocêncio, numa cena importante tanto para o coronel — que reconhece suas falhas paternas —, quanto para Venâncio, filho dessa ausência que, agora, não consegue se impor ao pai. Rodrigo Simas faz o personagem muitos tons abaixo do Venâncio de Taumaturgo, um urbanóide histriônico, simpático, mas cheio de si, que, de certa forma, espelhava/estendia a composição de Eliana/Patrícia Pillar. Essas últimas conversas sugerem que o tempo do personagem está se esgotando.
42.
https://www.youtube.com/watch?v=P74oquGl6xc&t=33s
43.*
– Em 1993, estávamos no capítulo 28 e Damião encarava o intermediário que o contratou sob esta composição elaborada, que o emoldura (e confina), mas, simbolicamente, devolve-lhe o chapéu.
– Agora, a cena é refeita num trailer enfiado numa pedreira; a ambientação. que evoca os westerns de decadência, como Deadlock e Onde os fracos não têm vez. Damião reaparece (de novo sob um travelling lateral) para desregular a cena em ângulos holandeses…
– Mas não só: o matador desestabiliza todo o capítulo, que é tomado por linhas diagonais ou composições ambíguas que tensionam espacialmente o mundo de Renascer.
– É João Pedro quem recoloca essa espacialidade em ordem, quando senta para conversar “de homem para homem” nessa composição simétrica, em que jagunço e patrão se colocam iguais.
– Se a direção traz esse peso organizador a João Pedro, é Lu quem discursa sobre a liderança dele, estendendo a cena para salientar algo que não havia no diálogo original — José Inocêncio pode ser melhor patrão, mas não deixa de ser coronel, patriarca e acumulador de patrimônio. 30 anos depois, algumas coisas precisam ser ditas com clareza.
44.
– Lívio é um pastor que quebra certo imaginário; mais do que falar, está disposto a ouvir. É essa disposição que move a conversa que vai desarmando o pudor de Inácia em expor sua fé. Abrem-se duas longas cenas, que vão se intrincando nas fés e nos seus respectivos deságues nas religiões. Lívio se educa e, consequentemente, educa o público. Inácia revela as violências impostas contra as religiões de matrizes africanas ao longo da escravização. O sincretismo religioso emerge no caso — “Iemanjá é Nossa Senhora dos Navegantes?”, pergunta Lívio —, mas principalmente na ideia de “ponte”, que é o que se constrói em cena: a comunicação entre as fés e os contextos que as cercam. A prosa é perfumada por lampejos de sabedoria, trocados com generosidade : “Deus não é de se explicar, é de se sentir”; “Creio porque é absurdo. Porque, se não fosse, eu entenderia”. A fé não é lugar de respostas, mas de perguntas, diz esse Lívio, mais lacunar do que o primeiro, mas ainda crente nas utopias (e defendendo a importância de se crer nas utopias). O pastor, de certa forma, faz com que Inácia deixe de contrariar seu Odu: das águas, ela tira os búzios numa cena que granula forma e fundo, faz do corpo e do mundo um emaranhado de contas. A cena dela com Damião aprofunda a espiritualidade desta Renascer (e mal posso esperar pela clássica cena da “casa que roda”, ainda lá adiante).
– Bons personagens se fazem nos detalhes e Brichta encontra no lenço, constantemente levado ao rosto, um tique apurado a esse vilão que teme derreter, e que, por isso, recompõe o que não foi descomposto. É o coronel que se quer coronel e, nesse sentido, se preocupa constantemente com a própria imagem. A barba, cujo corte vai ficando cada vez mais pontiagudo, é outro detalhe lancinante dessa caracterização. A conversa com Inocêncio explicita a rusga dissimulada em civilidade. O toque final à cena é o conjunto de centelhas patriarcais, com Egídio pontuando a conversa com pequenas ordens dadas à Dona Patroa (que é impedida de se apresentar pelo nome).
– Sandra nasce pela mão. O anel, um cacau, é uma ironia e um presságio: chega a princesa do cacau falido (Inocêncio insinua isso na conversa com Egídio) para conhecer o “príncipe do cacau”. A plot Romeu & Julieta, um clássico nas tramas de Benedito, começa agora.
45.
– Tião discursa aos trabalhadores sobre a “fome de esperança”. Lú fala sobre sonho, e Mariana percebe que não tem um para chamar de seu. A conversa entre elas inclui Mariana nessa trama Freiriana, que logo incomoda (e complexifica) Inocêncio — a educação permitida pelo bom coronel visa não a autonomia, mas o sobreviver (ao invés do viver pleno) e a manutenção das relações de mandonismo e servidão. O sonho é um tema que atravessa Renascer do discurso à ação; essa marginalidade inédita de Mariana ao direito de sonhar trouxe não só a melhor cena do capítulo, como nova nuance à personagem. Como nos diz Antonio Candido em seu seminal O Direito à literatura:
“Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. O sonho assegura durante o sono a presença indispensável deste universo, independente da nossa vontade. E durante a vigília a criação ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção popular, moda de viola, samba carnavalesco. Ela [a literatura] se manifesta desde o devaneio amoroso ou econômico no ônibus até a atenção fixada na novela de televisão ou na leitura seguida de um romance”.
Candido, que chama de literatura “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático”, completa adiante que ela (e o sonho) “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. A cena entre Mariana e Lú, olhos nos olhos, semelhantes nessa sala de aula, está prenha desse direito ao sonho e à humanização plena. Como diz o Seu Rachid feito por Luiz Carlos Arutin, novela é coisa muito importante.
46.
– Em 1993, Iolanda (D. Patroa) já se escandalizava com o fato de Sandra não ser virgem, mas a cena aqui encontra na atuação de Camila Morgado uma alegoria, sintomática de alguns retrocessos adensados nos últimos anos. Se antes havia só o conservadorismo de uma esposa submissa à cultura patriarcal, agora isso se soma a uma retórica religiosa inflamada, que, ironicamente, aparece nessa fiel (sem direito ao próprio nome), e não na boca de Lívio (aliás, a dissonância religiosa entre eles ficou evidente numa cena de capítulos atrás). A D. Patroa de agora é alegoria de um projeto teocrático suspenso, mas não morto.
– Neno e Pitoco reencontram Teca e o núcleo Capitães da Areia ganha força. O amor platônico de Pitoco por Teca é antecipado; originalmente, ele via no reencontro uma oportunidade de tirarem uma casquinha da situação. Por sinal, com esse livro de Jorge Amado atribuído à Buba, João Pedro lê Terras do sem-fim. Minha lembrança dessa leitura retém principalmente dois capítulos que encadeiam os submissos Damião, o jagunço sob repentino peso de consciência, e Ester, a esposa que não dorme com medo das cobras e que sonha (acordada) com Paris (essa personagem me causou tanta impressão que emprestei o nome a uma das figuras centrais de meu romance). João assinala, em cena, esses tangenciamentos entre os Damiões.
– José Augusto chega para ficar e tem longas cenas com o pai. O personagem é outro: o de Marco Ricca surgia sugerindo que colocassem Inácia num asilo; a visão humanista daquele doutor era construída na estadia na fazenda (e na aproximação com Buba). O Augusto de Renan Monteiro rechaça a ideia e sequer decreta a “caduquice” de Inácia; é mais prudente, talvez por conta do caso Jupará. A longa conversa que tem com Inocêncio expõe a principal transformação de José Augusto: se o de Ricca tinha o rosto inquieto porque se desvencilhava reiteradamente do olhar do pai, o de Monteiro sustenta esse olhar, que umedece entre o carinho e a mágoa, mas, sobretudo, reconhece em si mesmo como uma farsa. A luz amarelada indireta contorna o mais emotivo encontro entre pai e filho até aqui.
– Em 1993, a “caduquice” de Inácia vinha e ia repentinamente; a impressão é que Benedito mudou de ideia acerca dessa trama. Ganha agora outra dimensão: Inácia tem delírios ou visões? O descompasso mental ganha contornos espirituais, trabalhados na cena à mesa, com as vozes se mantendo no plano carnal e os planos detalhes indo, junto à Inácia, a esse lugar entre a lembrança e o espiritual. Esse conflito culmina no gancho do capítulo, que me faz retornar ao pensamento de Tania Modleski. Como esse é um tema que demanda também um retorno mais detalhado à Renascer original, a continuidade dessa discussão virá em postagem do Projeto Renascer.
47.*
– José Augusto cerca Ritinha, se interessa por Lú… sempre achei curiosa essa antecipação incompleta que ele faz do irmão, José Bento (que se envolverá com Ritinha, sem nunca deixar de azucrinar a vida da professora). São personagens-variações de Osório, o filho do “senhor feudal” (emprestando a descrição de Jorge Amado) que assedia as mulheres da fazenda em Cacau. Mas Augusto se redime, deixando o comportamento assediador (e a trama) a Bento. Zinha-das-boas-frases, descreve-o bem: “carinha de inocente útil”.
– “[…] Os cocho redondo não tem quina […] atrapaiá não atrapaia, mas quando você vai revirar o cacau aí dentro, sempre tem umas amêndoa ou outra que fica perdida, e aí não fermenta por igual”. A lida com o cacau ganha novo contexto, pelo tempo, mas também pela escolha de João Pedro em modernizar a produção. A linha do diálogo é didática e serve ao caráter educativo da dramaturgia (previsto desde Aristóteles), mas, sobretudo, ajuda a construir esse universo em detalhes. A fazenda se desdobra para além da superfície, revelando suas engrenagens. Volta-se à questão do olhar curioso e essa exposição detalhada é fundamental.
– O encontro entre Sandra e Inocêncio perde a altitude da escada; perde também a postura que Mariana (Adriana Esteves) replicava do marido — braços cruzados, olhar altivo, desconfiado, de cima. O tom agora é outro: andam lado a lado e Mariana, quando surge, faz questão de ir até eles, ocupar o espaço. Quando Sandra sai em direção ao cavalo, deixa o close contraditório de Mariana — espantando e encantado com a ousadia da rival. São personagens que, ora se esse espelham, ora lampejam uma contra a outra.
– Tião põe o dedo em riste contra Joana; não a imagem, mas a sombra dessa mulher que resiste, mas é carregada pelos sonhos do marido. Mise en scène deslumbrante, que pressagia a separação entre os dois.
48.
– As novelas de Benedito são impregnadas de passado; o tempo de outrora pode vir tanto pela memória quanto pelos fantasmas. Dia atrás, numa dissertação sobre Kiyoshi Kurosawa, li que o fantasma é um mediador de mundos. Fiquei com isso, talvez para ecoar agora, em outros fantasmas (longe dos de Kurosawa) — não seria a memória também um fantasma, interno, próprio, que medeia o mundo que se apresenta e o mundo que passou? Trago isso porque, costurando memórias e fantasmas, este foi um capítulo de saudades. Zinha relembra o pai, numa reminiscência que transcende a narração; torna-se drama, trazendo de volta o ator Evaldo Macarrão (e a novela acerta em trazer participações do elenco que, com força, abriu as trilhas à trama que agora floresce). Além de terno, o flashback fecha em drama (ação que se apresenta) a história sobre o nome de capoeira, antecipada na contação oral. Norberto, por sua vez, recupera a casa de Jacutinga. Em 1993, isso acontecia só no capítulo 48, numa das cenas mais sensíveis daquela novela: enquanto Sandra descobria a casa, sentindo a aura que introjetava vida nas ruínas, Norberto rememorava o rosto de Jacutinga (Fernanda Montenegro), maquiando-se como se fosse uma personagem de Amarcord.
– Desta vez, a saudade não é um lampejo, como era para Nelson Xavier, mas uma dor mais lancinante. Ao longo do capítulo, Nachtergaele vai aprofundando isso, como se vivesse as fases de um luto, da negação à aceitação. Isso explica sua reação à invasão de João Pedro e José Augusto, bem como essa volta antecipada à casa, que ele mantém fechada, protegendo-a como se ali estivesse seu quarto das maravilhas. Pelo segundo capítulo seguido, o plano detalhe de um porta-retrato ecoa a primeira fase, esse passado que não é passado, como bem diz uma passagem de André Parente que resgata o pensamento do filósofo Henri Bergson:
“[…] nos lembra um dos paradoxos do tempo em Bergson (paradoxo da coexistência), que afirma que todo o passado em geral é conservado no presente, e que o presente não é senão o passado inteiro em seu estado mais contraído.”
Parece-me caber bem ao universo de Benedito, mas também a uma novela que que guarda, replica e expande outra, passada mas também presente. Novelas Matrioshkas.
+ https://www.youtube.com/watch?v=AYDTal5jKj8&t=40s
49.
– Parte da força do reposicionamento de Zinha está no fato de que a personagem lida com questões passadas e presentes. Herdada da novela anterior, a dor pela perda do pai se emaranha à descoberta solitária da sexualidade. Uma nota me parece importante: a fazenda é um mundo, mas o mundo não é a fazenda. Esse novo arco explicita isso, sujeitando Zinha a uma descoberta restrita aos limites geográficos e aos convívios de uma comunidade enxuta. O jogo de flertes movediços e interesses voláteis (que abarca ou abarcará personagens como João Pedro, Sandra, José Augusto, Lú, Damião, Ritinha e Eliana) é sintoma desse confinamento que obriga as intimidades, mas Zinha é, provavelmente, a personagem mais testada nesse micromundo feudal. Samantha Jones passeia com graça entre a embocadura dos diálogos da “menina-matuta véia” e o olhar comovido de quem toma consciência de si — inclusive para além da sexualidade, como mostra a cena na sala de aula —; consciente também de que é incapaz de esconder o que sente e é. Personagem de epifanias, é uma contra-Macabéa, que invade e toma esta Renascer.
– Vejo, nas redes sociais, o apontamento de uma suposta inverossimilhança de Lívio; não uma inverossimilhança interna, restrita à narrativa, mas uma que se dá nessa relação entre ficção e realidade. Me recuso a crer que haja uma incompatibilidade entre a visão de mundo do personagem e sua profissão, assim como me recuso a acreditar na impossibilidade de que Lívio seja uma figura com lastro no real. Trata-se, sim, de um pastor que quebra certo imaginário; que, por sinal, está personificado na figura de Dona Patroa, que internaliza na narrativa essa descrença acerca do personagem. Embora esteja longe de ser minha especialidade e objeto de estudo, já li análises de pesquisadores das Ciências Sociais apontando que as religiões evangélicas conquistam fiéis pela fé numa prosperidade dada não no Paraíso, mas em vida, no mundo terreno; algo que vai ao encontro do que o melodrama opera enquanto gênero, principalmente se comparado a tragédia. Pois bem, até nisso Lívio me parece se enquadrar, o que há nele é uma mudança de perspectiva: a prosperidade, para ele, não virá do individualismo, do mito da meritocracia, mas da promoção da justiça social. Se isso soa tão absurdo na figura de um pastor, talvez o problema não esteja na ficção. Caso esteja enganado, e Lívio inexistir para além da tela, que a ficção cumpra, portanto, seu papel de promotora de utopias, porque é a partir da imaginação delas que a realidade se movimenta em direção a algo melhor. Mas não sou Dona Patroa (que não crê nem vendo) e prefiro acreditar que Lívio representa uma pluralidade/complexidade religiosa que está à margem das representações e de certo imaginário.
50.
– Padre Santo entra em um dos templos de Inácia: a natureza é santuário; o tempo, coisa do mais complexo dos orixás. Dois elementos onipresentes na obra de Benedito Ruy Barbosa, destacados na prosa, mas também na duração da cena, posta nessa floresta metafísica. A menção ao tempo (“de Iroco”) faz com que Padre Santo intua a inevitabilidade da matéria que nos escapa às mãos; talvez por isso, lhe escape também a lágrima, quase imperceptível sob a luz etérea que penetra a mata. Inácia explica e canta (os universos de Benedito sempre têm essa centelha musical) enquanto deságua as fés na bacia. Chico Diaz cria os últimos e mais difíceis acordes desse padre de uma placidez viva, safo em seus trânsitos e trâmites, na oralidade de “levar a palavra” para botar panos quentes, apaziguadores, conciliatórios. A amizade com Lívio os contrasta, mas progride ambos os arcos. Em 1993, eram as mãos dos padres que se contrapunham para evidenciar semelhanças e diferenças. Aqui, a mão de Padre Santo se entrelaça à mão da Mãe de Santo. – Investindo nos toques, a mise en scène vai, sutilmente, desconstruindo certo imaginário de masculinidades retrógradas. Falo, hoje, da cena entre Norberto e Deocleciano, com o último apoiando-se nos ombros do dono da venda, para depois seguirem abraçados até a porta. Ontem (se não me engano), numa conversa entre José Augusto e João Pedro, o braço de João se estendia no sofá por trás das costas do irmão, servindo de arrimo simbólico ao outro (aliança que ganhou novas dimensões hoje). Configuram-se amizades que superam discursos e lealdades. Masculinidades que vencem a distância e a imagem para ganharem concretude, materialidade.
– A crise de José Augusto com a medicina é reelaborada: a saúde pública continua passível de crítica, mas o momento histórico pede outro posicionamento; pede que se questione como a medicina é vista de fora e, principalmente, como se vê de dentro. O caso que Augusto conta não deixa de tocar um dos temas da novela — a medicina não em vista da saúde, mas como vislumbre da vida eterna, nem que seja pela aparência. – A autoridade de José Inocêncio desponta. Primeiro contra Lívio: a câmera os rodeia para estabelecer esse embate à mesa. Então, a montagem analítica traz aquilo que é incontornável numa cena de duelo vocal — os rostos em primeiríssimos planos, contrastados pelo espaço raso (desfocado), cuja cor entra em afinidade com as peles. Começam pela comunicabilidade da posição em ¾, mas logo se contrapõem nos perfis, essa composição que surrupia meia face, obrigando o espectador a completar essas luas crescentes. O diálogo tem pequenas alterações (desta vez, é Lívio quem menciona Deus e o Diabo). Homem das palavras — que as ouve, sobretudo —, o pastor captura um ato falho — “minha gente”. Se Inocêncio vê no discurso de Lívio uma oposição capaz de lhe tirar força de trabalho, a união dos filhos pode diminuir seu poder sobre a terra, sobre o patrimônio. Esse pai deseja, sim, que os filhos o substituam, mas não agora. Há mais Succession aqui do que na trama passada, que era obcecada por papaguear o termo “sucessão” até cansar o espectador.
51.
– Inácia sonha com o Bumba e eu pensava — “bobeei”. Isso porque uma das sessões de minha tese é “Sonhos, aparições e deslocamentos” e, não me lembrando da cena, pensei ter cometido o descuido de deixá-la passar. Voltando aos capítulos e às anotações, percebi que o sonho, agora dramatizado, era apenas narrado por Inácia, inclusive com outras nuances — lá, o miolo era Belarmino, enquanto agora é Inocêncio, alvejado por João Pedro. Mais importante é a inserção dúbia de Mariana, que roda como Maria Santa, mas sem ser a santinha, talvez para ser diaba. Essa dicotomia, que ronda a personagem, aparecia noutro sonho na trama anterior: o sonho glauberiano em que a “tocaia Mariana” despedaçava a mise en scène e embaralhava a montagem para opor pai e filho. Uma das cenas mais impressionantes de 1993. Este novo sonho não só renova as incertezas acerca da mocinha (?), como traz o presságio sobre o destino de José Venâncio, cujo nome é herdado do miolo. – Por falar em “mocinha”, Sandra é, desde Luciana Braga, uma mocinha de novela irresistível. Isso porque ela surge num momento da telenovela em que já era possível contornar a protagonista meramente reativa, sofredora (que Benedito, curiosamente, retoma com força em Terra Nostra); naquela época, Sandra poderia muito bem ter estado nas ruas entre os caras pintadas. Na cachoeira atual, Giullia Buscacio aproveita o aumento do texto para levar a personagem ao limite do jogo com João Pedro; Sandra sempre na dianteira da situação. “Cinema é cachoeira”, diz o aforismo de Humberto Mauro, mas cachoeira também rende boas cenas de novela.
– Mais difícil ter empatia por essa Dona Patroa que cerca Joaninha como se viesse da Inquisição. E não fosse a ética profissional, Kika poderia muito bem restabelecer Buba na psicologia, porque olha…
– O embate entre João Pedro e José Inocêncio é o ponto alto do capítulo. Na original, a ofensa fazia com que o filho reagisse com as mãos (que apertavam o chapéu); agora a força está nos olhos e no close, que testa o limite do quadro. Juan Paiva é som e fúria. Palmeira também, mas de outra forma. Isso porque o Inocêncio de Fagundes não nos enganava; ele se mantinha, desde o início, como um ser inalcançável, que trovejava, ora com raiva, ora com doçura, mas sempre trovão. Marcos Palmeira nos ludibria com este protagonista cordial-cerebral: começa com esse Inocêncio brando, homem como todos os outros, mas começa a nos lembrar que há homens que falam de púlpitos, que têm tronos. Nas cenas de hoje, ele entra em erupção diante da possibilidade de o filho plebeu superá-lo; Palmeira coloca isso no pescoço visualmente tensionado e no maxilar rijo, que não impede que a dicção saia como navalhadas contra o outro. O rack focus (mudança focal durante o plano) leva o coronel do ponto de vista embaçado (que tornam João e Mariana uma coisa só) ao contorno delineado do casal (abençoado pela Santa?). No contracampo, a desestabilização paterna inclina José Inocêncio, num ângulo holandês bem executado (o que por si só é uma raridade). Não bastasse um, Renascer faz outro plano oblíquo no gancho: desta vez de Mariana, que se desfaz antes de ser varrida do quadro pelo travelling lateral.
52.*
– Grande cena do Deocleciano de Jackson Antunes: o braço direito rompe com o patrão; não sem antes lembrá-lo de que aquelas roças são fruto de um trabalho conjunto. Antunes coloca em cena a lealdade e a servidão desse companheiro que nunca deixou de ser empregado, mas embala esses sentimentos numa motivação maior — as dores de um pai, que defende o filho dado pela vida. Se, na mise en scène, Inocêncio é uma faca fincada no chão, Deocleciano balança o corpo em ombros caídos e olhos baixos, sentidos, mas firmes em direção ao outro. Uma erupção mansa, mas não menos doída, que diz o que tem que ser dito e sai, equilibrando a emoção num ponto do corpo — o olho direito. – Joana também ganha outra corporalidade na casa de Egídio. Se a de Tereza Seiblitz chegava desmilinguida, se desfazendo — inclusive do orgulho — para sobreviver, a de Alice Carvalho se comprime até quase virar um casulo, um bicho-da-seda que se envelopa no blusão puído, na tentativa de se proteger dos olhares do coronel. Sandra chega como aliada importante; a cena em que ela ensina Joana a usar a máquina de lavar roupas é um bom exemplo de como transformar questões maiores (o isolamento de Joana, a inacessibilidade tecnológica) num conflito cênico verossímil a essa rotina doméstica. Tal qual descrita por Gilberto Freyre, Dona Patroa (e vou chamá-la assim sempre que ela estender o patriarcado) reverbera e desconta o sadismo que passa por ela, usando-o como manutenção de seu pequeno poder. Feita como alegoria, é uma mulher tão contemporânea (no sentido de ser possível) quanto colonial.
– Nos grupos que acompanho, os humores mais ranzinzas (provocados por uma nostalgia tolhedora) começam a mudar diante do casal Sandra e João Pedro. Sandra dá a letra: que eles restrinjam os sofrimentos inevitáveis às relações com os pais. Isso faz com que essa história de amor clássica permaneça quase sempre arejada, solar. É impressionante como o amor romântico continua a ser a sustentação melodramática fundamental da telenovela.
53.
– As lembranças de Morena se estendem (se comparadas à cena originária) e oportunizam que Ana Cecília Costa mostre as nuances desta sua versão. Isso porque a Morena de Regina Dourado era resignada, muito por conta de criação que dera a João Pedro. Lú, no entanto, diz que cada filho é um, que não há substituição, algo que a Morena de Costa sabe bem. Talvez por isso, a personagem perambule por tantos lugares ao longo da cena: enquanto pica as verduras, ela passa pelo ressentimento que tem de José Inocêncio, pela perda do filho, pela amamentação milagrosa de João Pedro (instante em que Costa coloca a risada única que criou à personagem); nesse ínterim, a boca mostra os dentes, crispa quando quer recalcar algo, fecha quando perde o controle. Morena reconhece algo que me parecia evidente na primeira fase: não teve Jacutinga em seu parto porque não era patroa, era agregada. Sua dor é mais complexa do que na de Dourado: passa também pela submissão de Deocleciano, vital para a rigidez dos estamentos que formam essa comunidade. Ele, aliás, sabe disso: não à toa, surge em cena já desmoronando sob esse “castigo” da esposa, que, como diz Lú, não ritualiza a perda. O Bumba, o facão diante do Jequitibá, os búzios, o ovo no sovaco: Renascer reconhece os rituais como procedimentos humanos de vida, morte e renascença.
– Recai sobre Venâncio a culpa pelo rompimento do pacto entre Teca e Buba, acho que ainda mais profundo do que na anterior, mais profundo até do que a relação que Buba tem com Venâncio. Teca, antes, era cuidada por conta do filho que carrega na barriga; agora, cuidam-se uma da outra, como se sentissem que a presença de Venâncio é insuficiente e passageira. Ele, aliás, ganha complexidade no ciúme de Eliana (ou de Eriberto?). A ideia de transformar o ex-detetive (que continua abelhudo) em sócio e amigo foi boa, pois trouxe ao personagem uma interação rotineira, arejada, diferente das tensões que tem com Buba, Eliana e com os Inocêncios. – Bela composição aquela que transforma o over the shoulder (câmera sobre o ombro do personagem) de Tião Galinha numa máscara, que enquadra Joana como uma lua minguante, impossibilitada de crescer mesmo na própria casa. – “Turco” Rachid, o mascate mágico, volta como tal, como sombra projetada venda adentro quando a porta se abre numa lanterna mágica (e a novela anterior já mostrava que a chuva sempre traz mudanças). Rachid aparece nessa vila baiana, mas seu renascimento, da maneira como foi, poderia ter acontecido na Macondo de Cem Anos de Solidão. Surge para Norberto porque, juntos, encarnarão, dentro da narrativa, o papel que Daniel Filho diz ser estrutural à telenovela — o de ser uma grande fofoca. Almir Sater é um desses atores cuja ausência televisiva prolongada é inexplicável (Pantanal já demonstrara isso). Um dado pessoal, que me emocionou: os óculos quadrados, de armação grossa, me lembraram meu avô, descendente de libanês, mas que, vira e mexe, era chamado de “turco véio”.
54.
https://www.youtube.com/watch?v=GBnwkYCKV78
55.*
– Em 1993, o último discurso de Padre Santo era mais pragmático em compreender os defeitos de Lívio para deixar ao companheiro seu conselho-herança: “não queira ser a palmatória do mundo”, dizia Jofre Soares, antes de comparar sua mão com a de Jackson Costa e constatar que não há uma igual a outra. A questão das diferenças é recolocada de maneira mais complexa, num discurso que desagua da religião à filosofia: “Deus de Espinosa”, sintetiza Lívio quando Padre Santo diz que Deus “vai muito além que um templo, tá no mundo, na natureza” (fala que ecoa a de José Inocêncio, capítulos atrás, que dizia que Deus estava nos em cada florescer de suas roças). “É o bem, sim”, continua Padre Santo, “mas não é apenas ele. Afinal, são os nossos erros, os erros que cometemos, mais do que os nossos acertos, que nos levam até Ele”. Se antes o discurso defendia o respeito às diferenças, agora, Padre Santo entende e revela que Deus está inclusive nas contradições, muitas delas indecifráveis a nós. Contudo, ele logo lembra desse exercício humano/humanizador que é a filosofia, matéria que se contenta em ser meio, em conjecturar perguntas e hipóteses, consciente de sua impossibilidade de ser fim (no sentido de finalidade, como é a Ciência no sentido contemporâneo). “Alguém tem que questionar o que precisa ser questionado”, decreta Padre Santo a Lívio, esse pastor-filósofo que, ao invés de aceitar A Palavra, coloca-a em crise, restaurando-a como fé mais do que como religião — a palavra como meio e não como fim.
A tríade sincrética se completa quando o roteiro puxa o rosto de Inácia, contrastado pela mata, na varanda de José Inocêncio; a brisa, esse marcador dos presságios, bate sobre ela, que traz seus cantos, não pela boca, mas pela alma. O rosto de Padre Santo, então, ressurge não mais como matéria, mas como reflexo, esse “espírito imagético” dissolvido nas águas do mar. É o rosto de Lívio, esse sim concreto, que entra em quadro para beijar a mão do amigo e apresentar, na expressão, a marca de uma epifania: de que há ali um duplo ritual de passagem — da alma (ao céu, no sentido bíblico, ou ao mar, esse manancial dos sonhos humanos?) e da missão, esse combustível misterioso das vidas carnais. Chico Diaz encerra sua participação encarnando um tipo bem diferente do que costuma fazer em televisão, potencializando aqui um recurso dúbio, posto nos últimos capítulos de Padre Santo: esse piscar trôpego do corpo que quer o descanso, mas que luta contra si, revolvendo os últimos rescaldos de uma vivacidade marcante, dessas que não se contentam à contenção de um só templo.
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– Agora noturna, a procissão para Padre Santo ganha outra visualidade, testemunhada pelos memorialistas Norberto, Rachid e José Inocêncio; este último, incluído na cena provavelmente para que a despedida de um personagem importante seja registrada pelo triunvirato de contadores. – Maria Santa surge para José Inocêncio; o travelling circular ao redor dele (e do manto) parece se estabelecer como código para as aparições e desaparições desse grande amor. Filmado numa decupagem econômica, o reencontro privilegia a proximidade entre Maria Santa e Inocêncio, algo que demorava a acontecer na cena original. A intervenção de Mariana e, principalmente, o desafio à Santa, não tem mais tom de molecagem; desta vez, é uma afronta rancorosa, dolorida, prontamente respondida por Maria Santa (e nosso olhar é “puxado” de uma a outra), que pede que Nossa Senhora perdoe Mariana. Parece detalhe, mas essa intercessão reconstrói Mariana a partir do olhar privilegiado (porque é espiritual) de Maria Santa — ela não mais é a terceira tocaia (como diz Inácia); é entocaiada nessa dor incurável dos desamores, e, portanto, digna de compaixão.
– Nesse sentido, o capítulo contrapôs bem o que Mariana e Sandra têm de mais comovente: Sandra comove por esse amor paciente, que se contenta em estar junto, pedindo pouco em troca. É uma personagem difícil porque, ao mesmo tempo que é dona de si, de seus desejos, tem nessa espera um fiapo de submissão, que precisa ser constantemente controlado (pelo autor, pela direção, pela atriz) para não enredar a personagem. Já Mariana comove por essa luta por abafar algo que ela intui: que na ânsia por restituir amores austeros, escolheu o caminho que deixa seu destino em aberto (nem Inácia vê). É uma personagem que se angustia ao perceber-se vórtice desses amores platônicos, incompletos, sem reciprocidades possíveis. Descontente com os fiapos que tem, Mariana não tem fio suficiente para costurá-la a um lar, a uma terra. É uma figura trágica, cujo arco está nesse amadurecimento da consciência de que não tem solo para se enraizar, de que permanece solta no mundo.
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– Vladimir Brichta faz Egídio como esse coronel-chaleira, que, entre vapores, assobios e transpirações (contidas com lenços), explode contra a filha e a esposa. Comparada à original, a cena escala; Teodoro gritava, mas não partia para a violência física, como Egídio faz; Brichta faz seu coronel mais destemperado e, por isso, mais imprevisível. O de Herson Capri dissimulava ou usava a garganta até quando podia; era um sujeito vaidoso, cuja truculência vinha escondida num ar de compostura, algo que Egídio tenta (em vão) pelo figurino, mas só. D. Patroa coroa o horror da situação com a Bíblia em punho, incapaz de sair em defesa da filha. Sandra, sim, defende a mãe; a cinta e as mãos fazem o plano detalhe simbólico, que concatena a cena toda.
– Uma violência inesperada desponta na cena seguinte, entre as duas: Sandra ouve da mãe que é uma “vagabunda”. Dita com todas as sílabas bem embocadas, a palavra surge não em meio ao calor de uma discussão, mas como um cálculo ardiloso dessa mulher que não aceita ouvir que o marido é abusador, e que, por isso, ataca a própria filha. Camila Morgado fecha os olhos e abre as mãos como se jogasse sobre Sandra o que, para D. Patroa, é uma verdade; e esse gesto de quem entrega algo absurdo como se fosse elementar corrobora o choque pelo uso da palavra. O contracampo revela o silêncio aturdido de Sandra, que, incrédula diante da crueldade das crenças maternas, balbucia a pergunta de quem quer achar que não ouviu bem — “como?”. – Realocado para a cachoeira, o encontro acidental entre João Pedro e Mariana ganha borogodó: antes declaração bucólica de um amor recalcado, a cena volta com os corpos encharcados, seja pela água que arrebenta (criando uma atmosfera própria ao redor de Mariana) ou que escorre do banho ou do suor. Nua, Mariana se levanta como uma Iara que não espera; vai até a terra para confrontar João Pedro. A cena, então, deixa o beat do desejo e passa ao beat desse amor cada vez mais descompassado, impregnado nesse jogo rosto a rosto, ambos em primeiríssimos planos. – Mentiras, de Adriana Calcanhoto, faz falta na trilha sonora.
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– Egídio e João Pedro, cara a cara. O confronto de 1993 tinha uma espacialidade de Era uma vez no Oeste, com os homens se distribuindo em abertura entre o alpendre (Deocleciano/Bonfim e Zinho/Santos) e o pátio externo (João/Palmeira e Teodoro/Capri). Desta vez, Egídio invade o alpendre e a própria estrutura de corredor remodela o duelo. Zinha aparece armada de palavras, que tentam recobrar a consciência de João Pedro, e com o próprio corpo, que “fecha” a porta, separando espaços interno e externo. Embora o protagonismo do duelo seja masculino, os olhares ao redor agora são exclusivamente femininos. Uma dessas mulheres escapa da casa e, ao se jogar diante do coração de João Pedro, arremata de vez o coração do público. É Sandra, que cumpre o seu “save the cat”. Não que João Pedro seja um gato indefeso, como na metáfora de Blake Snyder (cujo livro finalmente ganhou tradução), mas a ação de Sandra tem esse altruísmo irresistível, contundente em demarcar a torcida de quem assiste (no duplo sentido de quem vê e ajuda, como diz Christian Metz). – É interessante notar que Bruno Luperi mantém um profundo respeito pela aura da obra do avô, mas mexe nos ganchos, esse artifício vital ao folhetim. Em 1993, o confronto entre Teodoro e João Pedro suspendia a expectativa do telespectador, enquanto agora é cena nuclear do capítulo. É ao redor dela que pairam todas as outras.
– Mariana, por outro lado, se coloca (acho que pela primeira vez, de fato) como tocaia, quando, ardilosa, procura Egídio. Tocaia frustrada, é verdade, mas que se arma para tirar a rival do caminho: quer ter filho e pai em sua órbita, mas Inácia está em seu encalço (como demonstrou um conjunto de cenas do capítulo passado). A intriga plantada por Mariana poderia ter acabado em tragédia. Esse galpão de Egídio é um acerto da cenografia: espécie de porão enevoado, que abriga ardilosas transações, mas que não deixa de ter naquela vidraça — que faz de Mariana e Egídio figuras obscuras, silhuetas — uma fragilidade — pode-se vigiar, mas também ser vigiado. – Boa decupagem da cena em que Egídio cerca Iolanda: ela começa refletida no espelho, mas o coronel toma o espaço e puxa a câmera, que participa do jogo de investidas e fugas. O contra-plongéé ressalta a postura arcada e ameaçadora de Egídio; é como se ele estivesse prestes a avançar contra a esposa, que, em sua aflição, abre a brecha para o insight do marido. É na ideia diabólica que a câmera ganha tridimensionalidade, avançando vagarosamente em direção ao coronel, coroado pela pintura da mata ao fundo (verdejante como as roças de Inocêncio, que Egídio volta a vislumbrar).
59.
– A Eliana de Sophie Charlotte não é uma femme fatale como era a de Patrícia Pillar, mas sua ida à fazenda confina Buba e Venâncio numa cena noir, com os feixes de luz recortados pela persiana incidindo no olhar de Buba, que se preocupa em perder a ligação genuína que teve com Inocêncio (e entre mentiras e omissões, esta Buba é menos culpada do que a original). Eliana também é outra, menos cerebral e pior atriz nos trejeitos que cria para sua representação farsesca. Mas há uma consciência discursiva: a história que conta para enganar Inocêncio não tem os exageros e as mentiras irresponsáveis que Eliana contava num passeio entre as roças em 93. Lá, Eliana era calculadamente perigosa e seu amor por Venâncio dissimulava o fato de que ela não suportava perder (nem o marido, nem o patrimônio). Era a máxima representação do núcleo urbanoide e produto dessa modernidade não moderada que Renascer 1993 criticava. Alienada de saber e de sentir (porque acho que a atual não consegue sequer decifrar o que sente), a Eliana de Sophie Charlotte é escorregadia porque, como produto de tempos líquidos, ela própria está em liquefação — não à toa, ontem, se derretia no rímel, que lhe borrava a face toda. Ao chegar à fazenda, a Eliana de Pillar vislumbrava mais poder e, pouco a pouco, usurpava nacos do patriarcado, até acabar “coronela”. A de Charlotte parece ter uma jornada maior — antes de galgar qualquer coisa, ela precisa se solidificar de alguma forma.
– Se Eliana é mais comedida — e, na medida do possível, responsável — nas lorotas que conta, Rachid não mais aconselha Inocêncio a matar Teodoro/Egídio; além disso, ainda emenda um discurso pacifista. E se em 93 Kika negava para si mesma o término com Bento, a de agora está consciente e conformada com o fim. Isso tudo se dá em atualizações de diálogo, que trazem as cenas e as personagens ao tempo contemporâneo, construindo essa verossimilhança extra-dietética (que vincula o texto aos contextos) ao solucionar questões e discursos hoje inadmissíveis.
– Assim como Eliana, a Mariana de Esteves também disfarçava melhor a confusão de sentimentos por João Pedro, talvez porque Esteves traduzia esse conflito como uma ansiedade arfante, que saltava o colo (e o coração). Já Fonseca centra a personagem no olhar, ora destemido, ora desvencilhado, quase sempre com um ranço de ressentimento e uma umidade ambígua. Moleca, a Mariana de Esteves sempre encontrava algo para se ancorar (quando não estava sentada no chão); a de Fonseca parece não ter base ou apoio; por isso, conta só com o próprio corpo, que costuma se retrair até o momento final dos enfrentamentos, quando Mariana se desdobra, volta a crescer para contra-atacar. Curioso para ver como a Mariana atual surgirá no sonho a la Deus e o diabo, em que a personagem é noiva e viúva, anja e diaba entre pai e filho.
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https://www.youtube.com/watch?v=5D_tO2wz_LM
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– Li, dia desses, um jornalista incomodado com essa atual meticulosidade nos enquadramentos nas telenovelas (e compreendo a crítica como direcionada ao horário das 21:00). Me parece algo incontornável, principalmente desde que a narrativa seriada americana se complexifica, no começo dos anos 2000, e passa a influir no cenário/consumo televisivo brasileiro. O modo cinematográfico — single câmera — de filmar garante uma produção mais artesanal, com planos trabalhados individualmente (mas sem perder de vista que serão montados). Dito isso, concordo que a telenovela não deveria se desvencilhar por completo do multi-câmera (e acho que é inviável que o faça). Jeremy G. Butler fala sobre esse modelo, que, mesmo quando gravado, dá a sensação de “ao vivo”, ou de que poderia voltar a ser ao vivo. É um modo que se dobra ao drama, ao ritmo cênico dado pelos atores, que perde nas composições intrincadas, mas ganha numa certa naturalidade da cena. A discussão entre Eliana e Venâncio, com os cabelos e as mãos de Eliana “invadindo” o quadro de Venâncio (o ombro e o queixo dele no quadro dela) ilustra um uso do multi-câmera pertinente à cena: interessa ali menos o quadro milimétrico e mais essa captação orgânica da briga do casal.
– É curioso o olhar feminino lançado à Mariana de dentro da narrativa: as mulheres desconfiam das intenções dela, ao passo que sentem uma necessidade de aconselhá-la — sobretudo as vindas da cidade, talvez porque a considerem caipira, desentendida do mundo. Assim, Mariana ganha em Buba, Kika e, agora, Eliana, “mentoras-sem-querer”; quase mentoras-caídas, que confrontam a visão de mundo, supostamente ultrapassada, de Mariana. A questão é que Mariana é um mistério, então não se sabe se de fato ela é tão ingênua (e atrasada) quanto as outras creem. De qualquer forma, Eliana faz uma boa leitura do patriarcado dos Inocêncio e do “homem cordial”: esse clã que, ligado pelo sangue e por essa intimidade superficial, se arma ao menor perigo de mudança. São conservadores, que fazem concessões aos tempos, desde que eles sejam os mediadores (a agrofloresta como uma delas). Na novela original, isso já existia em certa medida: uma das poucas benesses da modernidade que Inocêncio admitia em seu mundo arcaico era a própria televisão. Aliás, esse é um entrecho que aguardo curioso, visto que, em 1993, era uma TV que chegava aos rincões pelas parabólicas (não à toa, Parabolicamará estava na trilha); agora, é uma TV que, se chegar, virá como meio já incorporado em outros dispositivos, mas que, no meio de uma sala, pode recentralizar e restaurar uma rotina familiar pulverizada.
– A calmaria antecede a virada que se aproxima: os Josés bebem e proseiam com Rachid, Deocleciano e Norberto. Esse tipo de cena cotidiana tempera a novela e constrói esse “sertão” acolhedor que, em 1993, anunciava o retrato que se estabeleceria na Retomada. Essa crônica do cotidiano tem aparecido mais na casa de Morena, com a família à mesa, mas aqui, protagonizada por homens, contrasta a intriga central ao capítulo, delineada por Eliana e Mariana. A casa de Jacutinga volta à cena e o movimento lateral da câmera auxilia na composição desse espaço na totalidade. Na novela original, a arquitetura da casa garantia que esse espaço fosse personagem; nesta, a casa depende de Norberto para chegar a tal. Nachtergaele domina essas cenas de Norberto embriagado (de pinga? Da casa? De amor?), em que a dança se faz nesses (auto) abraços e afagos farsescos, que tentam suprir a falta de Jacutinga. No fundo (e ao fundo), ela está em cena, representada na sereia de cabelos volumosos, que se ergue para apreciar a dança de Norberto.
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– Como na original, a cena em que José Venâncio conta a José Augusto que Buba é uma mulher trans se articula com uma conversa entre Buba e Teca. A diferença é que em 1993, era Buba quem catalisava esse encadeamento ao revelar à Teca ser hermafrodita (o termo usado hoje é intersexo). Desta vez, Teca já sabe; por isso, a revelação fica entre os irmãos, enquanto Gabriela Medeiros e Lívia Silva aprofundam a vida pregressa de Buba e a questão da rejeição parental durante a transição. A mise en scène é fundamental na delicadeza da cena: na cama, Teca senta-se atrás de Buba, que veste uma camiseta larga e tem o ombro exposto. Conforme Buba vai abrindo sua caixa de lembranças (e rejeições), Teca se aproxima, até recostar o queixo no ombro exposto, consumando essa fraternidade horizontal, rosto a rosto, pele a pele. – A conversa entre Augusto e Venâncio também é com os dois sentados no quarto, à beira da cama (o que traz essa intimidade da confidência para ambas as cenas). Se na original, Venâncio é quem assinalava os preconceitos do irmão diante da revelação de que Buba era intersexo, agora é Augusto quem rege a cena e aponta os preconceitos do próprio Venâncio. O diálogo é feito na medida entre a sensibilidade e o didatismo, e desde já sugere que Augusto é merecedor desse amor que ainda nem existe. A conversa por pouco não é flagrada por Eliana, que invade o quarto já dona de tudo. Augusto aproveita para se acertar com Zinha, outra boa cena do capítulo.
– Outros reposicionamentos são importantes nesse conjunto de cenas: em 1993, a conversa dos irmãos acontecia entre pastagens e cachoeiras; agora, fica no quarto, o que se por um lado conecta as cenas, por outro, expõe essa Renascer mais recolhida ao estúdio. Em seu livro recente, Rosane Svartman dá a métrica de uma novela contemporânea — 70% das cenas em estúdio, 20% na cidade cenográfica, 10% em locação. A atual Renascer provavelmente não tem tudo isso de estúdio; tampouco tem os 70% de externas de 1993, porcentagem declarada por Benedito Ruy Barbosa em entrevista que consta no livro de Maria Carmem Jacob de Souza. Para além dessa reconfiguração produtiva, há uma correção de sensibilidade nas duas cenas, com o tom das personagens e os diálogos mais condizentes aos dias de hoje. Na original, além do evidente preconceito de Augusto, a conversa entre Buba e Teca escorregava para um humor involuntário e inapropriado, realçado pelo contraste das atuações (Buba oscilava nas motivações; Teca fazia caras e bocas). A impressão é que, antes, o texto queria dilatar a curiosidade do espectador sobre a característica intersexo, e pecava nisso ao espetacularizar a questão . Agora, privilegia a emoção, que é o caminho mais seguro para educar o público.
– As cenas entre Vladimir Brichta e Breno da Matta têm nuances discretas (e, por isso mesmo, interessantes, desafiadoras) nessa troca de disputas veladas (mas nem sempre) que há entre eles. Desta vez, Lívio sobe o tom e deixa escapar algo que estava incógnito nesse personagem de fala mansa. Abre brecha para querermos saber mais desse sujeito meio sem eira nem beira. Dali, Egídio segue até Tião para enganchá-lo na cena em que eles se encaram como animais: Tião numa postura que parece replicar sua galinha; Egídio abaixando-se para desafiá-lo, os braços apoiados nas pernas abrindo os ombros de gorila para cima do empregado.
63.
– Daniel Filho diz que a telenovela é “a grande fofoca”, que se alastra país afora pelo boca a boca. Essa dimensão agregadora — que inclui possibilidades de democratizações — é característica de um gênero fundamentado no e para o olhar feminino (Tania Modleski e John Fiske são autores que discorrem bem sobre isso), mas que desde “Irmãos Coragem” se preocupa em incluir o público masculino (e é bem-sucedida nisso). Assim, a telenovela propõe uma negociação entre cenas climáticas e uma fragmentação reiterativa, responsável por propagar a “fofoca” (e por atrair novos fofoqueiros). Ainda assim, mesmo num país que a telenovela continua a grande narrativa massiva e popular, ecoa a ideia de que “novela é coisa de mulher” (noutras culturas, então, nem se fala! Uma vez, ao falar sobre meu estudo, ouvi de um estrangeiro — this is woman thing!). Nesse sentido, é de uma pedagogia sutil a ideia de explicitar que os homens, contadores de causos, são, no fundo, grandes fofoqueiros — consequentemente, noveleiros. Tanto que Rachid se enfia, sorrateiramente, entre Norberto e Lívio para não perder uma boa fofoca; cena inspiradíssima, coisa de quem entende de narrativa e de mise en scène — o plano final coloca o público entre os fuxiqueiros e Norberto frisa nossa presença no balcão.
– Acho curioso que, em 1993, o maneirismo de Renascer bebia numa certa teatralidade, que, no entanto, arejava Tião e Joana, pelo nesse momento da trama: o falar não era exatamente naturalista, mas os gestos eram, e Tião conseguia sorrir. Agora, Tião é, desde já, um sujeito consumido, que vai se animalizando nos gestos e posturas, enquanto Joana teme, mas ao invés de transbordar, petrifica. Uma gestualidade que não exatamente estava nas personagens anteriores, mas que, paradoxalmente, extravasa daquela novela para esta, cuja proposta é mais realista.
– Eliana se solidifica: ela se torna mulher fatal (na anterior, era desde o começo) e, para isso, empresta códigos do mais masculino dos gêneros — o western. O que, por si só, faz de Renascer um western revisitado, um metawestern. Como se chegasse num saloon, ela desponta como silhueta de chapéu, que barra a porta e aprisiona Damião. Mas Eliana não é um cowboy chinfrim, desses que simplesmente entram em passos duros; ela rouba e refaz uma encenação inesperada, do filme de horror — em primeiro plano, Damião a vela e desvela, e nesse movimento pendular, Eliana se aproxima, entocaia o jagunço. Ele, então, tenta recobrar poder ao inverter a posição, mas Eliana volta ao início, à entrada, anunciando que o jogo na próxima cena ganhará verticalidade.
Na volta dos comerciais, ela é vista num contra-plongée pela fenda da barcaça, para onde se retira quando Damião desloca a cobertura. A luz muda e remete à primeira cena, com uma diferença: Eliana sobe as escadas e, pouco a pouco, deixa de ser sombra — ela arde com a pele em cor de cobre. Se em 1993, a cena tinha uma passagem de montagem dialética para simbolizar o desejo, a questão agora está nas peles que brilham, no contraluz que delineia as formas, nos rostos rentes. Ah, e, desta vez, é ela quem controla a situação (“quero lhe usar como sempre fui usada”, diz a Damião). Eliana renasce sob uma espécie de determinismo social, como se as engrenagens dessa fazenda-clã incitassem a apropriação do que lhe interessa das masculinidades ao redor para que ela renegocie essa usurpação como mulher. No fundo, a jornada de Eliana é “simples”: ela quer garantir aquilo que ganha pela primeira vez — poder. Poder para satisfazer seus desejos.
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– Eliana e Damião abrem o capítulo, suspendendo o jogo de seduções começado no anterior. Se em 1993 o quase tapa replicava um avanço indevido de Damião, agora aparece para responder ao recuo/rejeição dele, tomado por uma súbita (e frágil) crise de consciência. Antes, a relação parecia mais equilibrada (o “confronto” entre dois perigosos); agora, o jagunço entra nela em desigualdade: é Eliana quem manipula as aproximações inevitáveis nessa trama de desejos, singular ao dar vazão a outros tantos recalcados — como o que há entre Mariana e João Pedro, esse sim, mais equilibrado. Isso porque, na anterior, Mariana desejava João (até sonhava com ele), mas o rapaz correspondia com um amor platônico, “desencarnado”. A crise com Sandra, deflagrada neste mesmo capítulo, é porque ela percebe não o amor, mas o desejo mútuo, ambíguo nesse recalque escancarado na cena em que Inocêncio cobra o casamento do filho com Sandra. Era um momento em que a Mariana de Esteves ficava na entoca, nas bordas da cena, enquanto cabia ao Inocêncio de Fagundes confrontar o jovem casal . A Mariana de Fonseca contrapõe o casal à mesa; Inocêncio continua liderando o aspecto racional da confrontação, mas fica quase como um mediador. É Mariana que, ora sonsa, ora explicitamente ardilosa, provoca Sandra e João. Inclusive, desta vez, fala na cara — “gosta, mas não ama”. O estopim para a crise chega na casa de Morena, sem a insinuação incabível (mas que estava na original) de que Sandra era “quenguinha”. A questão agora é que, sem querer, Sandra talvez se arme como tocaia. Tanto quanto Mariana. Em sua maternidade apreensiva, Morena, sem perceber, ecoa a visão de mundo desses homens — mulheres, quando não são salvação (como Maria Santa, caráter que Bento reitera no capítulo), são tocaias.
– Não me lembro desse entrecho entre Bento e Teodoro (existia? Ajudem uma “mente apertada”), mas Brichta deita e rola na cena em que Egídio ameaça “depelar” o mais bon vivant dos Inocêncios. Egídio se desenrola entre a ameaça pragmática, sem aparas, e o deboche, que culmina num riso largo — não como o do pai, feito só de lábios prestes a revelarem a língua de lagarto; mas um pica-pau com dentes grandes, capazes de “depelarem” tanto no bico quanto na mordida. O grande plano da cena é aquele em que a câmera alta capta os dois ao redor da mesa: Bento engolido (pela cadeira, pelas sombras que o contornam nesse escritório árido), Egídio longilíneo na poltrona, o visual surpreendentemente alinhado entre o coronel arcaico e grande empresário das modernidades predatórias, coisas que costumam ser perigosas por estas bandas.
– A escalação de Edvana Carvalho transforma Inácia em uma opositora vivaz e altiva. Não que a de Chica Xavier não descompensasse os outros através das palavras, mas os confrontados costumavam desmerecer a “velha sábia” sempre que lhes convinha — Inácia “tava caducando” sempre que era oportuno aos que ouviam suas verdades. A de Edvana enfia as verdades goela abaixo. O embate verbal com Eliana é prova disso.
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– Sandra chega à casa de Jacutinga. Em 1993, a cena era longa e se dividia em três movimentos — a descoberta de Sandra, a saudade de Norberto e o flashback da própria casa, um jogral musical com Morena, Flor e Juliete (na verdade, um falso flashback; provavelmente, uma cena gravada e não usada na 1ª fase). A câmara pairava fantasmática, como se, ali, entrasse em outro batimento e dimensão. Em minha tese, escrevi:
“Dentro do espaço fálico que é esse sertão cordial, instaura-se uma caixa de Pandora às avessas: não aquela de sentido misógino, da “mulher como origem dos males do mundo” (MALUF; MELLO; PEDRO, 2005)*, mas a ideia defendida por Laura Mulvey, em que a caixa “representa o espaço proibido do universo feminino e o inefável da sexualidade feminina” (MULVEY apud MALUF; MELLO; PEDRO, 2005). Nesse lugar ocupado e regido pelas mulheres, a câmera exacerba sua curiosidade feminina para investigar a casa, explorá-la em planos longos, gruas e steadicams. De forma singular, o estilo se coloca a mercê do espaço e das existências que o ocupam, principalmente por meio da mise en scène. Não um espaço qualquer, mas um espaço único em meio a esse lugar regulado por homens.”
Até aqui, a casa não encontrou essa vida própria; ela depende das memórias de Norberto, que, nesta versão, é quem dá as pulsações do lugar, a depender de seu estado de espírito. A sintonia de Sandra é menos com a casa, e mais com essa lembrança construída/narrada de Jacutinga — e essa dimensão mitológica que a personagem ganha a equipara a José Inocêncio na trama. Um ponto interessante é a confissão de Norberto, que espera a volta do grande amor; e, embora haja uma série de questões produtivas para se trazer uma atriz de volta, a fala abre brecha para que Juliana Paes retorne para o desfecho de Norberto. Não seria nada inédito no universo de Benedito Ruy Barbosa: em O Rei do Gado, os personagens da 1ª fase voltavam como fantasmas; em Esperança, Maria (Priscila Fantin) reencontrava a avó (Fernanda Montenegro) nos últimos capítulos. A cena termina com Sandra dizendo querer a casa: ela não olha exatamente para a câmera, mas é um olhar frontal, expositor da determinação dessa personagem, que refundará a casa como uma espécie de abrigo aos que serão “cuspidos” das fazendas.
– Falei esses dias do deslocamento dos ganchos como uma das estratégias de Bruno Luperi, mas há outra bastante importante: a redistribuição de linhas de diálogos, priorizando um melhor equilíbrio entre o elenco em cena. Por exemplo: na original, era Inocêncio quem dizia à Eliana que ela estava deixando de ser sua nora; nesta, a colocação vai para a boca de Inácia. Já observei isso em outros comentários, mas só agora me dou conta de que é um procedimento que, de certa forma, traz mais equidade às falas (e tenho a impressão de que a maior beneficiária é Mariana, que aumenta sua voz). – Bonito o plano em que Iolanda reflete na água da pia, como se tivesse desidratado de tanto chorar. Também interessante a readequação da religiosidade não para oprimir, mas para proteger a filha. Talvez seja o primeiro momento em que a personagem aponta efetivamente sentido à mudança. Rachid está logo ali, na rede, mas vai se afeiçoar pela filha para depois se apaixonar pela mãe.
*MALUF, Sônia Weidner; MELLO, Cecilia Antakly de; PEDRO, Vanessa. Políticas do olhar: feminismo e cinema em Laura Mulvey. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 343- 350, Aug. 2005.
66.
– Como representar e filmar o sexo, essa “pequena morte”, como metaforiza o crítico André Bazin? Essa é uma das perguntas que percorrem a história do cinema; esteve em voga agora mesmo, por conta de Pobres criaturas. O próprio Bazin constata a contradição entre evocar e tudo mostrar, assumindo não ultrapassá-la. Um ponto tem sido central nos debates contemporâneos: como filmar o sexo sem recair nos velhos vícios da objetificação dos corpos (o feminino, principalmente)? A cena sexual entre Eliana e Damião não se tornou trending topic à toa. Primeiro porque rompe um paradoxo pudico, que passa pela telenovela (mas penso ter um aspecto cultural mais amplo) — os corpos continuam em representações hiper sensualizadas, mas as representações admitem cada vez menos o sexo. Segundo, porque entra em jogo a questão do fetiche, recorrente na telenovela, mas quase sempre na chave cômica do ridículo (basta ver as novelas de Aguinaldo Silva). Aqui, o fetiche parte de Eliana, no plano viral em que a mão dela agarra o pescoço de Damião; a frase “eu sou sua patroa” pontua esse poder recém-adquirido, que subverte as opressões masculinas a partir do desejo feminino (ainda que uma outra opressão se abra contra outra mulher, empregada; mas Ritinha não deixará por menos). É o desejo e o prazer de Eliana que decupam a cena, que fazem com que o fetiche sexual se desloque do olhar fetichista: o erotismo desponta nas costas que se despem da toalha, mas o sexo em si prioriza não a espetacularização dos corpos (que não deixam de estar em cena), mas os movimentos das mãos de Eliana (sobre o pescoço, os braços, o travesseiro) e do rosto dela, que entra e sai de foco. O rímel volta a borrar; não mais pelo choro por José Venâncio.
– Como representar e filmar o sexo, essa “pequena morte”, como metaforiza o crítico André Bazin? Essa é uma das perguntas que percorrem a história do cinema; esteve em voga agora mesmo, por conta de Pobres criaturas. O próprio Bazin constata a contradição entre evocar e tudo mostrar, assumindo não ultrapassá-la. Um ponto tem sido central nos debates contemporâneos: como filmar o sexo sem recair nos velhos vícios da objetificação dos corpos (o feminino, principalmente)? A cena sexual entre Eliana e Damião não se tornou trending topic à toa. Primeiro porque rompe um paradoxo pudico, que passa pela telenovela (mas penso ter um aspecto cultural mais amplo) — os corpos continuam em representações hiper sensualizadas, mas as representações admitem cada vez menos o sexo. Segundo, porque entra em jogo a questão do fetiche, recorrente na telenovela, mas quase sempre na chave cômica do ridículo (basta ver as novelas de Aguinaldo Silva). Aqui, o fetiche parte de Eliana, no plano viral em que a mão dela agarra o pescoço de Damião; a frase “eu sou sua patroa” pontua esse poder recém-adquirido, que subverte as opressões masculinas a partir do desejo feminino (ainda que uma outra opressão se abra contra outra mulher, empregada; mas Ritinha não deixará por menos). É o desejo e o prazer de Eliana que decupam a cena, que fazem com que o fetiche sexual se desloque do olhar fetichista: o erotismo desponta nas costas que se despem da toalha, mas o sexo em si prioriza não a espetacularização dos corpos (que não deixam de estar em cena), mas os movimentos das mãos de Eliana (sobre o pescoço, os braços, o travesseiro) e do rosto dela, que entra e sai de foco. O rímel volta a borrar; não mais pelo choro por José Venâncio.
+ https://www.youtube.com/watch?v=l0yimt3qcZ4
67.
– Ao invés de Zinha (como em 1993), é Deocleciano quem flagra Eliana e Damião. É o velho braço direito de Inocêncio quem, portanto, confronta o novo braço direito. Abre-se sobre a mesa um embate de Damiões, campo e contracampo em perfis: a aba do boné investe contra o chapéu, que não deixa por menos; Jackson Antunes ressuscita, em Deocleciano, seu Damião faiscante, olhos apertados e dicção cantada na dureza. O primeiro plano da cena — a fachada do escritório sob sombras que desafiam a simetria — poderia ser uma pintura, como se Edward Hopper tivesse sido convidado para compor um quadro desse sertão. – A essa altura, a Mariana de Esteves se consumia de ciúme de João Pedro, mas era um ciúme quieto, que a devorava por dentro, mas pouco se expunha para além de colocá-la cabisbaixa. A Mariana atual não controla esse ciúme; persegue João Pedro, impede a entrada dele no carro. Tudo isso sob as barbas de Inocêncio. Mais do que dar vazão ao sentimento, ela parece fazer questão de expor esse descontrole, que deve escalar nos próximos capítulos. Outra diferença da original é que, na ausência de Sandra, havia uma breve reaproximação entre João e Lú, o que, por ora, não aconteceu.
– Se o estudo de José Augusto não salvou Jupará (e nesta, ele parece um médico mais competente do que o de Marco Ricca), sua visão de mundo progressista e mais equitária pode ajudar a tirar Zinha desse lugar em que ela se coloca em busca de uma feminilidade calculada pelos códigos patriarcais. O diálogo entre eles serve tanto para reorientá-la quanto para expor Augusto como um Inocêncio à frente dos outros (na questão dos gêneros, talvez até do que de João Pedro). É curioso que, nessa tentativa de trânsito, da lida na roça à lida doméstica, Zinha para no meio do caminho, nessa lida com o cacau entre quatro paredes. – Além da prosa, a venda de Norberto vai ganhando vida entre o alaúde árabe de Rachid e a sinuquinha que rola atrás. Forte também a composição de Egídio (de pé) e Tião, sentado, descalçando as botas, como se ali estivesse um último plano de subserviência antes do rompimento.
– Damião entrava pela janela de Eliana na original? #MarcosMezengaFeelings.
68.*
– Mariana vive o tédio de uma vida doméstica cada vez mais esvaziada, porque sequer lhe é dada autonomia para que a viva sob os códigos do patriarcado. Ela nunca vislumbrou uma possibilidade para si — para além de ser a esposa-imagem do coronel — nessa fazenda (Buba encontrou os livros de Inocêncio; Eliana se encontrou). Mariana não gira, não é engrenagem; quando quis atuar na escola, foi podada. Ela confronta José Inocêncio (que escapa para encontrar Maria Santa), mas transborda na conversa feminina, à mesa, com Inácia. Theresa Fonseca dá dois movimentos à personagem: primeiro, Mariana aparece cansada, os olhos ralentando, como se reagissem com um delay às palavras de Inácia. Mas Maria Santa surge na conversa, muda o beat da cena e a motivação de Mariana: os olhos se arregalam diante da menção à assombração. Cintilam até que um deles escorre (Fonseca usa como recurso essa lágrima única, espremida a um dos olhos, que escapa, suicida, num choro que nunca se completa). A mão, o dedo em riste, ora é usado para apontar o que está no extracampo (a santa e Maria Santa), ora para conter os lábios, a fala, para pontuar os silêncios que delineiam o discurso embargado. Esmurra a cadeira, como se martelasse uma decisão, antes de abrir os braços, decidida de que é Inocêncio quem precisa se decidir.
A confrontação do casal vem no gancho, na longa cena que transita do corredor à sala. Raso pelo desfoque e sob uma luz “controladamente” estourada, o espaço salienta o campo e contracampo dos atores (Mariana quase sempre cabe no quadro, Inocêncio quase sempre o ultrapassa). “Maria Santa está morta” é a frase que ela joga como desafio ao protagonista, lembrando que o protagonista é geralmente a personificação do tema. Mariana desafia Inocêncio a admitir e pronunciar a morte; ele que crê e incorpora o Renascer. Aos poucos, ela vai minando o autocontrole de Inocêncio, mas acusar os filhos de frouxos não tira o pai do sério. O golpe vem quando Mariana diz que Maria Santa é fraca; fraqueza provavelmente projetada — a voz de Mariana esganiça, some, quando ela implora “tira ela daqui”. Epifania dura a dela, entender que, como carne e osso, sobrevive menos do que a Santa, o símbolo. Para renascer, Mariana talvez tenha que matar algo ou alguém. Ou morrer.
– Uma série de planos quase estáticos têm começado as cenas sob frontalidades impactantes, pictóricas. Os coloco nos frames abaixo:
69.
– Mariana e José Inocêncio se separam. A cena começa numa câmara baixa, com o rack focus levando dos pés de Inocêncio aos de Mariana, que larga as malas no chão. “Ele vai ter que escolher com qual das duas vai querer ficar”, encurrala Mariana. Inocêncio não se move para além de uma inspiração. Não há mais palavra a ser dita, fôlego a ser gasto: a separação cabe numa elipse. O rosto de Mariana ressurge no mesmo canto em que estava o de Inocêncio, mas em outro lugar — na casa de Morena, que, antes, era a casa de Belarmino. “Tá tudo do jeito como era antes”, diz Morena, que em Ana Cecília Costa, não tem a mesma devoção a patrão. Mariana, então, conversa consigo, com a memória da avó. O rosto é mergulhado em sombras, texturizado pelo fiapo de luz que se desenha nas cortinas. “É tudo sobre ela [Maria Santa]”, ela diz, antes de se ajeitar entre o espelho (o duplo) e a cruz na parede.
– Bom o confronto entre Inocêncio e Egídio: Inocêncio não permite que aqueles de quem desconfia ponham os pés na escada da casa, esse lugar sagrado; é ele quem desce. Ele abre as portas do depósito como quem abre a porta de um saloon: dentro, a câmera recua num contra-plongée enevoado; depois, avança como uma bala, que paira sobre as nucas. Egídio, então, puxa a cena e a câmera em seu deleite com o cacau. Forma-se uma composição “descomposta” em tanta tensão: Inocêncio, desfocado em primeiro plano, tem o inimigo às costas, focado, e o jagunço do outro à espreita, num canto da orelha. – Se Mariana tem seu duplo, Inocêncio também tem no flashback-fantasma, que se coloca lado a lado do atual. O facão de Humberto Carrão toca o rosto de Marcos Palmeira, ante amuleto, agora ameaça. Este gancho faz Inocêncio voltar à árvore em cena inédita (em 1993, havia um flashback da cena do facão no capítulo 95). O início tem enquadramentos e atmosfera que remetem à primeira cena, com Leonardo Vieira, da novela anterior.
70.*
– Mariana sente a casa e encontra o avô, Belarmino; na original, um flashback do personagem, então vivido por José Wilker, se estabelecia como visão dela. Belarmino ressurge “abençoando” (a mão pousa na cabeça e acaricia os cabelos) e instigando a neta “você tem em tuas mãos […] a vida de José Inocêncio”. A montagem entra para estilhaçar a sequência nos elementos simbólicos da novela — o Jequitibá, o facão, Inocêncio e a encruzilhada. Quando Mariana, só rosto, renova a vingança no subtexto irônico da frase “é justo, é muito justo, é justíssimo”, João Pedro aparece para contrapor o fantasma; o bordão é herança, promessa e mediação entre vivos e mortos. Tomara que os fantasmas permaneçam nesta novela sobre permanências. – Lú adere à causa de Mariana e essa empatia pode conduzir/auxiliar o público a sentir o mesmo pela protagonista (em 1993, era menos um movimento de compreensão e mais de pena). Mas Mariana encontra em Eliana seu diabinho de desenho animado: em um plano que evoca e imagem mais célebre de Persona, de Bergman, Eliana surge sobre o ombro de Mariana, como um grilo falante com intenções duvidosas. Com Adriana Esteves e Patrícia Pillar, a cena era um jogo de xadrez, com cada uma avançando posições cuidadosas pela sala; agora, Eliana acua Mariana, rosto a rosto (o contragolpe deve vir no próximo capítulo).
– Eliana faz questão de chamar os Inocêncios de clã, organização hereditária, sanguínea, que é coração da família estendida, circulante, comunitária. Também ressalta a inocência presumida desde o nome — “um herói”; “sempre vai fazer o que é certo, o que é justo”; “pode até errar […], mas ele vai dar um jeito de consertar, de se redimir”. Eliana comete uma contradição curiosa: ela, que quer seus direitos na justiça da esfera pública, aconselha Mariana a crer na consciência justa (será?) de José Inocêncio. Eliana usurpa para si o conceito/posição de “homem cordial”. – Morena pega o rosto de João Pedro entre as mãos; mãe que afaga com uma mão (sobre os cabelos) e ergue a cabeça do filho com a outra — “meu filho, quando que tu vai deixar de ser a sombra do teu pai e vai buscar tua luz?”. Cena que não estava (pelo menos não aqui) na 1ª versão.
71.
– Nessa Renascer do realismo, um plano carregado do artificialismo à la LF Carvalho se intromete: falo do travelling in em direção a Inocêncio e Egídio, ombro a ombro; ao fundo, a marcação rigorosamente posada dos figurantes contrasta ao vento que tremula (sem qualquer rigor) os picotes que enfeitam o forro. Lado a lado, os coronéis se diferenciam imageticamente: suada, a camiseta cor-de-cacau contrasta ao blazer que se anuncia empreendedor e ao lenço que amarra Egídio a modos/modelos passados. Norberto vai nuançando seus olhares para nós (até porque, já estamos espertos, cúmplices). A presença de Rachid é importante, pois logo ele será outra presença antagônica a Egídio.
– Mariana e Eliana são personagens com convergências, mas a segunda delimita, em uma frase, a diferença entre elas — Mariana quer ser amada, Eliana quer ser feliz.
– José Venâncio surgiu em cena infeliz com uma festa surpresa organizada por Eliana. Agora, quando outra festa o pega de surpresa (pouco antes de sua saída de cena), a infelicidade se expõe novamente, só que desta vez, na relação com Buba. Esse espelhamento sugere que a raiz do problema não é Buba ou Eliana, mas o próprio Venâncio; e Rodrigo Simas o faz como um sujeito que parece sempre perdido diante do mundo que corre à frente e escorre pelas mãos. Um moço tomado de letargia que, não à toa, receberá sem ver a bala que lhe será letal. Enquanto isso, uma outra Buba nasce em cena.
– O sonho de Mariana… fica para o próximo post.
72.
– Se há uma cena obrigatória na Renascer original, é o sonho de Mariana, no capítulo 53. Trata-se de uma redução onírica do conflito central, que também opera uma síntese estilística da direção maneirista de Luiz Fernando Carvalho e da referência que ele traz do Cinema Novo — se o sonho começa calcado na mise en scène de João Pedro e Mariana (e no vestido de noiva, cujo véu esvoaça para o extracampo como em Cantando na chuva), a entrada de Fagundes embaralha a montagem, que se torna rítmica; é quando a cena incorpora Glauber, principalmente Deus e o diabo na terra do sol. Em 2024, o sonho vem embalado em outro gênero; é uma cena de horror, não mais sob o sol ardiloso, mas na escuridão do quarto. Ao invés de pai e filho apontarem os longos canos de espingarda um para outro, desta vez um facão é erguido para ser fincado em João Pedro (o que é interessante, já que é João quem “matará” o pai; não fincando, mas retirando o facão da terra). É uma cena condizente com a releitura, mas sem o impacto da de 1993.
– Buba sobe o tom e Bruno Luperi corrige um dos problemas mais graves da Renascer anterior. Isso porque, se a Buba intersexo de Maria Luísa Mendonça era aceita sem muita crise pelo coronel(ismo), era porque (ao contrário de Eliana) ela se submetia a todos os códigos de imagem e comportamento cobrados pelo patriarcado — era (como se dizia há alguns anos) uma mulher bela, recatada (sempre escondida em vestidos discretos) e do lar (deixava o trabalho para se dedicar à casa). Pensando nisso, é curiosa a composição de Gabriela Medeiros: sua Buba sempre foi mais altiva e consciente, mas a voz parecia brincar com certo maneirismo (uma imitação torcida) ao retomar a doçura excessiva impressa por Mendonça. Isso tem se transformado gradativamente ao longo dos capítulos e explode agora, com uma confrontação inevitável — ela, uma mulher trans, tem como companheiro um homem transfóbico. Dramática, a cena com Venâncio é didática ao contrastar a Buba que ele enclausura no apartamento e a Buba que tem outra vida — amigas, rituais — para além dos Inocêncio. É uma virada de chave para a personagem, que possibilita novos horizontes ao futuro dela.
– É interessante que Augusto surja paralelamente com Zinha, apontando à ela aquilo que Judith Butler nos fala: que gêneros são performativos; performances que, sob o patriarcado, são colocadas sob uma dicotomia redutora para que haja a manutenção das relações de poder. A questão de Zinha é que ela é uma mulher cis, mas que atrela sua homossexualidade a uma performatividade que, equivocadamente (educada pelo patriarcado), considera masculina (e Zinha tenta performar sob uma “feminilidade machista” crendo que, assim, anulará a homossexualidade). Augusto é quem aponta à ela o quanto essa compreensão é redutora (ainda que sequer entre diretamente na sexualidade da personagem). Aliás, Renan Monteiro sempre garante boas dobradinhas — com Mell Muzillo, Samantha Jones, Juan Paiva, Marcos Palmeira, ele faz de Augusto esse sujeito de uma sensibilidade complexa e desconcertante, mesmo nas cenas mais corriqueiras.
– Quando escreveu Os Donos do Poder, Raymundo Faoro dizia que não havia sentido falar em classes sociais no Brasil, já que esse conceito supunha uma possibilidade de mobilidade que inexistia aqui. Defendia, então, que a sociedade brasileira era estamental, feita de uma estratificação mais permanente e inflexível. Tião parece ter consciência disso; tanto que crê que só um milagre pode fazê-lo migrar de uma classe à outra. Todo o rito que ele cumpre é para que esse milagre ocorra pelas mãos do diabo, talvez porque intua que, numa sociedade de divisões tão injustas, Deus deve ter lhes virado as costas. Essa fé é seu único combustível, aquilo que o manterá vivo até que se quebre. Literalmente.
+ https://www.youtube.com/watch?v=N-thQ6IjEys&t=56s
73.
– A sombra projetada, como numa lanterna mágica, tem sido um recurso recorrente nas cenas de Tião e Joana, e assume uma significação polivalente. A mais imediata é a da perda da identidade; a sombra surge quando Tião tira o ovo do sovaco, ou seja, deixa de ser Tião para ser o homem da galinha. Há outras possibilidades: a sombra como representação antagônica (o defeito, o misbehavior de Tião), mas também como sombra que se desprega do corpo para representar a tolice infantil desse trato (Tião como criança enganada). Dura lanterna mágica de um Peter Pan desavisado.
– Algumas cenas mudam de tom: Inocêncio/Fagundes não gostava nada de saber da sociedade entre Sandra e Rachid; o de Palmeira acha graça. O assédio de Teodoro à Joana vinha entre acordes debochados, quase cômicos; agora a cena é reposicionada à seriedade que exige.
– Sombreada é também a cena em que Mariana e Inocêncio se acertam: ele enfim se compadece da dor dela, que se desespera e veste Maria Santa. Esse, aliás, é um desdobramento interessante: a Mariana de Adriana Esteves passava o casamento enfiada em vestidos, tentando, em vão, compor-se como Maria Santa; quando separada, Mariana passava a usar figurinos em duas peças. Mas voltemos às sombras: Inocêncio enternece, mas pela voz, pois o rosto segue mergulhado na penumbra (o que é conveniente para esconder a dor). Mariana é meia-lua (crescente ou minguante?), que dá mais a cara a bater; ela transborda quando Inocêncio a recobre com o manto. Cena dura, que vai amolecendo no jogo entre os atores até desencadear os acordes ternos de “Quero você”.
– Norberto não só comenta, como promete: até o fim do capítulo, Egídio saberá que Sandra reabriu a casa de Jacutinga. Encontra nova função — a de enganchar o telespectador em meio ao capítulo.
74.
– Camila Morgado vai, aos poucos, controlando melhor essa Iolanda, mais desafiadora do que a de Eliane Giardini. Isso porque um dos polos da personagem está mais distante do outro que se mantém: a mulher que toma consciência de si, de seus desejos (e recalques), tem agora na outra ponta essa caricatura, às vezes cômica, às vezes revoltante. Mas Morgado vem trazendo a personagem sentido à mudança, ao despertar, deixando a outra parte para temperar a cena, como ontem, no momento em que ela encara a sereia seminua na casa de Jacutinga. A frase que a sacode vem de Sandra — aos olhos dele [Egídio], somos todas quengas. Réplica dolorosa a uma cena lá de trás, quando a mãe chamou a filha de vagabunda.
– Venâncio se torna o motor dessa bola de neve das mentiras familiares (em 1993, Buba tinha uma corresponsabilidade maior). Mais uma vez, ele tenta enredá-la, quer convencê-la a postergar a verdade, a esperar, e, durante esse beat, a cena tem a esperteza de posicionar sobre as falas dele, a subida gradual dos acordes instrumentais da canção-tema. É como se a música alinhavasse esse fio de Venâncio, para explodir (“eu não sei dançar tão devagar pra te acompanhar”) na consolidação/reiteração da palavra final de Buba — “eu não vou mais mentir para o seu pai”. Uso pontual e inteligente da música em cena.
– Às vezes, as mudanças de uma adaptação vêm nas pequenas engrenagens de uma cena: Mariana, por exemplo, não mais dá com a língua nos dentes sobre o caso de Eliana e Damião; manda que Inocêncio descubra sozinho. Parece pouca coisa, mas esse instante de lealdade fortalece não só o protagonismo de Mariana, como a relação dela com Eliana. Ao promover pequenos deslocamentos (coisas que antes estavam em uma boca, agora voltam em outra), omissões e mudanças de diálogos, Bruno Luperi provoca uma sensação de déjà vu, mas que, ao mesmo tempo, reapresenta não um campo, mas um contracampo — é a mesma coisa, mas não é; é outra, deslocada, oposta. Em vários desses momentos lembro de Síndromes e um século, filme em que o tailandês Apitchatpong filma e refilma os mesmos diálogos mudando espaços e pontos de vista (ou seja, mudando tudo!). Renascer 2024 faz um pouco disso em relação à Renascer original.
75.
– As insinuações de Eliana sobre Buba são mais cuidadosas; uma remodelação de texto (esta Eliana sabe menos) e de contexto (outros tempos, outra novela). Eliana provoca Inocêncio justamente pela falha paterna, a distância que ele mantém dos filhos. Originalmente, Patrícia Pillar subia a voz para confrontar o Inocêncio austero de Fagundes. Agora, Eliana desafia o Inocêncio de Palmeira na mesma moeda, no tom deste protagonista: nessa troca de farpas em que o tom contido é sempre dúbio, a fala dura, mas baixa, civilizada, carrega um deboche fino, desafiador. Dali, ela segue para ver Damião, que queima sob o sol duro que bate certeiro no boné. No contracampo, Eliana já está uma luz rebatida, mais branca e suave, como se ali já estivesse noutro mundo. A despedida de Mariana deixa uma brecha na empatia entre elas, por mais que Mariana, desta vez, não a tenha denunciado.
– É interessante esse posicionamento recorrente de Teca entre Buba e Venâncio, como uma filha que, impotente, assiste o divórcio dos pais. A Teca de Lívia Silva é mais madura e sensata do que a de Paloma Duarte; talvez seja ela o ponto de equilíbrio que faz essa família perdurar. Em 1993, a ideia da falsa barriga era de Buba; desta vez é plantada por José Augusto (quem diria, hein!) e executada por José Venâncio, surgindo como a provável última gota no copo — ao menos, é o que sugere a entrada de Buba diante do sogro, talvez um dos planos mais desafiadores interpretados por Gabriela Medeiros. Ela surge tentando atuar um acolhimento que contrasta ao andar sorumbático e à feição abatida, sintomas de uma mulher arrastada nesse relacionamento. Não sustenta sequer o olhar em meio à mentira arquitetada pelos Inocêncio (é tudo sobre eles, como diz Mariana).
– O passeio de Sandra “abrindo” a casa de Jacutinga — com João Pedro e Augusto às costas — remete à cena original, que era um plano sequência ousadíssimo no trânsito entre os andares da casa e nas recomposições de uma encenação recessiva que aproxima os rostos da câmera. Desta vez não chega a ser um plano sequência, mas uma articulação de planos longos, com a câmera sob o ritmo da nova dona da casa. A chegada de Egídio amontoa os corpos em cena. Sandra se ergue contra o pai — “tenha a bondade de sair de minha casa, Coronel Pica-pau”. – Impagável a conversa entre Zinha e Damião, cada qual em seu galho. Se não é inédita, é certamente uma encenação pouco vista na telenovela brasileira. “Não tem galho que uma boa serrada não derrube”, anuncia Zinha, preparando a gag (da árvore!) que fecha a cena.
76.
– A Renascer das tocaias se adensa e deixa Profª. Lú com a pulga atrás da orelha: ao longo do capítulo, a personagem aparece ouvindo as conversas de soslaio, sempre com uma face tensa, preocupada. Talvez ela se pergunte: por que e para que promover o ato civilizatório de ensinar num lugar em que a civilidade está sempre prestes à ceder aos interesses (e vinganças) individuais?
– Kika aponta a contradição na relação de Eliana e Damião; de mulher traída ao ato da traição. “Cadê a sororidade?”, pergunta Kika, mas a resposta de Eliana explicita que não interessa a ela essa empatia fraterna, horizontal, despersonificacada (e talvez haja uma questão de classe aí). Ela usa o discurso de empoderamento para se infiltrar numa posição privilegiada de um sistema que ela não cogita derrubar (e incita Mariana a fazer o mesmo). Eliana não é uma revolucionária e a graça da personagem é essa — ela pode ser lida tanto como uma oportunista, quanto como uma sobrevivente.
– Venâncio morre entocaiado, mas, para Buba, vai morrendo aos poucos nessa rede que, das mentiras, desenrola um conjunto de humilhações cotidianas, domésticas, acionadas por esse homem que se diz (ou se acha) desconstruído. Medeiros trouxe uma nova nuance à personagem nos últimos capítulos: esse olhar de quem engole o choro, mas que deixa vazar a necessidade de ajuda, como na cena em que Buba se encara diante do espelho.
– Augusto atende a comunidade assentada à beira da estrada. Em Renascer, a reforma agrária era/é semente discursiva que germina dramaticamente em O Rei do Gado. Regino nasce da morte de Tião Sonhador.
– Da luz amarela na cozinha vai-se ao azul profundo que ilumina Mariana no quarto. Um dos deleites de Renascer — desta e da outra — está em propor essa outra luminosidade que, de certa forma, rompe com o que nos cerca cotidianamente: esse mundo cada vez mais ultra iluminado, sem possibilidade de sombra.
– Brichta ótimo na cena em que invade a casa de Jacutinga. Teodoro era um personagem centrípeto; explosivo, Egídio é centrífugo — na impossibilidade de se manter núcleo orbitral, espalha estilhaços. Isso aparece nesse trânsito pelos corredores, como se ele quisesse derrubar a casa com os pulmões. Coisa de lobo-mau.
77.
– Mariana recebe Inocêncio com uma felicidade tão genuína que contagia a câmera, que a acompanha em “passos largos” em direção a ele. Bom momento de afinidade entre olhar e personagem.
– Lú se preocupa com João Pedro, mas a personagem tem uma afeição diferente da original, que tinha por ele uma paixonite quase declarada. Eli Ferreira recompõe Lú sobre outras bases: a de Leila Lopes era idealista e bem-intencionada, mas feita numa ternura sussurrante e deslumbrada, era uma espécie de princesa da Disney jogada naquele mundo de tocaias (inclusive, acabava salva por um “príncipe encantado”). Ferreira faz uma Lú mais palpável e realista, sobretudo na perspicácia ao observar esse mundo.
– Buba se arrepende de planejar adotar o bebê de Teca e os vetores entre ela e Venâncio se invertem. Nessa troca, Teca, que andava sendo a adulta da casa, volta a ser criança e a expor suas fragilidades. Recuo importante à personagem que, saída das ruas, se prepara a outro trânsito — à fazenda, ao encontro de Inocêncio e do avô, Rachid (será?).
– Na cozinha, com os esfregões ao fundo e bobs no cabelo, Dona Patroa se despe do apelido pejorativo dado pelo coronel. Iolanda vai despontando; desta vez, para Lívio.
– Gabriel Sater volta a encarnar Rachid para nos trazer um lampejo de Marianinha. Promete ser uma das principais mudanças desta versão: trazer em carne e osso a irmã de Maria Santa, apenas mencionada na original.
– As câmeras nas cabeceiras da mesa já compõem uma das principais marcas da direção desta Renascer. Há muito o que se analisar sobre isso. Uma outra hora…
– Se o merchandising é inevitável, que ao menos ele surja com algum frescor, como na cena envolvendo Kika e Eriberto. Acho que o último caso assim foi em “A Dona do Pedaço”, quando Caio Castro “cruzava” a fronteira narrativa (num travelling lateral) e ia parar nos comerciais. Desta vez, há uma espécie de autoconsciência, já que ver os personagens nos carrinhos que transitam pelo Projac (ops, Estúdios Globo) causa no mínimo um embaralhamento. (Alô, Eriberto, organiza um tour desses pros pesquisadores de novela!).
78.
– Como bem lembrou a leitora Suzana, originalmente, Venâncio é quem decidia dar um basta na mentira, contra a vontade de Buba (numa ótima cena de Taumaturgo Ferreira). Essa leitora também perguntou sobre como a nova novela traria o recado que Venâncio deixava no gesso de Teca, sustentação de outra mentira após a morte. O vídeo enviado no capítulo de parecer ser a saída narrativa para suprir a mensagem no gesso; e a interrupção que esse vídeo provoca fortifica a relação e a despedida de Venâncio e Teca.
– Desta vez, Venâncio tem tempo de chegar na fazenda para se despedir do pai e dos irmãos. Com João Pedro, ele compartilha o passado que os distanciou; com Augusto — que como ele, não consegue ter filhos — um futuro que os unirá. De baixo, Inocêncio olha aquele filho erguido no parapeito da janela. Um olhar prolongado, talvez o último. Um olhar iludido (fetichista no termo freudiano), como costuma ser o olhar masculino. Venâncio morrerá para sustentar essa ilusão paterna, conquistada por ele nos últimos minutos.
– Joana explode contra Tião — é tudo sobre ele, ele, ele. A fala dela se assemelha às de Mariana e Eliana sobre os Inocêncio. Do coronel ao empregado mais explorado, os homens se colocam como centros desses universos (da Casa-grande à casinha humilde desse homem em situação análoga à escravização). A questão é que essa autoimposição não é mais imperceptível, nem aceita calada, sem oposição.
– Egídio prepara a tocaia e traz de volta o carro do pai, Firmino. Se Inocêncio está cravado na terra pelo facão que replica o Jequitibá, Egídio, esse coronel comerciante, homem de trânsitos, desvela essa representação simbólica guardada. Numa novela de masculinidades explícitas em símbolos fálicos, Egídio busca virilidade nesse carro-herança (caixa de pandora que guarda outro falo) na cena em que ele prepara a suspensão da trégua, da civilidade (se Inocêncio é a masculinidade colonizadora-“civilizadora”, Egídio é a masculinidade bárbara). Para poder matar, Egídio tem que voltar à mais clichê das próteses simbólicas, ao veículo que carrega a morte (e a pulsão?) do pai. “Remorrer”.
79.
https://www.youtube.com/watch?v=gSsMWtD9ee8
80.
– Em seu livro sobre roteiro , John Truby diferencia desejos e necessidades das personagens. O desejo é aquilo que o personagem sabe que quer — Mariana deseja vingar a família e reaver o que é seu. Mas ela tem uma necessidade, que atrapalha esse desejo: Mariana não sabe, mas ela quer e precisa de proteção; a proteção patriarcal reguladora desse ambiente do qual ela foi expelida (e para onde retorna). Mas a protagonista clássica precisa mudar e, se Mariana começa a trama esperando reencontrar a proteção que lhe fora negada, sua mudança aponta à posição de protetora (é isso que, aliás, a aproxima de Eliana, mas Eliana percebe antes que, para sobreviver, precisa atacar). A cena em que Mariana cobre José Inocêncio com o manto de Maria Santa, além de comovente, revela esse início do direcionamento à mudança: ela não titubeia em apelar a quem teme para, pela primeira vez, proteger, o coração de Inocêncio. Não bastará: a jornada de protegida à protetora só se concluirá quando Mariana salvaguar também o corpo de José Inocêncio.
– A cena em que Maria Santa recebe José Venâncio é, ao mesmo tempo, delicada e atmosférica. O acolhimento materno não elimina o caráter insólito em suas múltiplas possibilidades. A frontalidade do campo e contracampo, com Maria Santa tocando lente na subjetiva de Venâncio, dá um caráter tátil a esses espíritos. O reflexo de José Inocêncio na janela sugere que talvez ali o “espírito”, no sentido de aparição “invasora”, seja ele.
– A dor de Buba/Mendonça era explosiva; a de Buba/Medeiros é implosiva. Os ombros levemente arcados, puxando a cabeça, dão a impressão de que ela se consome numa angústia quieta. Eliana, em contrapartida, levanta o queixo; fará da dor dessa viuvez sem amor uma locomotiva.
– A conversa entre Inocêncio e Damião é com a linha no pescoço, com a tensão estrangulando os personagens em contra-plongées apertados. Entre Inocêncio e Rachid é horizontal, com campos e contracampos equilibrados. O texto alinhava esse jogo entre iguais, entre homens que tiveram seus destinos costurados. Rachid é um personagem sempre interessante perto de Inocêncio (e vice-versa) porque não há ali o púlpito que Inocêncio estabelece com outros personagens.
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– A morte de Venâncio esgota José Inocêncio, e Marcos Palmeira faz o coronel andar não mais em passos altivos, mas arrastados. Na conversa com Augusto, ele se acomoda no sofá como quem cede ao cansaço, mas não encontra posição para repouso.
– Bonita a cena de Tião e Joana no telhado, com as árvores criando uma espécie de máscara ao redor do casal.
– Eliana invade a casa de Buba como um terremoto que quer desestabilizar a outra. Mas Buba não deixa por menos: dá as costas, vai até a poltrona, abre um dos braços para se apoiar (o que aumenta sua presença cênica) e se finca, como uma estaca. Se começa a cena boquiaberta com a ousadia de Eliana, logo essa boca semiaberta ganha um tom de deboche. As atrizes têm uma diferença visível de altura, mas a postura de Medeiros faz com que Buba se oponha de igual para igual. No fim, é Eliana quem sai trêmula dali.
– Sobra para Kika, e o jogo entre as atrizes é interessante: isso porque Juliane Araújo espelha Sophie Charlotte, afinando o tom e as pausas a partir de Eliana como referência. O que o que se desenrola não é uma rivalidade, mas uma advertência zelosa de uma amiga à outra. Só que Kika percebe que, para conseguir ser ouvida, precisa entrar em sintonia com o tom e com o tempo de Eliana.
– Marcello Mello Jr. começa a trazer Bento para o original, ou seja, malandro, mas sedutor. Lú “cai” (será?), talvez pelo desafio (e é ótimo o detalhe do litro que ela carrega pelo passeio). Samantha Jones marca a cena e o gancho com “meia dúzia” de frames.
– Alguém avisou o Eriberto que Venâncio morreu?! O rapaz era amigo, sócio, motorista, quebra-galho, comparsa, terapeuta… Se quiser entrar na briga pelas roças, tem todo o direito!
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– Se há um dissenso entre autores de novela é a necessidade do tal núcleo cômico. Renascer não tem esse núcleo, ainda que alguns personagens pendam ao gênero (Norberto, Rachid, Zinha e, o mais surpreendente, Egídio), assim como algumas situações (as prosas à mesa de Morena costumam ser mais leves do que outras cenas). Isso não necessariamente atravanca a possibilidade do humor, que se torna ainda mais saboroso vindo quando não se espera, principalmente visto em contrastes — como na cena em que Rachid pergunta a João Pedro “como vai nossa sobrinha?” e ouve do rapaz (pra lá de mal-humorado) “óia, cê se saia pra lá, viu, Rachid”. É uma maneira mais realista de fazer humor, já que o distribui democraticamente entre personagens, sem a necessidade de um núcleo fixo (que pode dar certo, mas pode não dar).
– Dito isso, que maravilha é ver Almir Sater — ator bissexto, conhecido personagens mais introspectivos e dramáticos — como Rachid. Sater é um dos que melhor sustenta a memória da composição anterior (na voz, principalmente), mas a graça está justamente nessa “reencarnação” em corpo oposto — corpulento, intransponível, incontornável —, o que o diferencia do senhorzinho serelepe que Arutim fazia em 1993. Faz uma manutenção e, ao mesmo tempo, um reposicionamento da memória, além de refazer a dupla afiada com Norberto.
– Genioso, o João Pedro de Paiva acaba sendo mais reticente com Sandra. O de Palmeira, em 1993, chiava, emburrava, mas logo cedia à doçura que Sandra dispensava a ele. A Sandra de Buscácio tem mais trabalho para chegar a este, mas também é mais tinhosa que a anterior.
– Um objeto vermelho, desfocado, fica rente ao rosto de Iolanda no justo plano em que ela acusa Egídio do assassinato. Um vermelho que atravessa (ou escorre), mas se impõe a essa vista que abre os olhos, começa a ver.
– Buba vocifera aquilo que já soava absurdo em 1993, mas ninguém falava — a ideia, ainda que falsa, de José Venâncio ter engravidado Teca, uma adolescente em situação de rua (ou seja, uma dupla fragilidade, etária e social). Buba irá ceder, mas é importante que ela, antes, exponha a indignação diante dessa mentira carregada de absurdos.
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– Importante a cena em que Bento bebe Venâncio, despedindo-se do irmão na conversa com Lú. Bento é o último dos irmãos a movimentar seu arco interno (e o único que vai precisar da autoridade paterna até o fim) e é preciso disparar a empatia do público para com ele. “Ele era a minha pessoa”, diz sobre Venâncio, na frase que sintetiza a cena (fãs de Grey’s Anatomy piram).
– O melhor gancho do capítulo passado tem resolução e descobrimos para onde foram Zinha e Ritinha: elas avançam para a venda de Norberto. O encontro entre as duplas (Zinha & Ritinha e Rachid & Norberto) tem graça, mas, mais do que isso, traz frescor e unidade à novela esses tangenciamentos entre personagens que contracenam menos uns com os outros. Impressiona a forma como Mell Muzillo se apaga nas cenas conjugais e se ilumina longe de Damião. A amizade com Zinha abre uma fraternidade que promete ser mais ousada do que a sororidade instalada na casa de Jacutinga, porque essas duas mulheres estão instaladas no coração desse sistema, na fazenda do coronel.
– Teca, Buba e Augusto chegam à fazenda e, desta vez, ao invés da mise en scène espalhá-los pelo espaço, coloca-os juntos ao pé da Santa. A tensão de Augusto na conversa com o pai entorta o quadro. Lívia Silva tem seu plano mais desafiador na novela quando Inocêncio pergunta se ela tem consciência de que espera um neto dele. Teca, não abre o sorriso; ela o prepara para, então, abri-lo. Um sorriso carregado de complexidade: há nele a mentira, a armadilha, mas também a sensação genuína de pertencer ao lugar, àquela família. “Desde o dia que eu vi o teu retrato, na parede da Buba”, ela completa, injetando o soro que extingue os efeitos do veneno de Eliana.
– Eliana, por sua vez, reencontra Damião numa mise en scène que já se torna recorrente às falsas tocaias — o travelling lateral. A pose na qual a câmera a vislumbra desfaz a mulher urbana para reintroduzir esta, capaz de “entocaiar” o matador: de cabeça abaixada, com o chapéu sombreando o rosto, Eliana surge na pose de Sharon Stone, a femme fatale moderna, em cena e no pôster de Rápida e mortal.
– Mariana e Inácia se colocam ao redor dos ombros de Inocêncio, entre conselhos de anjo e diaba. O ciúme de Mariana não é do amor de Inocêncio, mas da proteção que ele concede a outras mulheres. A relação com Inácia é mais intrincada, porque é a cozinheira quem protege o protetor. Essa relação encerra o capítulo: sob uma entidade, Inácia canta ao redor de Eliana, como se tentasse conter aquele desequilíbrio invasor. Eliana é encurralada por Inocêncio e Inácia, os donos da casa.
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https://www.youtube.com/watch?v=r02lHvl7ylQ
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– Inocêncio confronta Buba e ela decide ir embora da fazenda; os campos e contracampos, com os rostos contrastados à luz que atravessa as cortinas, se consolidam como um recurso para destacar as feições nessas cenas dramáticas. Buba comunica Augusto, e Teca está entre eles, mas não da mesma forma como ela se articulava entre Buba e José Venâncio — desta vez, ela logo desfoca, colocando-se no papel de espectadora dessa nova história que se abre.
– “Mulher, para José Inocêncio, só presta se estiver com o bucho cheio”. Essa frase de Mariana desponta numa sincronicidade por aqui; eu e Mariana (não a da novela, mas a que me acompanha pela vida) nos debruçamos sobre um texto de Donna Haraway que passa por essa questão, por esse trabalho de “produção de seres humanos” (do parto à nutrição e criação) que o patriarcado e o capitalismo usufruem, alocando-o como natural ao feminino. Mas a insegurança deste patriarca, que não se reconhece nos filhos, faz com que ele deseje pular para a próxima geração. Na cena, Mariana levanta o dedo para Inácia; depois, a faca, ainda que na rotina da cena (ela pica batata-doce). A vida em segundo plano volta a irritá-la, e é nesses hiatos que Mariana parece lembrar que chegara ali com um desejo.
– Cresci lendo Maria José Dupré e a chegada de Teca à fazenda (sem o pé quebrado) faz dela essa menina exploradora, que carrega lampejos do universo infanto-juvenil dessa autora. A cena entre ela e Inácia, com o sol lânguido sobre a prosa e o afazer, traz esse cotidiano “férias na fazenda”. Atrás de Inácia, Mariana surge no corte, no susto, tal qual monstro de filme de horror. Ela não está de férias, tampouco tem uma ocupação de verdade.
– Curiosamente, Eliana tem boas interações com as rivais Mariana e Sandra; as duas conversas têm tom quase adolescente. A diferença está no ritmo: com Mariana é um jogo de bate e rebate, consolidado nesse entendimento sagaz que há entre elas; com Sandra, as emoções são sempre mediadas pela parcela racional das duas, o que traz outro tempo às cenas.
– O contracenar entre Sater e Nachtergaele escala e culmina em mais uma cena deliciosa entre eles — “concorrência é se vai abrir outro birosca dessa”, pontua Rachid, colocando uma nova escada a partir da reação/punch de Norberto (“turco lazarento”).
– Joana se entoca num canto entre a parede e o aparador com a vela e a santa. Pede força justamente nesse instante em que parece não tê-la nem para se levantar, para sair dessa composição que transita do barroco ao tenebrismo. Tenebrosa é a situação, de fato: o patrão a assedia e o marido prometera a vida de um dos filhos em troca do demônio. Mas a santa de Joana — aquela que ela se recusa a tirar para que o tinhoso “gale” a galinha — está viva: tremula na cena tênebre através da lanterna mágica feita da vela e da sombra na parede. A miniatura da santa cresce, tal qual a imagem de Maria Santa, para amparar Joaninha.
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– Marianinha reaparece para Teca em visão inédita. A novela original não avançava essa trama para além da sugestão; e eu sempre entendi Teca como descendente de Marianinha, não como reencarnação da própria, como tem sido ventilado. Para mim, a trama de Teca tem esse paralelismo com a de Mariana: ambas vêm de famílias que se desmantelaram nas cidades, longe do coração do coronel. A montagem que alterna o rosto de Teca ao rosto do boi prepara o reencontro e a volta da menina à casa de Venâncio. A ver como essa trama se desdobrará.
– Desta vez, Tião aceita a arma de Egídio e há ali um plano-síntese desse empregado/escravizado induzido a reverberar a rivalidade “cordial” (posta na esfera do íntimo, do privado): os calcanhares ressecados de Tião titubeiam no chinelo gasto, empoeirado, impróprio à lida, ao passo que a arma se impõe como contraponto firme, gélido, reluzente. Mais tarde, é o rosto de Irandhir Santos que seca (no cenho franzido) e molha (nos olhos que umedecem) durante o monólogo em que Tião escancara sua motivação nessa trama literalmente diabólica. No caminho, deslocamento longo que pode pôr ou tirar a cabeça do lugar, Tião rompe o arame farpado da cerca, não com o instrumento intruso, a arma (como fizera Egídio, capítulos atrás), mas com a ferramenta que o estende todos os dias — o facão. A volta dessa imagem da cerca rompida não deixa de ser premonitória da próxima trama: é acerca de uma cerca que se desdobra a intriga entre Mezengas e Berdinazzis em O Rei do Gado, trama em que Tião renasce respaldado pela comunidade.
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– Tião confronta José Inocêncio, desta vez, de revólver erguido e diante da casa (não dentro, como na outra). Mas Inocêncio tem essa arma primordial que é a prosa; é com ela que ele dá outra volta em Tião. Durante a conversa, a câmera sobe as escadas para ver os dois homens de cima; a arma em punho é sublinhada pelo chão, que interrompe o plano americano, impedindo de ver se há coldre ou arma escondida às costas de Inocêncio. Mais importante ainda é o fato de que esse plano é o ponto de vista da Casa-grande, esse altar inalcançável a Tião, o pagador de promessas avessas, a quem é negada até mesmo a subida da escada. Quando o ovo surge em cena, o rack focus conduz o olhar do criador (Inocêncio) à criatura; Galinha não vem antes ou depois, coloca-se no meio. Na janela, a casa se apinha para assistir o nascimento de um causo, e Zinha, mesmo com os olhos atentos, sublinhados pela moldura da janela, crê no que vê. A contação acontece ao redor de Inocêncio (o quadro sobre a cabeça dele revela a família ao redor para escutá-lo), que troca o trono de 1993 por essa rede, que ganhou força nos últimos capítulos. Isso porque Inocêncio se senta de braços abertos, levemente levantados… parábola cristã do homem que carrega o diabo.
– Antes de Tião partir, Inocêncio inventa a maior das mentiras, aquela que, somada à má compreensão da democracia, se instala para subtrair cabeças e corações — “agora cê vai enrica trabaiando, feito todo mundo”. Pobre de quem acredita.
– Tião acorda. Mais do que isso, parece sair de um transe ainda mais intenso do que aquele que o assolava em Osmar Prado (que tinha lampejos de razão). Na copa, entre a santa e Joana, Irandhir compõe a despossessão de Tião: com a galinha pega pelos pés, Tião anda sob a luz da vela (a mesma que pôs a santa em movimento para Joana) e os pés da “véinha” se abrem como sombras de chifres ao fundo. É o diabinho deixando o corpo de um pobre diabo.
– A arma de fogo volta para Egídio entre os arabescos da mesa e do lustre, em composição oposta àquela como chegou a Tião. Nas mãos de Tião, o revólver é isso — decorativismo inútil, rococó.
– A casa de Inocêncio desarmoniza Buba e Teca. O close de Buba atrás das ripas (de um armário?) não só a aprisiona, como a quebra em luz e sombra. Ali, Buba existe pela metade.
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– As relações de Damião chegam a uma ambiguidade. De um lado, Sophie Charlotte usa essa paixão para injetar um toque de humor em Eliana; ela, que antes se desfazia em calor no sofá, se recupera num pulo ao ouvir a voz do jagunço (e é ótima a sacada da bolsa Louis Vuitton adaptada em pochete). Ritinha, do outro lado, sofre, e Mell Muzillo expõe essa dor sem reduzi-la a uma coisa só; ela logo modula nas reações, seja na impetuosidade que usa para contrapor o marido, seja na vivacidade que está no cerne da personagem. Na cena com Augusto, a Ritinha vivaz desponta sem anular essas outras, e a atriz trabalha em conjunto voz e olhar — ora ásperos, ora lânguidos, ora faceiros.
– Buba, de novo, os flagra, mas desta vez a intriga avança, porque ela ouve a declaração de Augusto. O “ouvir atrás da porta” é um desses marcadores inequívocos das coincidências no melodrama, e tem nesses flagras de Buba, bons exemplos de uso — na primeira cena, nos deparamos (junto de Augusto) com a cara dela, estarrecida; na segunda, vamos ao outro lado, cúmplices de Buba. Ou seja, embora a situação seja a mesma, não soa repetitiva ao público; muda a perspectiva e avança o drama. Buba e Teca, por outro lado, precisam ficar mais espertas com essas DRs com portas semiabertas, numa fazenda que não me parece ter bom isolamento acústico. Para mais aulas de “como fazer cenas de personagens abelhudos atrás da porta”, ver “Downton Abbey”.
– O castigo de Augusto e Bento serviu para trazer imagens que fazem falta nessa versão, que são as cenas de lida, ainda que aqui permaneçam narrativas, e não passagens poéticas como na original.
– “Virou Tião Sonhador”, anuncia o companheiro de lida ao ouvir o discurso do ex-Galinha. É o terceiro e derradeiro movimento dele: da epifania à fé, da fé à utopia. Ventila-se na imprensa que a morte do personagem será outra. A de 1993 refazia uma das imagens mais fortes da História do país — o “suicídio” de Vladimir Herzog, jornalista assassinato pelo governo na ditadura militar.
– A escadaria frontal, espaço cênico recorrente na Renascer original, é usado para que Augusto se declare à Buba. O diálogo é feito de frases típicas a esse tipo de cena, mas há aqui o subtexto das personagens. Há, principalmente, a embocadura da fala de Renan Monteiro, que joga o diálogo não como um príncipe encantado de frases feitas, mas no compasso dessa conversa cheia de coisas não ditas, que saem com uma urgência serena, contaminada pelo tempo desse espaço. A edição, sabiamente, coloca parte dessa fala em off para que desponte o movimento físico mais forte — a virada de Buba, que devolve um olhar guardado, inédito. Um olhar nunca dispensado a José Venâncio.
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– Se for adiante (o que não acontecia na original), a trama de José Bento na política pode aprofundar a correlação entre coronelismo e patrimonialismo. De qualquer forma, Bento é o melhor — talvez o único — personagem que pode representar essa figura contemporânea que, entre coach, influencer e político, é nada além de gogó. Se Inocêncio é um defensor de um capitalismo consciente (como se isso existisse), Bento é anti-marxista raiz, porque rejeita aquilo que baseia as teorias de Marx — as relações com o trabalho.
– Arrisco dizer que, envolvida noutra trama de Bento, Kika ganha presença nesta se compara à original. À essa altura, em 1993, ela e Egberto já saiam em lua-de-mel a bordo de um Fusca. Por sinal, seria interessante ver o Eriberto de Neschling numa passagem pela fazenda, fazendo ciúme para Bento e intrincando a relação com Kika e Lú. A professora, aliás, promete ter outro envolvimento com o Inocêncio bon vivant: na trama anterior, Lú, por aqui, ainda estava suspirando por João Pedro; a de agora parece mais disposta a jogar com Bento, talvez até replicando o que ele fez com Kika ao longo da relação.
– Theresa Fonseca faz essa Mariana que ora nos repele, ora reconquista. Como na cena em que pede perdão à Buba: Mariana parece genuinamente aberta, arrependida, algo que, aliás, costuma ocorrer diante de outras mulheres. Mariana compete com todas, mas se arrepende, porque logo descobre alguma identificação. No mais, é interessante perceber como Mariana é uma presença que ocupa a casa sem ter, de fato, uma autonomia sobre esse espaço, percorrendo-o quase como uma assombração viva. É quase uma Jeanne Dielman cacaueira, com a diferença de que a personagem de Chantal Akerman, apesar de presa ao tédio doméstico, tinha algum poder sobre sua rotina.
– Norberto vai abrindo sua matreiragem conforme ganha intimidade com público (“vai chover cacau na minha horta”) e Nachtergaele faz misérias nessa modulação entre a fala extradiegética (com o público) e diegética — a reação dele à chegada de Egídio é engraçadíssima. Nessas cenas na venda, com Nachtergaele, Brichta surge mais afiado, parecendo elevar o escárnio de Egídio: a virada dele durante a saída de Deocleciano descarrega um olhar debochado, baixo, mas impetuoso, desacompanhado de qualquer esboço de sorriso. Um olhar que interdita a cena, porque por si só é gancho que pede corte.
– O encontro entre Egídio e Eliana tem um ineditismo importante: originalmente, Rachid contava com a ajuda de Damião para expulsar o coronel da casa de Sandra. Desta vez, é Eliana quem o ameaça com uma faca. Um primeiro encontro forte, que deve reverberar sobre a relação vindoura entre eles.
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https://www.youtube.com/watch?v=yPY-N2vnGxY&t=18s
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É a inauguração do forrobodó de Sandra e a velha casa de Jacutinga ganha vida como nunca nesta versão! O quintal se estende em pontos de vista, assim como os corredores em movimentos de câmera. O capítulo apresenta episódios de conflitos pré-existentes, situando-os à festa; e Luperi soma novas situações a outras que já estavam no capítulo de referência.
– O “suquinho” de Norberto traz uma nova Dona Patroa, numa libertação que não acontecia de forma tão veemente na original. O sumário narrativo, feito de planos de Norberto preparando a bebida, adianta a situação episódica, que culmina num dos momentos mais geniais de Camila Morgado: Sandra pergunta quantos “suquinhos” a mãe bebeu; Dona Patroa responde — “um… dois… oito”, e solta o “oito” numa sonoridade entre soluço e arroto esganiçado. Aliás, Dona Patroa, não! Iolanda. Ela se “rebatiza” e é justamente Rachid-“eu não entendo nada do que esse hómi fala” quem anuncia o nome em alto e bom tom.
– Para salvar a pele de Damião, Norberto acaba sob o facão do jagunço. A situação toda é previsível, mas a graça está justamente na suspensão, no arrastar de Norberto, entre cochichos e muxoxos, à beira da cama.
– O tom e o tempo podem ser primordiais na transformação de uma única linha de diálogo. Joana, demonstrando desinteresse, mas iluminada por um facho de fora, responde ao interrogatório de Egídio. Quando o coronel — cujo ritmo e tom da fala contrastam com a languidez debochada de Joana — pergunta se Dona Patroa chorava, Joaninha saboreia a frase, mas sem explicitar que o faz: “só se for por dentro porque, por fora… tava boazinha”.
– Ritinha e Prof. Lú vão à festa e abrem conflitos inéditos. O ponto de vista de Eliana sobre Ritinha é um desses planos desconcertantes: o cabelo de Eliana é usado para recortar o quadro, e Ritinha aparece rente, cabeça erguida e braço esticado, “apoiado” à cabeça da rival. No rosto, o sorriso de quem está ali para duelar. Mell Muzzillo vai se revelando uma dessas presenças que sabem ganhar o olhar da câmera, especialmente quando surge assim abrupta, aparição que nasce do corte.
– Lú e Bento desconcertam Zinha, e a moça solta isso no palco, naquela que considero a melhor cena do capítulo: em passos tímidos, inseguros, Zinha sobe, cochicha a música que cantará e, antes de começar, “ralha” com a ovação do público. Então, ela fecha os olhos e o espaço se planifica ainda mais no desfoque. Zinha, essa menina com questões acerca de si, já existe plena no plano quando solta o primeiro verso — “encosta sua cabecinha no meu ombro e chora…”. Samantha Jones canta lindamente, mas se preocupa em tremular as primeiras palavras, exprimindo a insegurança que “vai embora”. Há também a construção corporal: Zinha não sabe muito bem o que fazer com os braços, nem como ocupar o palco. Não precisa, a voz e o sentimento bastam. No meio da canção, há cortes para o rosto de Iolanda (é possível que haja saudades de algo naquele casamento?) e de Norberto, a encarnação da saudade. A escolha da música, tema do Jorge Tadeu de “Pedra sobre pedra”, homenageia não só a trama anterior à Renascer 1993, mas às novelas regionalistas como um todo. Por fim, embora faça sentido dramaturgicamente, é um pecado Samantha Jones ter demorado 91 capítulos para soltar a voz. – Sandra é definitivamente a nova dona da casa. Giullia Buscacio parece ir crescendo, ocupando a casa no decorrer da festa.
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– Se a sereia, em seu sentido simbólico/mitológico, costuma evocar ideias como sedução, perigo e mortalidade, na casa de Jacutinga, o afresco da figura com os seios nus se ergue sobre Sandra e Iolanda como uma espécie de santa daquela casa, símbolo do poder e da liberdade feminina que a regimentam. Quando enfrentam Egídio, mãe e filha têm a pintura às costas e entre elas, unindo-as.
– A conversa entre Lú e Inocêncio tem tom oposto à cena original: naquela, a professora era dócil e se dava por satisfeita com o que o coronel oferecia; nesta, Lú quer que a educação ultrapasse as cercas de Inocêncio — público e privado, comunitário e familiar se confrontam nas representações da professora e do coronel. Lú escolhe as palavras (“demagogia barata”) para, no subtexto, expor a ignorância de José Inocêncio. Era uma personagem que Leila Lopes fazia com ternura e baseada numa argumentação paciente, que ajudavam a contornar as fragilidades daquela “professorinha”. O diminutivo, recorrente às professoras nas novelas de Benedito, agora não existe: a personagem cresce na remodelação do texto e nas mãos de Eli Ferreira.
– A trama política de Bento vai ganhando corpo com a nova investida de Egídio ao filho de Inocêncio. No diálogo, Egídio delimita uma suposta distância entre os coronéis: Inocêncio, o mandonismo local, pode fazer do filho vereador; o trânsito de Egídio pode garantir Bento deputado. Será? É um desdobramento novo a um conflito que, pelo que me lembre, não tinha tanto fôlego em 1993.
– Sem se dar conta, Tião humilha Joana ao obrigá-la a ajoelhar diante da santa para que ele acredite que Egídio não a assediou (o homem que queria o diabo acha que pode interferir na devoção da mulher à santa!). A situação acentua o descompasso desse casamento: às voltas com sua “véinha”, Tião não notou o assédio de Egídio à Joana; agora, cobra e recrimina a esposa que teve que se defender sozinha, sem amparo ou companheirismo.
– Em tempo: Lívio e D. Patroa continuam o papo de segunda, aquele em que Lívio conta sua história pregressa e revela como os acontecimentos narrados o “desigrejaram”. Sob a segurança de seu templo, Lívio aconselhara uma fiel a suportar uma vida de violências através da oração, e a sustentação desse lar a todo e qualquer custou, resultou no assassinato da moça. Lívio, então, se “desigreja”, e nesse misto de consciência e autopenitencia, sai perambulando pelo mundo. Para além da força e importância da cena, a cena traz outro Lívio: se as dúvidas do original partiam dos desejos da carne, neste, a questão é de alma.
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– O pesadelo de Egídio é com a rebelião dos oprimidos, com Joana e Iolanda segurando armas de fogo e Tião, a galinha que choca o diabo. Esse contra-plongée/contra-ataque evoca outras imagens do cinema brasileiro, de Cidade de Deus a Bacurau. Egídio revida na cena seguinte, berrando a partir de um degrau acima de Tião.
– Se em 1993 a questão era o analfabetismo, Lú a atualiza para o analfabetismo funcional. É um assunto urgente, adensado agora com a precarização do emprego, que puxa a piora da educação (criando uma retroalimentação); e avança ao não letramento digital e audiovisual. Por essas e outras, é importante que a telenovela como gênero se apresente como objeto/texto ao olhar, e não simplesmente ao relance.
– A prosa entre Norberto, Lívio e Rachid começa vista de uma janela (da venda) e termina em outra — a janela basculante do armazém de Egídio, que, dali, ouve a entrada de Inocêncio e Bento, agora candidato. Essa inserção final ajuda a construir a espacialidade, a geografia dessa vila, situando a distância do negócio de Egídio do de Norberto.
– Guto e Buba acontecem e preenchem a suspensão romântica deixada por João Pedro e Sandra. Importante: a iniciativa do beijo é dela.
– Deoclecino e Zinha conhecem João melhor do que os de sangue. Quando Deocleciano ralha “pois fique quieto no teu canto e obedece seu painho”, a frase tem duplo sentido. A ordem original é de Inocêncio, mas Deocleciano sugere que fala por si, como pai de criação.
– Como bem disse a leitora Flávia Saiani, José Inocêcio é o coronelismo limpinho, que diz que não se envolve com política. Também não atrapalha, ele próprio fala, à mesa. É nesse não atrapalhar que se beneficia, que ocupa as lacunas do poder público para exercer o seu, particular. As alfinetadas de Mariana a José Bento vão ficando cada vez mais interessantes: ele, prestes a virar homem da política; ela, mulher que mesmo sem uma real autonomia doméstica, observa e entende as engrenagens e regulagens daquela casa. O voto feminino foi decisivo nas últimas eleições. Inocêncio acha que Bento tem o de Inácia, mas duvido muito (e espero que Teca não transfira o título de eleitor… rs).
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– Jackson Antunes faz esse Deocleciano manso, mas que incorpora seu velho Damião quando o assunto é o filho: a voz se ergue e o olhar faísca contra José Inocêncio na cena em que o pai adotivo cobra do biológico uma ação restauradora da ordem, para proteger João Pedro; ação que, ali, ninguém espera ou quer que venha do poder público. A investigação, portanto, não é uma questão a esses personagens: é preciso apenas a palavra de Inocêncio, mas a incerteza do coronel incomoda Deocleciano (que, por sua vez, reverbera um incômodo de parte do público). O Deocleciano de Antunes tem essa nuance: entre Morena e João Pedro, ele recua como presença apaziguadora, que concilia os embates entre a mãe leoa e o filho genioso (João conta da gravidez de Sandra primeiro a ele). Diante da paternidade atravancada de Inocêncio, ela a assume por completo: explicita que, se preciso, mata por João Pedro.
– Buba e Guto começam a “planejar” a viagem à Minas, ao passado dela. A foto da avó ressurge e Buba, de novo, diferencia essa relação da dos pais. Esse amor de vó antecipa algo que aparecerá no “vô Inocêncio” quando o neto nascer (e diminuir essa relação quase obsessiva que ele estabeleceu com a gravidez de Teca). Enquanto isso, Mariana, em uma só cena, aprofunda o desejo tolhido de ser mãe. Talvez aponte aí um desfecho a ela, nesse trânsito/mudança de protegida à protetora.
– Egídio atira numa abertura no muro, que, no recuo da câmera, remete à janelinha quadrada de Maria Santa em 1993 (e não vou guardar isso para mim: lembrei também da abertura por onde aparecia a lagarta Xixa em Super Xuxa contra o baixo-astral, mas deve ser porque inventei de passar o filme em aula… rs).
– Sandra e João Pedro conversam, enquanto a câmera avança com uma firmeza sutil (sem quebrar a transparência narrativa) sobre o casal; ele e ela de perfil no quadro, ação e reação visíveis ao público. O diálogo pausado dá tempo para que Sandra e a câmera se preparem para o beat estruturante da primeira parte da cena: o olhar a reenquadra em ¾, o rosto sem anteparos no super close-up de Júlia Buscacio nesse plano-teste, que exige da atriz uma entrega inédita. Com o olhar firme, lutando para disfarçar a insegurança, e um tremor no rosto que parece vir desse corpo que toma fôlego para falar, ela solta o texto como numa expiração — “tô esperando um filho seu”. O contracampo equivalente de Juan Paiva vem na volta da cena, quando Sandra entrega a antítese do discurso do “coração fechado” (“esse filho que eu tô esperando, ele é fruto de um amor muito grande”). Os olhos de Paiva apertam na contradição dessa vítima dos desamores que, entre alegria e resignação, recebe e compreende o amor possível. Cena digna de filme do (gênio) James Gray.
– Neno e Pitoco também começam a se preparar para Ilhéus. E Teca… bem, se o que está sendo sugerido se concretizar, vai ser uma das maiores voltas do parafuso desta Renascer.
95.
– Eriberto debocha de Bento para Kika; acho que você tem que fazer isso na cara do sujeito, lá na Bahia, Eriberto! É para lá que Kika vai, de mala e cuia, para ter uma ótima cena com Iolanda. Isso aí dá jogo: já vejo Kika indicando Simone de Beauvoir e depois “tomando a lição” da ex-Dona Patroa (falando sério, são duas personagens com muito potencial juntas).
– “Se eu sossegar, eu durmo, Inocêncio”. As recusas à Mariana são muitas e vão se adensando. Ela, que perguntara à Buba o que a outra ainda fazia ali, deve logo começar a se perguntar o mesmo. A rejeição causa a insônia e, mais uma vez, a escuta atrás da porta é a faísca de um conflito — Mariana ouve Teca falar de Buba e vai correndo jogar isso no colo de Eliana (depois que esta é cutucada pelo cabo de vassoura por Iolanda, interação cômica e curiosa, como se Iolanda intuísse que é preciso zelo para mexer com a futura esposa de Egídio). É Eliana quem deve desdobrar essa informação, enquanto Buba e Augusto lidam com outras questões no Rio.
– A desconfiança paira sobre Sandra: de Inocêncio à Morena, a moça é vítima desse machismo que parece atmosférico, mas é estruturante. Mesmo rompida com o pai, colocando-se publicamente contra Egídio, seu caráter é posto em dúvida e sua gravidez vista como uma espécie de tocaia (a sexualidade feminina volta como armadilha aos homens). João Pedro, pelo menos, é mais razoável do que o original: logo diz que o filho não será enjeitado como ele e ainda joga que Sandra tem a chave para abrir seu coração (ainda que João atrele essa chave à gravidez). O amor dos dois floresce num “buquê” de chitas ao fundo.
96.
– Inocêncio, que aguarda ansioso o neto que não é (mas será), estende a rejeição ao neto que vem do filho enjeitado. No fundo, o coronel parece sempre arranjar desculpas de ordem prática para amaldiçoar o caçula, que, para ele, lhe tirou a mãe. Mas há a contra-maldição: em seu sacrifício, Maria Santa pariu o filho mais semelhante ao pai, só que melhor, e ainda deixou à criança a lealdade que ela dedicava a Inocêncio.
– Em 1993, a separação de Iolanda abria a Teodoro uma série de pequenas situações cômicas; agora, mergulha Egídio numa loucura galopante. Numa fazenda que pouco produz — e que, portanto, se restringe à casa —, a ausência da principal gestora desse espaço (e, consequentemente, da própria fazenda) faz de Egídio esse nada, que, diante da própria incapacidade, só faz atirar (inclusive contra uma panela, objeto que carrega um simbolismo doméstico machista/patriarcal). Improdutivo, o pica-pau vai bicar a boia de Joana e Tião, mas o empregado parece mais vivo, quase encapetado: “não se preocupe que esse ovo não é galado pelo demo, não”, diz Tião, jogando com Egídio. Joana, inspiradíssima, coroa: “esse ovo aí é temente a Deus, agora”.
– “Ritinha é meu caminho; a dona é minha perdição”, diz Damião à Eliana, andando mais perdido do que encaminhado.
– Boa cena de Bento e Kika, com Norberto ouvindo no batente e no desfoque; Lú e Zinha, no extracampo. O azar de Bento é que a cena não se reduz ao quadro; há toda uma diegése nos arredores. – Mariana e Inocêncio se desentendem, de novo. O ciúme dela é complexo: ora é de Inocêncio, o marido de quem ela demanda o amor, ora é de João, de quem ela espera um amor platônico, tão imortal quanto a promessa no Jequitibá. De Sandra, Teca, e de outras, Mariana, disse ontem, tem inveja. A música não está nesta versão, mas, no fundo, nesses embates crescentes, Mariana deixa claro que quer “enganar o diabo” e “roubar no jogo” cujas regras é Inocêncio quem dá. Uma cena contraparte se abre entre Deocleciano e Morena, os dois com os olhos cintilantes, comunicando-se com o filho morto para que este proteja o que está vivo. O travelling in nesses momentos em que o indizível vence as cordas vocais, é o mesmo usado no monólogo de João Pedro na cama; o mesmo de quando Sandra revela a gravidez. Aproximação para descortinar as almas.
97.
– A “lealdade” de Damião à Ritinha é discursiva; desponta apenas como peso de consciência, mas nunca atinge as ações (e, para o jagunço, parece ser o bastante). Aliás, essa “lealdade” (insisto nas aspas) de não desfazer o matrimônio é com Ritinha ou com a promessa que fez a Chico, o pai dela, enlace masculino indissolúvel? Porreta, Ritinha percebe seus esforços em vão e, à mesa, lembra Damião que quem come ali é o empregado (e ela o chama de cachorro). A evocação ao patrão e a esse microcosmo classista é a estratégia que Ritinha usa para driblar os engessamentos de gênero do lugar. Eliana também tem seus recursos: planta em Damião o sonho da subida, de que pode ser ele o patrão, o coronel (nada muito diferente do que promete o discurso empreendedorista contemporâneo). Na cama, Eliana faz essa promessa meio vazia, típica de personagens masculinos: para manter Damião-objeto, ela promete a ele o status de sujeito. Mas ela própria é um sujeito recém-descoberto e não deve abrir mão disso. Nesse jogo intrincado entre classe e gênero, Damião, o matador, vai se docilizando, tornando-se o mais letárgico dos empregados, aquele que se contenta com os pequenos acenos e escapadas. Eliana, por outro lado, vai criando carapaça de “coronela”.
– Damião inclusive é a ponta mais solta a ecoar o discurso do “casamento tocaia”, plantado por José Inocêncio; e impressiona o quanto a “ordem” desse patriarca vai se introjetando noutras vozes. Até Lívio, que cresce sobre Inocêncio, cede ao coronel. A mise en scène entre os dois é inspirada: Lívio permanece além do limite circular dado pelas poltronas, enquanto Inocêncio ralha num vai-e-vem em que permanece cercado por esse palco improvisado na sala de estar. O conflito entre ele e João é igualmente circular, episódio, melodramático, feminino (como diz John Fiske na teoria e Chantal Akerman na práxis). Ironicamente, a trama entre pai e filho é estruturalmente anti-masculina, propensa às constantes suspensões do clímax, à retomada da negociação (e conciliação) das rotinas. Influência de Maria Santa. De qualquer forma, herói do matrimônio idealizado, perfeito, Inocêncio subjuga não só os filhos como indivíduos, mas também nas relações. Sandra e João (sobretudo), mais firmes do que em 1993, contornam essas influências paternas e conquistam o suporte familiar/comunitário. – Acho que poucas vezes uma arma surgiu como prótese fálica simbólica como nas mãos de Egídio: em mais um de seus monólogos derrotados (desta vez entre os belos arcos do alpendre), ele apanha, sem sobreaviso, um rifle, que apoia sobre a perna e atravessa todo o quadro. É como se o personagem precisasse reafirmar essa masculinidade retrógrada e truculenta antes de dissimular-se outro diante de Sandra e Iolanda. A ex-esposa, aliás, é sempre melhor perto de Rachid, principalmente porque Morgado despe a personagem daquela caricatura/máscara, provavelmente modelada durante anos de casamento.
98.
– Duas cenas estilisticamente afinadas: na primeira, Inocêncio e Lívio, opostos na mesa, são espremidos (e interrompidos) pelo batente da porta; a câmera espia de fora, talvez temerosa de entrar no escritório, sob a influência do coronel. Quando entra, o temor se realiza: Lívio se inclina (rompendo o campo e contracampo) para questionar Inocêncio (“isso tudo é porque o senhor não perdoa João Pedro por ter levado Maria Santa?”) e esse movimento libera a câmera para percorrer o escritório, espaço-extensão, até encontrar Inocêncio, magnetizada pelo coronel (ainda que, na composição, Lívio pareça mais forte). Na cena seguinte, outra mesa: João e Deocleciano, pai e filho, cada qual de um lado, com Sandra entre eles. Desta vez são os dois homens que interrompem os batentes adornados da casa de Jacutinga. A pedra e o rabo da sereia cercam João Pedro como o encosto de um trono; é ele quem ganha a negociação com Sandra, salpicada pelos comentários ambíguos do pai — “ainda mai di quem…”. Mas Sandra deixa um eco: “a gente tem que fazer tudo que nem o painho dele?”
– Joana cresce com olhos grandes, faiscantes, perigosos sobre Egídio. Ela se reclina, pronta a atacar antes de ser atacada. Mas o olhar marcante, de retrato de Anita Malfatti, basta para intimidar Egídio. Na “contra-cena”, a troca de olhares entre Norberto e Rachid pesam as pálpebras de Tião, que vai amiudando, até o derradeiro balançar de cabeça que encara o sobreombro de Norberto. Atrás de Norberto, estamos nós, ajudando a despertar a empatia do dono da venda. Assistindo na amplitude do termo, como defende o teórico Christian Metz.
– Que atriz é Malu Galli! Com poucas linhas, ao telefone, constrói e entrega uma personagem. A cena é boa a ponto de perdoarmos esse insistente lapso invasivo do bom-mocismo de Augusto.
– Uma leitora escreveu dizendo estar com ranço de Inocêncio; acho que, além de natural, é algo potencializado na versão atual do protagonista. Isso porque o de Fagundes brigava e reclamava acerca dessa “trama de um casamento” (aliás, leiam esse livro genial do Jeffrey Eugenides!), mas nos convencia de que, de sua posição de pai onipresente (que tudo vê e antecipa), acreditava e temia, de fato, uma tocaia contra o filho (e passávamos a compartilhar dessa preocupação). Esse Inocêncio humano de Palmeira não nos convence de sua preocupação; pelo contrário, não sustenta esse discurso, abrindo brechas para as falhas, para que, nas entrelinhas, desponte o despeito que sente por esse filho que, embora parecido, se desprega e se assujeita como alguém melhor que o pai.
99.
– Inocêncio tenta intervir no direito de ir e vir de Damião, mas o empregado engambela o patrão: indica que pode resolver o “problema Eliana” nos moldes do coronel, isto é, na negociação privada, fora dos limites da lei. Eliana — que era Inocêncio, mas não é inocente — coloca Damião na contra-oferta. Na disputa de forças, o matador é quem acaba encurralado. O problema é que ele leva junto Ritinha, que não se aguenta e explode com Inocêncio — “e adiante se arrepender agora, que a burrada já tá feita?!”.
– A mentirinha, de baunilha e manteiga, de Dona Patroa antecipa a estratagema que Egídio prepara a Bento. Mas Egídio é sujeito de primeiro plano, de pragmatismos que rejeitam o subtexto, e não resiste em usar a bolachinha (os cariocas que relevem esta paulistada) para atacar os causos de Inocêncio — a depelação, o diabinho, tudo é ingrediente na receita que compõe o coronel rival. Egídio, por outro lado, é corpo sem manteiga para dar liga; é pura fôrma e fermentação do ódio.
– Buba volta para sua cidade natal. A decupagem opta por vê-la pelo vidro do carro, a cidade-passado correndo em reflexos sobre o rosto de Buba. São cenas preparatórias do que deve vir no capítulo de hoje, o 100°.
– Na casa de Jacutinga, a câmera passa (num travelling lateral) por uma pintura meio “Aitaré da praia”: recostado no tronco de uma palmeira à beira-mar, um homem seminu aconchega no peito e nos braços uma mulher nua. A câmera, no entanto, descobre a réplica inversa: na encenação em profundidade, é Sandra quem, no sofá, afaga João Pedro no colo. As pernas de Juan Paiva se alastram pelo encosto, sublinhando Giulia Buscaccio, cujo tom evita que Sandra evoque uma proteção maternal. É uma cena de carinho que não ignora corpos e desejos. Não nega o erotismo premeditado na pintura, mas realoca os corpos, como se rebatesse o clichê do corpo masculino que apara e sustenta o feminino.
– À mesa, Mariana ataca Inocêncio (“você é meu marido quando lhe convém”). A cena continua no quarto; Inocêncio surpreendentemente resignado com o ciúme que Mariana sente de João Pedro. A madeira rígida do dossel emoldura ao mesmo tempo que contrasta o cansaço do rosto de Inocêncio. A face de Mariana é oposta, capaz de pôr abaixo inclusive essa estaca atravessante, inflexível: ela é um tremor tectônico, um terremoto que, diante da parede crua, titubeia olhos, morde lábios, até rasgar a frase final — “você é doido, Inocêncio”. Mais uma cena memorável entre Marcos Palmeira e Theresa Fonseca.
100.
– “O môlher dele, sou eu…”, diz Eliana imitando Rachid. Enquanto isso, Ritinha exercita a paciência (ou suspende a fúria) nessa tarefa de catar feijão, compartilhada com a mãe (elas não usam black-tie). Aqui, os grãos não estouram na bacia de lata, mas a sabedoria de Inácia explode da boca — “cê devia era se separar dele, minha fia […] que mais Dona Eliana lhe fez, foi lhe mostrar o tipo de hómi com quem cê se casou”.
– Diante da santa, Bento revela seu indizível: gostaria de ver o espírito da mãe. O plano, no entanto, faz questão de lembrar a concretude dessa ausência pelo manto da imagem, que pressiona e sublinha a interpretação de Marcello Melo Jr., em plena consciência de que aquele é um momento inédito ao personagem.
– A luz do luar recai sobre o campo e contracampo cúmplices de João e Zinha, os dois deitados, dividindo o sofá. Os dois sorriem largo, contrastados pela manta de fuxico, que ganha um novo uso na composição. É a segunda vez, num pequeno intervalo de capítulos, que João aparece diante desse florescer simbólico, que, agora, sugere que a hora de Zinha também está por vir.
– Inácia e Inocêncio, nomes ecoantes, conversam à beira da pia, em posições complementares. A Inácia de Edvana fala da mesma altura/postura que ele, sobretudo nesses momentos em que estão sozinhos, em que a hierarquia patronal é suspensa para que desponte a prosa entre esses dois sábios, aprendendo e ensinando um ao outro.
– Ritinha e Eliana duelam; não na rua, e sim na casa que recebe e concilia, mas não faz milagre! O corpo a corpo é, na verdade, rosto a rosto, primeiríssimos planos sem área de escape. A Eliana de Charlotte salpica cinismo num tom duro, ameaçador como Patrícia Pillar acho que jamais chegou quando na personagem. Ritinha ergue o rosto e suspende o diminutivo; se torna Rita, Rita Baiana, que duela com coragem e malemolência. Usam armas diferentes: as palavras saem da boca de Eliana como cortes, facadas bem calculadas para atingir onde dói. As de Ritinha saem em rajadas, que culminam na agressão física, gravada de forma que nem espetaculariza, nem diminui a dramaticidade da ação. Um senão: com o corte justo ao fim da briga, a edição não deixou respiro à cena. Faz falta ver a reação das personagens quando a adrenalina abaixa.
– Buba volta à casa e, tensa, aperta o tecido do próprio vestido, essa roupa inédita aos pais. A ação no jardim de entrada é um acerto, pois mergulha o drama na luz e na brisa matinal, trazendo o respiro da rotina à cena; sugerindo que esses desencontros/rejeições acontecem todos os dias. Acostumada a interpretar mulheres altivas e ricas, Malu Galli surge como essa dona de casa humilde e sujeita ao marido; além do talento já conhecido, é uma escalação que traz gosto de novidade.
– Por fim, a cena que fez cair um cisco por aqui: Sandra tenta animar Rachid, que fala de saudade. Mas não só; lembra do filho que não é de sangue (provalmente, pai de Teca) e “que não tem amor pra dar de volta pra nós”. É uma cena simples — baseada nesse contracenar da conversa e nas mãos de Sandra que acarinham as de Rachid —, mas que diz muito sobre essa relação de reposições: antes mesmo de se apaixonar por Iolanda, Rachid adota Sandra, estabelecendo com ela essa paternidade aberta, carinhosa, desprovida de qualquer autoridade; nem preciso dizer que, para Sandra, ele é o pai que ela não tem. Antes de soltar e repetir “isso é um dor muito grande”, Sater põe uma espécie de respiro com o olhar, como se o rosto do turco tentasse colocar em ordem tudo o que há de guardado dentro desse libanês.
– Capítulo 100, meia trama. Estes pitacos aqui já somam 106 páginas.
101.
– Do fim ao princípio: recém-reconciliada com José Inocêncio, Mariana enreda Teca numa postura passiva-agressiva: cara de arrependida, tom entre arteiro e maquiavélico. Talvez ela queira só dar um susto em Teca, mas… “Inocêncio morre se esse filho não for de Venâncio. E você também”. Nem a santa intimida a ameaça ambígua de Mariana, que segue com a blusa preta e sem alças do capítulo anterior; creio que seu figurino mais contraste até aqui.
– Quebrado logo após o embate com José Inocêncio em 93, desta vez, o ovo de Tião resistiu mais para que esse rompimento tivesse impacto à altura. Brichtta escala nesse coronel tresloucado, enquanto Santos tenta manter a dignidade de seu Tião sempre que está diante do coronel. Quando Tião estende a mão e pergunta quanto “deve”, os coqueiros atrás balançam em sinal mau agouro. Egídio larga o doce antes da coça: Tião é escravizado, está preso à fazenda para sempre. O jagunço interpretado pelo ótimo Osvaldo Mil (que viveu outro truculento em A Regra do jogo) comanda a surra que não quer só o corpo; Tião é posto sob um sadismo dilatado, que entrecorta a violência física com humilhações aterrorizantes antes de culminar no fim do ovo, que surge em cena como um artefato mágico, mas insuficiente diante da sola do mandonismo. Jogado no chão como uma criança indefesa, o sangue de Tião tem a textura do interior do ovo. Sangue que escorre do nariz ao mesmo tempo em que a casca cede e a clara e a gema explodem.
– Antes assombração esparsa, o espírito do maneirismo (de 1993) finalmente incorpora nos duelos revisitados não como imitação da cena clássica/nostálgica, mas como volta do parafuso da ação: a câmera começa a torção ainda no primeiro embate, quando Egídio aperta o taco-facão contra o rosto de Norberto. Mas a chegada de José Inocêncio pede que o duelo vá para a rua, e a releitura do conflito armado se concretiza na mesa de sinuca, levada para fora como órbita desse western de tacos e beats (batimentos que marcam a escalada na troca de ações, reações e, no caso, acusações). Desponta, então, o artificialismo explícito que havia em Luiz Fernando Carvalho: ao redor do embate de textos longos e coreografia rigorosa, os figurantes não assistem à ação; ao invés disso, parecem posar para a câmera-narradora, cuja presença se torna opaca, explicitando sua intrusão. Isso porque não há contenção a esse olhar, nem sequer da referência de horizontalidade e profundidade do western. Ciente de que o duelo é relido sob a impossibilidade de retornar à cena clássica, a câmera inicia o movimento marcante do maneirismo — a serpentinata, que torce o olhar, descompensa os rostos e distorce o fundo preenchido, primeiro pelos olhares, depois pelas folhas das árvores. Nessa trama de interesses privados, os coronéis escolhem performar esse bang-bang de bolas de bilhar no espaço público da rua, que em 1993 era lugar de tráfego dos retirantes. Agora, esse espaço se consolida da porta de Norberto para fora, e Egídio e José Inocêncio fazem esse duelo-ensaio, que promete a encenação principal, mas, principalmente, anuncia as rusgas e potências individuais, lembrando que, naqueles homens, está a política e a economia. São toda a coisa pública que se pode ter naquelas redondezas.
102.
https://www.youtube.com/watch?v=6rg5a0vkORo
103.
– “Não é tristura não, é sódadi”, diz Norberto que, sem saber, se autodefine: é essa personificação rara de uma saudade tão cheia, que não sobra espaço para a tristeza. Talvez seja o que faz dele um personagem tão singular.
– Lú é, provavelmente, uma das únicas mulheres que Mariana não vê como oponente, possivelmente por causa da conversa emocionante que tiveram na escola, lá atrás, quando Mariana se mostrou como poucas vezes.
– Em movimento para re-conhecer a filha, Meire diz que a conhece — sabia que ela visitaria o túmulo da avó. Malu Galli supera o desafio de criar essa mulher em poucas cenas, mas em linhas e nuances certeiras (“eu não entendo nada dessas coisas. Eu não sei porque você fez isso tudo”). Medeiros ergue o corpo e o rosto para manter Buba de pé, mas diante dessa confissão tão genuína, a firmeza do “eu tô aqui” titubeia na última palavra — “pergunta”, a palavra saindo do lábio que luta para conter a voz, que quer embargar. Miguel Rômulo é outro que espreme Décio até a última cena.
– Diante do pai, os joelhos de Buba tremem e ela, de novo, segura a barra do vestido, como se buscasse algo palpável de sua identidade. Quando Meire pergunta se ele não está a reconhecendo, toda a força da cena escoa para o olhar de Guilherme Fontes, para a fotogenia dessa mudança, que lembra Buba que “o inferno são os outros” (e que, às vezes, os outros são os nossos). No contracampo de Medeiros, não há raccord de olhar, isto é, os olhares não se encontram; ainda que supostamente se encarem, ambos olham para a direita do quadro. A impossibilidade de conciliação começa nesse desencontro que me parece premeditado entre direção e montagem. O campo e o contracampo clássico só aparecem no momento derradeiro, na frase que viralizou ontem — “Sua filha tá viva. Quem tá morto é o senhor”.
– Joana puxa o facão para Egídio e transforma inclusive a maneira de andar; pisa duro, como chefe de um bando, Maria Bonita, Maria Moura. Depois, encara o diabo do Cristo, que lhe fez tão pouco na cruz daquela parede descascada. Joana “se prega” na parede oposta e a dor da decisão dessa mulher é vista de frente e de perfil, mas é no plano frontal, ponto de vista aproximado (pelo raccord de eixo) do crucifixo que a vemos duvidar antes de despregar um último fiapo de fé. Faz seu trato reto, oposto ao rocambolesco feito por Tião com o diabo.
104.
– Egídio chama Tião para costurar sua tocaia à Joana, mas expõe o empregado já agredido ao sadismo discursivo e dos gestos (intimida e obriga Tião a beber com ele). Nessas cenas, acentua-se a diferença entre Egídio e Teodoro: o coronel de Herson Capri era de um cinismo que se levava a sério, que procurava dissimular efetivamente suas verdadeiras intenções. O de Brichta é o cínico que pouco se esconde, até debocha; crê que mesmo desmascarado, não tem oponente à altura ou justiça possível.
– O almoço de Egídio e D. Patroa me lembrou do fim do café da manhã de Cidadão Kane, quando o casal, já desconexo, mantém-se em silêncio, cada qual em sua ponta da mesa. Aqui eles sentam-se próximos, a princípio, e o silêncio existe objetivamente, mas não na subjetividade, já que marido e esposa têm monólogos internos (e, talvez pelos anos de convivência, há a indicação de que eles conseguem bisbilhotar minimamente os pensamentos um do outro). D. Patroa, no entanto, vai à ponta da mesa para contrapor Egídio como Iolanda. Ela expulsa a câmera de seu lugar costumeiro à mesa, expondo esse desejo livre e legítimo contra o desejo chantageador e violento de Egídio. O fetiche de Iolanda a liberta diante desse homem que se rasga numa fúria de dentes e berros, mas isso é o menos importante; consciente do fetiche do marido, Iolanda vai cooptar essa pulsão, recalibrando a ilusão intimidadora contra o próprio Egídio para conseguir libertar também Joana.
– Morena desconfia do querer de Teca e expõe isso a Deocleciano, numa conversa travada pelo espelho da penteadeira. A princípio Morena é duas: o corpo de costas e o rosto partido pela intriga, pela dobra da dúvida, que ganha fisicalidade no vinco entre espelhos. Depois, ela se junta a Deocleciano para se apertar em uma das lâminas desse espelho, enquanto a câmera avança sentido ao casal, mas também aos cremes e colares de Morena, objetos-extensões dispostos na mobília antiga, inusual em casas contemporâneas. A penteadeira é, portanto, essa relíquia interna, que abrirá uma outra arquitetura: quando Morena revela desconfiar que Teca tem uma conexão passada com a fazenda, o reenquadramento do travelling in vai desdobrando outra fazenda, também pretérita, fantasmagórica, na pintura sobre as cabeças dela e de Deocleciano. O uso do espelho laminado contendo os personagens remete prontamente ao objeto/recurso usado na famosa mise en scène da banheira em Os Sonhadores, de Bertolucci.
105.*
– Os capítulos de toró já eram marcados por eventos especiais na Renascer de 1993, e essa singularidade se anuncia desde a abertura da nova versão. A tempestade cai e isola Mariana e Teca na casa de Morena, que, no breu, se torna o mausoléu de Belarmino. Esse episódio com a neta do fazendeiro e a bisneta de Venâncio já estava na original, mas, ao que tudo indica, novos desdobramentos vão opor a descendente do coronel e a do capataz. Entre o tabuleiro de Sandra, Norberto e Rachid e a prosa jogada na casa de Inocêncio (brabo que nem a chuva), a ação principal do capítulo parte de Joana, que não consegue explicar o plano dela e de Iolanda: mal começa a contar e, quando vê, Tião já está desvairado, à flor da pele e sob a chuva. Em 1993, era uma cena simbólica do distanciamento do casal: pela primeira vez, Joana surgia inalcançável a Tião. A direção primeiro decupava em detalhes o rosto em cólera de Osmar Prado. Depois, o desatino transformava a natureza da cena, da materialidade da chuva sobre o rosto à espiritualidade que reapresentava Joana entre as árvores, como uma entidade luminosa, embrenhada e estilhaçada pelos galhos, pela luminosidade e pelo desfoque. Joana renascia inalcançável a esse marido que, pouco a pouco, morria. Em minha tese, eu interpreto essa cena como uma releitura do mito de Dafne.
Tião, de novo, sai sob a chuva, mas a cena agora é terrena; a questão é menos o olhar (e a aparição que se dá a ver, mas não ao toque) e mais o efeito da chuva e da luz sob a pele. É uma cena cujo caráter háptico parece trazer a influência do Cinema de fluxo (a chuva ritualística de Shara me vem à cabeça). Quando Irandhir Santos passa com seu Tião evocando todos os que é/foi (dos Caranguejos, Galinha, Sonhador), carrega a câmera rente às costas curvadas, cuja inclinação expõe mais a pele aos olhos e à luz. Desta vez, não é Joana quem passa pela transmutação, mas Tião, e pela parte do corpo que Santos compõe como núcleo da corporeidade do personagem. Costas que permanecem carne, mas que se tornam suporte/superfície refletora, tela-pele de pontilhismos reagentes à luz. Com as costas, Tião hipnotiza a câmera, que flutua na enxurrada desse Sonhador que carrega um céu de sonhos e estrelas no lombo.
Quando Joana aparece para levá-lo para casa, os dois voltam a ser silhuetas de barro, só que sem a terra, só água. A Bachiana n° 5, de Villa-Lobos, (que se não me engano, aparecia em outro momento do casal em 1993), surge para pontuar esse reencontro que vai dos corpos aos rostos; as bocas próximas, como se canalizassem, entre a água, a repetição das palavras “amor e sonho”. Dentro de casa, Joana envolve Tião com um lençol e apoia o braço no marido, criando a silhueta de um cordão que nutre e sustenta na altura do coração. Sob os rostos desvelados, entre esse casal que “brinca de fantasma”, a chama de uma vela se impõe no centro desse lençol, nova tela que configura um novo corpo. Um só, feito de dois. Em 1993, Joana se tornava inalcançável; agora, ela alcança, ampara e mantém Tião. Do texto à direção, não era uma cena comum de se ver na televisão naquela época. Não é uma cena comum de se ver na TV em 2024.
106.
– A conversa entre Teca e Morena brinca de trazer à novela toda uma estilização característica do cinema de horror — o chiaroscuro, as velas (de Fritz Lang, Roger Corman, Os Inocentes, Os Outros, e tantos outros), o campo e contracampo frontais entre o duplo sujeito (no sentido de quem é, mas também de quem está submetido) ao objeto olhado/obsessor. Ótimo momento de Lívia Silva entre as Tecas; a moça normalmente safa e a garota encantada, que desponta sob influências sobrenaturais. A direção tem ainda a boa sacada de posicionar Morena de costas, ocultando o rosto/reação (nos obrigando à identificação com a presença mediúnica) e destacando os cabelos longos, que escorrem como uma fantasmagoria formal dentro do quadro. Em seguida, um crucifixo se ilumina pelo recorte da porta, que range. A conversa entre as duas segue na luz escassa, mas Teca agora é imune à vela; está entregue apenas à noite, como se ela e Morena ocupassem dimensões diferentes da casa.
– A DR entre João Pedro e Mariana muda bastante se comparada à original: em 1993, a de Esteves falava resignada, consciente de que sua escolha pelo pai a fez perder o filho. A de Fonseca quer manter João Pedro intacto nesse amor platônico, apelando para malabarismos retóricos que soam pouco razoáveis. As tentativas de convencimento de Mariana são tão delirantes quanto algumas passagens de Tião Galinha, porque, no fundo, o que ela deseja é meter João Pedro na garrafa.
– A conversa com João faz com que Mariana saia de cena aflita, aumentando a tensão do encontro seguinte, quando Teca surge, de espingarda em punho, como Belarmino (e a edição faz um belo trabalho ao usar os relâmpagos como ponto de corte para construir essa incorporação). Mariana a desarma: primeiro com a voz, que finda o transe (expulsa o avô); depois, literalmente, quando, sob o crucifixo ao fundo, demonstra saber manejar a arma. O gesto é ambíguo; assim como cria mais incertezas acerca dessa protagonista, prepara uma virada que deve acontecer no final.
– A tempestade abre esses parênteses na narrativa, alterando, ainda que momentaneamente, as regras do jogo. É uma característica que tem sido marcante no que Jason Mittel define como narrativas complexas, na qual Renascer — dentro do gênero telenovela — se encaixa (mas acho que já se enquadrava em 1993, antes mesmo desse conceito ser formulado). Essa suspensão do andamento narrativo comum encontra brecha na espiritualidade da trama para conduzi-la a um horror episódico (gênero que, aliás, é pouco frequente na telenovela). O passeio das netas pela casa mal-assombrada promove um trânsito, de mão dupla, na manhã seguinte: Mariana defende Teca do interrogatório de Inocêncio e, confrontada pelo marido, é retribuída quando a menina ralha “não fale assim com ela”. Mariana, então, sai de trás de um Inocêncio desacorçoado e se coloca ao lado de Teca, sintetizando os encontros e desencontros da noite anterior em ação física.
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– Tião e Joana partem como retirantes, como aqueles que passavam diante da venda de Norberto em 1993. Iolanda se junta a eles; antes, Marçal a olha repetidamente — braço truculento desse microcosmo machista, é como se o jagunço se desse conta de que aquela não é mais a “mulher do patrão”. Iolanda desce do carro e há ali uma pequena genialidade: a câmera acoplada à porta é posta sob essa abertura arretada da mulher que prefere se juntar ao bando que vem a pé a continuar ali. Aliás, é essa mulher de fé quem conduzirá o grupo até o brega, onde a boca de Joana se abre em dentes, e não em grito como antes de deixar a casa. Joana, que capítulos atrás lidava com palavras complexas como “amor e sonho”, devolve ao marido uma mais simples, que ela pronuncia como quem saboreia a sonoridade aberta, livre — “forró”.
– A casa de Jacutinga se completa como a casa de Sandra, que, observa Joana, tem coração de mãe. Se o sonho de Tião aprisiona essa família nas garras de Egídio, Sandra e Iolanda auxiliam na libertação e na condução de volta à segurança. No entanto, quem toma a frente é Joana, que já há algum tempo preenche a brecha aberta por Tião na cabeceira dessa família.
– Deitado no velho colchão de Joana e Tião, Egídio se lamenta, menos dolorido e mais desvairado do que Teodoro. Uma diferença: repete que está sozinho, talvez lembrando do fim do pai, que mal teve quem o velasse.
– Os encontros entre Nachtergaele, Santos e Sater sempre rendem bons momentos. Aqui, entre uma tacada e outra, os dois filósofos de venda explicam a Tião que, com o suor do trabalho, a fazenda que se compra é a de tecido. “Algodão, e olhe lá”, diz Norberto, antes de deixar claro que, por estas bandas, o sonho vem depois do feijão, que já é bem difícil de comprar.
– Nos detalhes: delicado o plano insistente das mãos de Iolanda acariciando o tecido e marcando o vestido de noiva de Sandra. Mas os detalhes também podem estar nos “gerais”: como o breve plano geral que finda a conversa de Teca e Inácia, pontuando que, naquele abraço, há um pacto de que o segredo não saíra do quarto onde, dia a dia, elas firmam sua cumplicidade.
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https://www.youtube.com/watch?v=F8kJp3FpOY0&t=3s
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– Buba e Eliana são personagens complementares: uma descobriu na vida pregressa (antes da narrativa) quem é, enquanto a outra se autodescobre em plena trama. Apesar de viverem questões identitárias diferentes, ambas lidam com esse universo patriarcal que espera delas um vislumbre ao invés de existências complexas. Mas elas existem e estremecem as terras dos Inocêncios. Eliana ressurge como sombra, força antagônica que se espraia como vassoura-de-bruxa que não escolhe a quem: seja pelo canto de sereia, seja pelo olhar de Medusa, Eliana derruba quem se puser contra seu projeto de poder cada vez mais claro — ela quer equivalência ao ser supremo daquele universo, quer o lugar do pai. Mas, diferente do coronel, Eliana não conta histórias: ela deixa cair uma logline, esse fiapo de intriga que corrói a cabeça de Inocêncio. Outro que fica de cabeça apertada é Damião, borrão azul na parede laranja num contraste de matiz insuficiente quando comparado ao provocado por Eliana, de preto, o batente branco da porta recostado sobre ela (é mais fácil a casa ruir do que Eliana). Quando Damião a pega pelo braço, o olhar lancinante, delineado pela sombra, é a síntese da composição que Sophie Charlotte adensa nos últimos capítulos, mas ela não para por aí: encanta Norberto, que é safo (e não Inocente), a encara nos olhos e serve à ela a cachaça da cobra. Eliana, então, brinda Jacutinga e outras que, como elas, negociam para sobreviver, até que possam “viver sobre”; sobre esse patriarcado, mesmo que individualmente. Eliana descobriu que, se não pode mudar o mundo, balança. E muitxo.
– Balança a relação dos Inocêncio como nunca, a ponto de fazer com que Augusto cresça contra o pai. O gênero de Buba é força oposta; enquanto Eliana abre fendas, Buba cria dobras entre o presente e passado, que ecoam a confrontação vivida por ela capítulos atrás. É nesse movimento de dobradura — tal qual o da abertura da Renascer original — que Augusto traz Maria Santa, a responsável por levar o homem que pactuou por tempo, deixando para trás este, trágico, preso ao tempo de diferentes formas. “O mundo na sua visão, orbita ao redor do seu umbigo. E o senhor, coronel José Inocêncio, exige que celebremos a benção de orbitar ao seu redor”, diz Augusto, resumindo com dureza inédita o defeito desse anti-herói, cujas migalhas de tempo dadas aos filhos eram suas histórias. Histórias incapazes de propiciar uma criação que contivesse skholè, o tempo livre, criativo, produtor das imaginações e dos afetos. “O senhor sabe o que a gente queria? A gente queria brincar. Queria que o senhor entrasse no nosso universo”, diz Augusto. Mas, para José Inocêncio, as histórias não são uma brincadeira, mas a renovação do facão fincado, gesto que atravessa e amedronta os espíritos, cria (de novo) sombra (inclusive sobre o rosto de Renan Monteiro), mantendo as regulagens desse mundo. Quando Augusto diz à Buba que viu o pai envelhecer dez anos, é porque isso está no close daquele homem que sucumbe um pouco a este primogênito que, no discurso, tira um facão da terra, prenunciando o que será tirado pelo caçula.
Quando Inocêncio segue para sua poltrona-trono (menos em evidência nesta do que em 1993), Buba está sob a penumbra noutra cadeira, encarando o Deus da casa de igual para igual. Mas, ao contrário de Eliana, que precisa ser sombra, precisa antagonizar para crescer, Buba avança em direção à luz (das velas da santa), para colocar-se às claras, se desvencilhando, enfim, do labirinto de esconderijos que, de Venâncio a Augusto, fez-se em sua vida. O jogo de contrastes luminosos, presentes do diálogo à fotografia, além de simbólico/arquetípico, faz uma fina ironia com a maneira como Inocêncio vê e ilumina seu mundo, dispondo-se a ignorar as nuances e o fato de que há luz nas sombras (e vice-versa). A trama de Buba ganha voltagem inédita e cresce nesta versão.
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– Inocêncio e Buba acertam os ponteiros numa cena sóbria, de palavras precisas; o rosto do coronel intimidado (buscando contorno e conforto na colcha) diante da força de Buba, cujos olhos cintilam, mas não transbordam — ela é vórtex interno que encontra “barragem” no close imponente de Gabriela Medeiros. Ela só extravasa nos braços de Augusto, a ponto de desestabilizar o espelho e todo o espaço refletido.
– Renascer é uma novela de mise en scène meticulosa: um exemplo é a cena em que Tião, em primeiro plano, aperta os parafusos de uma cadeira com as pernas para cima, separando Lívio e Rachid. Todos os gestos dessa ação soam corriqueiros, mas têm uma marcação rigorosa para não velar a dupla que dialoga na encenação em profundidade.
– Rachid, esse homem de palavras bem postas, amolece o tom e cria um hiato, uma tomada de fôlego, para entregar duas palavras — “nós apaixonado”. Toda a motivação da cena está nessa confissão, que brota desse homem vivido com frescor de primeiro amor.
– Se a Jacutinga de Juliana Paes era almodovariana, a Eliana de Sophie Charlotte é de palmiana, femme fatale autoconsciente que, cansada de ser olhada, passa a detentora assumida do olhar. Ela olha, encara e incomoda, doa a quem doer.
– O manejo de Mariana e a lealdade de Zinha começam a costurar um encontro/evento futuro. Nessas casas-grandes, os símbolos vão para as paredes (não os institucionalizados pelo público, como o diploma de medicina, mas os que têm conexões mais profundas e privadas). A arma exposta é objeto de decoração, mas é também uma lâmpada mágica maldita, capaz de ressuscitar os desejos mais sombrios, de fazer renascer o tempo das tocaias. E isso tudo passa a apertar a cabeça de Zinha, leal como ninguém a João Pedro. Como nem mesmo o pai. Maldição de José Inocêncio: a fraternidade afetiva soterra a hereditariedade, o sangue.
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– A dúvida da inocência, que em 1993 era desfeita na confissão sutil a Padre Lívio, agora é posta à prova refletida — mais do que isso, impregnada — no olho de Teca. A visão de José Inocêncio com a arma é estilizada não como objeto do olhar, mas como parte indissociável do sujeito que vê, trauma que arrasta os destinos de Mariana e Teca. Quando Mariana flagra Inocêncio com a espingarda, é posta sob o cano, refazendo parcialmente a situação do sonho em que ela ficava sob o cruzado de José e João. Ela encara o coronel de rosto erguido, os cabelos emoldurando o rosto de leoa como se estivessem sob o efeito do vendaval que escapa dos olhos dissimulados. Não há ressaca possível ao olhar de Mariana, porque só o que há de água é a umidade da irritação causada pela poeira dessa vida seca, confinada nessa fazenda verdejante. Adiante, Mariana (que capítulos atrás arriscou-se a ir à porteira) ressurge sob o reflexo dos ferros que cercam a Casa-grande (e quem viu o primeiro longa de Sofia Coppola sabe o efeito que esses grilhões-estacas podem produzir), mas projeta-se sobre ela, sob o queixo, um dos pilares que intervalam a grade. No plano, ela própria se faz estaca, tão fincada ao chão quanto Inocêncio. Depois, abraça Inácia, outro corpo estrutural.
– Inocêncio e Rachid urdem um plano e lá vai Norberto, todo composto, tratar com o intratável. No confronto entre o esperto e o ardiloso, Egídio, esse coronel-imagem obcecado em parecer o que não é, se achega para arrumar a lapela, o colarinho e as ombreiras do terno de Norberto, replicando esse ato de recompor-se no outro, desta vez como ameaça. A volta de Norberto é marcada por uma meia-luz interna, que, na conversa entre amigos, vai desfazendo o nó da tensão, relaxando os ombros tensionados sob o toque de Egídio. São duas cenas breves, mas com essa luz anti-televisiva, que lembra ao público de que o olhar também respira, descansa, distensiona.
– A cabeceira de mesa da casa de Jacutinga é ocupada por Joana e isso desorienta a mise en scène padrão: ao invés de “sentar-se” na ponta oposta, como de costume, a câmera gira generosa, tentando registrar de forma mais justa, completa, igual, a prosa derramada entre o jantar, nessas trocas que passam por Sandra e Iolanda, de Joana a João.
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– O ato-falho de João Pedro ecoa um dos principais títulos televisivos dos anos 1990, década da novela original e que inicia a versão atual. A nostalgia, essa construção cultural tão em voga, era estruturante já em 93: saudava-se um outro Brasil enquanto abrandava a decepção com uma modernidade prometida; a crise da nova República abria brecha à reconstrução imaginária dos primórdios republicanos, de um coronelismo aprimorado e recontextualizado. O Brasil que surge agora em Renascer é um Brasil mais concreto, possível, mas visto por uma lupa menos romantizada; nesse sentido, a nostalgia, que continua, mira não mais no universo, mas na reavivação de uma memória televisiva. Entretanto, diferente do que acontecia na original, quando a TV surgia como a benesse moderna, a televisão agora é quase ausente: apareceu na novela de Morena (típica retroalimentação televisiva), na reprise de Mulheres de Areia (também dos anos 1990) e, agora, na menção a um dos ícones culturais daquela década, sitcom que coincide e marca a chegada da TV a cabo ao país.
O engano é uma piscadela ao espectador atento, mas para além disso, talvez seja característica nostálgica não mais de um outro Brasil, mas de uma outra televisão; uma que ecoa na memória coletiva, mas que pouco aparece como presença cênica — que, portanto, não volta ao papel de fogueira da aldeia global na sala de estar da Casa-grande. Quando João Pedro erra o nome de Sandra, demanda do público um repertório, que, convenhamos, não é inacessível ou dos mais rebuscados. Mas numa televisão que se fragmenta num mosaico móvel de on demand (que nicha o fluxo das imagens via algoritmos), a inserção dessa nostalgia factual problematiza a proliferação de nostalgias erguidas fora da memória e da narrativa, feitas de pura estilização e de um déjà vu vazio, publicitário. O ato-falho aponta para a paixão reprimida por Mariana, mas noutra camada, há o ato calculado dessa convergência televisiva/genérica de outro tempo, nostálgica de outra televisão (público incluso), provavelmente de outra globalização. Outra nostalgia que, no fundo, é um pouco a mesma: desejo de voltar, de alguma forma, a tempos mais simples.
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Se capítulos atrás, as amigas Mariana e Eliana recompuseram o plano de Persona, que no Brasil tem o subtítulo “Quando duas mulheres pecam”, agora, elas se separam em seus respectivos “pecados”.
O de Mariana é amar o filho estando casada com o pai, algo mais às claras nesta versão e que a lança nesse vórtice matrimonial que vai corroendo e estilhaçando tanto ela quanto Inocêncio. Cenas de um casamento que ecoam de Bergman a Nichols (“Quem tem medo de Virginia Woolf?”, “Closer”) e que vão compondo uma trama própria, herdeira de um subgênero cinematográfico, das mais interessantes desta Renascer. As cenas com os dois altos após o casamento de João Pedro escalam o confronto entre esse Inocêncio que seca (depois de transbordar amor na dança chuvosa com Maria Santa) e essa Mariana que, diferente da anterior, ruge, descontente com tantos desamores — do marido que não a vê, da maternidade que lhe é negada, da tocaia que tentou ao outro e acabou armando para si própria.
Mãe é o que Eliana nunca quis ser; ela se desvencilha tanto da maternidade quanto do matrimônio, etimologias convergentes. Mas, como Jacutinga, é coroada “mãe de todas”, reconhecida figura mitológica pelos olhos da masculinidade singular de Norberto — masculinidade dolorida a ponto de transformar a ausência de Jacutinga em sobrevivência, premonitória em reconhecer Eliana como única capaz de se impor entre os coronéis para reoriginar esse universo. Só Eliana desperta e derruba Norberto, e ela, que não cabe nessas maternidades patriarcalizadas, ao reconhecer nele o próprio sofrimento, abre uma exceção: acarinha sobre o colo, campo e contracampo. Só no plano final da cena vem a revelação: entre Jesus e Jacutinga, Eliana se faz Pietà; não daquelas eretas, que sustentam um corpo, como na imagem cristã, mas uma que escorre em mútuo amparo de uma solidão trágica, espelhada, reconhecida. Páthos que é menos Pietà de Michelângelo, mais Madonna de “Pixote”.
114.
Entrevista com o autor Bruno Luperi: https://www.youtube.com/watch?v=7Jz4afQ4l6A&t=49s
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– Tião parte e puxa o sumário narrativo que passa o tempo; antes, ele pede a benção aos filhos, que lhe acariciam a cabeça. “Painho vai atrás do de sonhar”, diz, antes de se acorcundar (a sombra no chão decalcando a curvatura) em meio a um mundo vertical: da câmera a pino, plano apocalíptico que o massacra entre viadutos, aos morros que se erguem em árvores, da selvageria humana à natureza selvagem. A conversa com Lívio que, em 1993, sonhava com a reforma agrária (enquanto a câmera os circulava, desvairada pelas pastagens), não retorna; Tião se contenta em diagnosticar que “esse mundo tá é quebrado” enquanto mexe numa cerca, peça fundamental nas quebras. Lívio dá a ele a Bíblia, que surge sob uma luz divina e sob o olhar da sereia de Jacutinga. O pastor faz nascer Tião Pregador, o último antes da morte de quem não tem terra, nem jequitibá, nem facão; só as mãos, que o sujeito no alpendre olha com completo desprezo.
– Rachid tinge os cabelos no capítulo seguinte ao Jane Fonda’s Workout de Eliana e Iolanda. A carolice cômica dada por Camila Morgado ajuda no ajuste fino do casal nesta versão; as interpretações marcadas ultrapassam o estereótipo para encontrarem caricaturas ternas, cujas superfícies nos fazer escorregar às profundidades. Quando Iolanda repara que o libanês mudou a barba, Almir Sater inclina o rosto de leve, para frente, acendendo um sorriso de satisfação vaidosa antes de assumir a mudança. “Coisa muito simples”, ele diz sobre a tintura, mas cabe ao gesto singelo, mais um que vai adornando uma interpretação genial.
– Eliana, por sua vez, faz e chama Damião de “quengo”. Em 1993, o Damião de Antunes era mais solar, e a disputa entre eles era mais um movimento interno a esse casal. Agora, a dimensão dessa disputa é outra, é social: Eliana ridiculariza essa masculinidade sisuda, reforçada pela corporeidade composta por Xamã. Curiosamente, ela vai tendo nas mãos todos os “entocaiadores” de Inocêncio, seu antagonista. A cumplicidade só poderia vir com Norberto, o único que tem a acidez de Eliana.
– Deliciosa — como bolacha maizena e café — a cena entre Joana e Deocleciano. Ela sonha acordada sobre o pote antes de oferecer as bolachas, que Deocleciano aceita (vai degustar uma e a outra vai guardar no bolso). É o tipo de cena que traz a visita de outro tempo, com outras prosas, de um Brasil que existe, mas que pouco aparece; numa TV baseada em mini-catarses, não há tempo para conversas com café e bolacha sobre cafés e bolachas. Soa inverossímil um detalhe: quem come só duas bolachas maizena?!
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– “O que eu acho ou deixo de achar, não impede o rio de correr pro mar”, ensina Inácia, antes de José Onipresente entrar, flagra que demanda o plano polarizante — o coronel e as duas mulheres opostos pelo comprimento da mesa. Enquanto isso, Du, Neno e Pitoco passam o capítulo lidando com uma distância mais árdua. Numa birosca de beira de estrada, o caminhoneiro lembra a dimensão continental do país (não está tão longe; 600, 800 Km). O trio personificante da falência urbana vai se aproximando da fazenda de José Inocêncio.
– Eriberto faz uma proposta à Kika e a evidência da tatuagem de Pedro Neschiling antecipa a resposta: “Aham”.
– Pequena aula da relação entre arte e fotografia a dança de Rachid e Iolanda: a ambiguidade da luz (as lâmpadas vermelhas, o luar frio) encontra superfície refletora no hobby de cetim de Iolanda, cujo brilho contrasta com os tecidos opacos do figurino de Rachid. Isso porque, como diz Kim Hudson em seu livro, Iolanda decide brilhar (literalmente), enquanto Rachid atua como aliado na cena. Dois planos merecem destaque: aquele que sublinha o encontro/convite das mãos, no início da dança, e as mãos que se abraçam ao final, recaindo carinhosamente sobre as costas.
– “Eu não vou lhe aguentar ver nos braços de outro, não” / “Então feche os olhos, Damião”, retruca Eliana. O jagunço sai brabo, assusta Iolanda e vai encarar… Norberto. Com direito à trilha a la Enio Morricone, o embate entre o matador e o dono da venda remonta o primeiro encontro dos dois em 1993 (mais até do que a cena análoga desta versão); Damião, inclusive, diz que Norberto “fala demais” (o de Antunes dizia que Norberto “fala muitxo”). Em passos ritmados e braços abertos de quem convoca ao duelo, a chegada de Damião faz Norberto e a câmera recuarem. O “forasteiro” cresce no jogo dos contra-plongées, e a câmera vive esse paradoxo: quer ficar com Norberto, à altura dele, mas olhar Damião é inevitável. O trêmulo Norberto escapa, claro, mas mal Damião vira as costas e a esperteza do dono da venda aflora, sugerindo que, para sobreviver naqueles confins de tocaias, Norberto vive de jogo de cena, de teatro.
– A chama sai de trás do lençol que compartilhava com Joana e se acende entre o livro e o peito de Tião. Na manhã seguinte, a mão, extensão do homem sem meios, volta ao plano com a inscrição — “justiça”. A palavra, no entanto, só se forma corretamente porque Joana, com esse amor cheio de paciência, explica sobre o “rabinho” da cedilha. Tião faz da palma suporte e meio de comunicação, mas o ruído linguístico (normativo) é corrigido por Joana. A questão é que o ruído pode acontecer na recepção, estar impregnado nos ouvidos, nos olhos enevoados, sobretudo no que diz respeito à essa palavra de maneira mais ampla, justiça social, num país em que mesmo as camadas mais estudadas, continuam oportunamente iletradas a isso.
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– Sob a cruz (que abençoa ou pressagia?), Tião aprende a ler pela palavra da fé. Forma-se um duplo: Tião ganha a palavra, porque aprende a ler, ao mesmo tempo que ela lhe escapa, porque ele a questiona pela palavra que já tinha, da oralidade. A fé de Tião entra em crise com esse mundo quebrado, e a cena culmina na menção ao Padre Júlio Lancellotti — “eu não luto para vencer; eu sei que vou perder. Eu luto para ser fiel. Até o fim”. Diferente das conversas em 1993, o mundo agora está no extracampo. Lívio e Tião aparecem confinados; a cruz posta entre eles é a promessa possível, o facão fincado desses homens que não reinam lugar nenhum (talvez Lívio reinasse, se tivesse templo). A leitura da passagem (“bem-aventurados os mansos, porque eles herdaram a Terra”) aos filhos é uma ironia cruel, pois deixa de herança esse ensinamento que soa como uma mentira ainda mais tola nesse lugar em que os mansos são todos empregados.
– Zinha canta, encanta, se encanta. Com direito a bis. A suavidade da voz é a mesma com que a câmera se aproxima, acariciando Joana, mulher doce de vida dura. Alice Carvalho entrega essa mulher de olhos generosamente esperançosos; Jones responde com essa menina de cara quase sempre amarrada, mas que se acende quando ama e quando solta a voz.
– Bento e João cercam Iolanda e a benevolência é ambígua; a ajuda é lateral, o que os Inocêncios miram é o embate com o desafeto. Abre-se uma contradição no subtexto: o discurso feminista, que apresenta a compreensão da lida doméstica como trabalho, aparece, mas cooptado pelos interesses do patriarcado (e Iolanda segue nessa mesma perspectiva). Traz uma discussão bem contemporânea: até que ponto alinhamentos circunstanciais podem, de fato, alicerçar avanços e progressos? Quando Egídio confronta Iolanda, é Joana quem vem a seu encontro nessa quina de paredes e janelas, encruzilhada interna dessas mulheres que, no trabalho em casa, encontram sustento e prisão.
– José Bento é bem moço destes tempos: não torrou o dinheiro do pai; investiu “em experiências e atividades correlatas”. A cara de Inocêncio diante da confissão do filho é impagável. João, réplica paterna aperfeiçoada, se mete até nisso: é pai até mesmo do mais ingrato dos filhos/irmãos.
– Eliana seduz Egídio, mas as motivações talvez a ultrapassem; ela age depois de saber das ameaças de Egídio contra Iolanda. A última palavra, um sucinto “é”, soa como um anzol lançado, à espera do peixe. Norberto comenta e, mais tarde, nos enxota com o pano de prato; vai fechar a venda (chega de fofoca por hoje). Mas Bento quer dormir na mesa, e Du, Neno e Pitoco emperram a porta da birosca. Essa venda, que conjuga espaço público e privado, é portal para este mundo, por onde passam todos os forasteiros de Renascer.
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– Rigorosamente bem composto o plano em que a linha do balcão conduz o olhar entre Pitoco, Neno, Du e Norberto até chegar a Bento e Lívio, no background; o pastor — que logo se afeiçoa pelos meninos — marcado entre Du e Bento. As cenas em que Lívio os leva por um tour pela fazenda têm essa função de reapresentar esse mundo, que a nós já é bem conhecido, refazendo um frescor que ressuscita as infâncias perdidas, o pisar do cacau como possibilidade de brincar. Claro que com Du, desconfiado, isso tem que ser reavivado no colo, na marra. Enquanto os meninos brincam de cacau, Eliana trabalha…
– Para além de torcer e dilatar o jogo entre E&E, o plano-sequência externo, com a câmera rodeando personagens/atores quando o horizonte de terras é uma questão, é um expediente que volta de 1993. Lá, aparecia muito para contrastar Tião, que em meio à tanta terra, não tinha nenhum palmo de sua. Desta vez, surge como espacialização da ambição de Eliana, que, inclusive, ecoa Tião ao falar de “um pedacinho de chão”. Egídio diz que seus domínios “vão até o mar”, mas só o que se abre é um mar de morretes, que atravancam a vista desse horizonte. Resta à Eliana crer ou não no gogó do pica-pau, que, por sua vez, põe em dúvida a palavra de José Inocêncio. Mas Eliana, apesar de rival, afiança o sogro; mais do que isso, compara os hectares e as arrobas, testando (zombeteira) o coronel pela medida, coisa típica desses núcleos falocêntricos. Egídio não titubeia em caracterizar Inocêncio como “limitado”. “Cacau é uma cachaça que você tem que aprender a viver”, pontua o coronel, ignorante de que, na venda de Norberto, Eliana já molha o bico nas melhores cachaças faz tempo.
– Pai ausente durante o período Galinha, Tião tem aparecido nessa paternidade terna, que nina, acarinha e cuida. É verdade que ele demonstra certo melindre diante da inversão de papéis, com Joana mais bem sucedida do que ele na garantia do teto e do pão, mas, sem se dar conta, entre a palavra e os filhos, Tião tateia uma forma de deixar sua marca nesse mundo quebrado. Joana se preocupa com o que as palavras do pai podem fazer aos filhos; enquanto conversam, arrumam a cama, cada qual do seu jeito, mas cúmplices. Me lembrou uma entrevista de Isabel Teixeira na qual ela lembrava uma cena em que Maria e Tenório puxavam os lençóis antes de se deitarem, gesto que lampejava algo de bonito daquele casamento perdido. A dramaturgia pode se exibir nos plot twists, mas ela vive mesmo é nesses detalhes.
– Os diálogos entre João Pedro e Zinha têm uma prosódia própria, à parte. As falas, os tempos, as sobreposições compõem uma espécie de carro que pega no tranco, seguindo deliciosamente desgovernando, entre embalos e pinotes, até o fim da ladeira. Não um carro qualquer: um de rolimã, que evoca essa cumplicidade dada desde as artes de criança. Às vezes, pouco importa o que dizem; o ritmo, a vibração é comovente por si só.
119.
– Se os projetos de teocracia nascem e dependem da redução do mundo a maniqueísmos, o caso da Bíblia de Tião aponta para uma teia das existências, para a complexidade das coisas no sentido pensado por Edgar Morin. Isso porque Bento tem razão quando critica a linguagem como manutenção hierárquica (o que acontece nas religiões, mas também no direito, na medicina etc.), a mercantilização da fé e a teologia da prosperidade como pensamento autocentrado, pouco fraterno. Mas Lívio também tem seu ponto quando demarca que as religiões são muitas; mais ainda, as fés, ali objetificada nesse “best seller” tão inacessível quanto banalizado, mas que, para Tião, carrega o Sebastião anterior, o pai Osmar, a memória particular. A conversa entre cobogós começa horizontal, mas termina com Bento no púlpito, epifania contraditória que põe o “patrão” como voz da consciência, acima, engaiolada. A boa intenção mantém Tião na inércia, iletrado. Mais tarde, na venda, Bento joga um diagnóstico factual — não foi ele quem misturou religião com política —, e Lívio lembra dos deslizamentos entre religião e fé, público e privado, comunitário e pessoal. Quando Bento sintetiza o discurso do outro na palavra “utopia”, Lívio, esse pastor desigrejado, cujo corpo e palavra são o próprio templo, diz que luta consciente do fracasso nesse sistema. Entre utópica e ingênua, a fala de Lívio é importante na defesa do direito à fé, mas esquece que “o reino dos céus”, por ora, se dá no mundo terreno. A interiorização não deixa de ser individualista, de tanger o discurso de Bento ao deixar Tião no mesmo lugar. A complexidade está justamente nesse nó que se afrouxa, mas retesa outro. Ponta oposta ao bon vivant, e homem que quer estabelecer raízes (ao contrário do pastor peregrino), Tião deve dar seu jeito. Ou pelo menos tentar, já que é esta é sua sina.
– Enquanto esse trio de homens tão diferentes teoriza sem pôr em prática, não chegando à práxis, Eliana, a mulher patriarcal, é pragmática. Eliana é uma camaleoa: mais alto contraste deste universo, ela logo entende que, na impossibilidade de mudar o mundo, o melhor é se camuflar-se pacientemente até poder reaparecer na posição de algoz. Sua aliança com Egídio, o assassino de seu ex-marido (no fundo, ela sabe disso), não impede a empatia com o sofrimento de outras mulheres (e é interessante perceber que ela reconhece e diferencia as violências sofridas por Joana e Iolanda), mas essa sororidade não se efetiva porque, para ela, seria uma prática em vão. Acreditando na impossibilidade de vencer a virilidade sistêmica, Eliana busca uma relação de mutualismo, pelo menos até fortalecer-se o bastante para passar ao comensalismo, beneficiar-se sozinha. Por isso mesmo, ela ouve atentamente Joana, cuja dor sai genuína num relato emocional, mas ignora o conselho de Mariana, personagem cerebral que fez movimento semelhantes ao tentar se instalar como vassoura de bruxa, mas acabou parasitada pelo patriarcado. Mariana errou a tática, ao invés de camuflar-se (continuando na superfície externa), se infiltrou e acabou aprisionada. Eliana é mais estratégica; é bicho que ora mostra os dentes, ora disfarça, e assim, medindo gestos e palavras, mais pela intuição do que pela razão, vai sobrevivendo. Que o destino faça delas Thelma e Louise (caindo no mundo, não num penhasco) no conversível de Egídio, que, se antes derretia de calor, agora frita, sem nem se dar conta.
120.
https://www.youtube.com/watch?v=lFyzxMOt-F8&t=106s
121.
– Du provoca Damião e diz que morreu “tem tempo”; dá a entender que algo grave aconteceu durante seu sumiço. A ver… enquanto isso, o fim do forrobodó coloca Zinha em serenata à Joana. A música de Dominguinhos fala de Zinha, mas também de Joana: “que falta eu sinto de um bem / que falta me faz um xodó”. Isso porque Joana vive com Tião a cumplicidade dos anos, da história, mas os carinhos, os xodós, quase sempre partem dela; Tião não age, reage. Deocleciano interrompe quando aparece encarnado do pior pai…
– …, mas Morena o situa: Ana Cecília Costa, essa Morena de vogais abertas, fecha a fala arejada para que as palavras caiam com o devido peso sobre Deocleciano; Antunes, de fala branda, dá o texto rasgado, o lábio inferior espasmando o descontrole. Quando vai à Zinha, está quase de volta ao centro: a palavra “desculpa” — rara na boca de um patriarcado que historicamente se exime de qualquer culpa — sai com o “L” embargado, escorregão/escorrimento da voz desse pai errante, mas com os filhos certos, que a vida, de alguma forma, lhe deu. Lembro de uma entrevista em que Luiz Fernando Carvalho dizia que Antunes como Damião era uma força da natureza. Como Deocleciano, também: é esse homem de bons ventos, mas que, quando modula, vira logo trovão e água.
– Inácia, Buba e Augusto conversam, observados por trás da “colmeia” de um móvel. É um recurso que, por vezes, lembra o das câmeras escondidas em A Regra do jogo, com a diferença de que naquela, não havia um conceito bem urdido ao olhar. Aqui este olhar-narrador fantasmagórico conhece bem todas as casas e sabe exatamente onde se colocar. Da casa-grande vai à casinha encontrar Teca, agora corporificado, feito em Maria Santa. Tia-avó e sobrinha-neta se reconhecem e se espelham; as mãos (elas, de novo) se entrelaçam. Inácia, a mulher mediadora dos mundos, chega para acompanhar o encontro, e Teca, encarnada em Lívia Silva, abre o sorriso que põe abaixo os limiares entre vivos e mortos — “Maria Santa, tia”, ela diz, como quem descobriu a energia mais simples e mais nuclear àquele universo. Maria Santa surge atrás de Inácia para inspirá-la; rosto sobre rosto, com o foco alternando entre elas, o borrão e o contorno, por si só, dicotomia deste e daquele mundo, que é um único. Teca termina aos pés de Inácia, mais menina e mais encantada do que nunca.
– João Pedro e Sandra compartilham o pano de piquenique sobre o gramado macio, enquanto Mariana se contenta com as ranhuras das pedras. Posa com um dos braços calculadamente jogado, como se aguardasse para ser vista (o que acontece com a chegada de Inocêncio), como se compusesse um daqueles planos “mulher x rocha” de A Aventura, de Antonioni. A vida é dura e áspera; bem sabe Mariana.
– Iolanda maldiz as roupas de Eliana, mas são as malditas que a fazem olhar-se; através do humor, Morgado populariza a personagem, tornando-a uma das mais marcantes desta versão. Enquanto a ex descobre a imagem no espelho, Eliana protege os olhos com nada menos do que os óculos de Firmino. Para estar com ela, Egídio terá que encarar esse objeto-extensão do pai, que Eliana dessacraliza assim que põe os pés na fazenda. Não à toa, ela põe as botas para o alto e desequilibra não só o plano, como a mesa quase vazia, objeto-lugar onde o coronel lembra que não governa mais ninguém.
122.
– Dos lenços no pescoço ao ato, Egídio finalmente completa a referência a Sinhozinho Malta lambendo as mãos da viúva Eliana, que, com óculos escuros, poderia bem ser Porcina. Mas viúva Eliana não tem Roque Santeiro, nem praça pública para ameaçar o coronel, então se instala na casa, que promete (cantando) balançar (assim como Jones, Charlotte é outra que, desde a versão avassaladora de Sua Estupidez, em O Rebu, deveria ter sempre um microfone por perto). Alguns detalhes: na passagem de Menina veneno em que Egídio canta “fico falando com paredes”, ele e Eliana são isolados e oprimidos em planos em que justamente as paredes compõem máscaras formais. Na vez dela, o quadro da mata verdejante é confrontado pela tela da TV, que apresenta a imagem de uma metrópole feita em digitalização ultrapassada, típica das imagens de videokê. O arranha-céu espelhado, que se ergue na abertura da Renascer original, ornaria com a cidade no LED. Da pincelada sobre a tela ao digital explícito, há duas Renasceres inteiras.
– Enquanto isso, Iolanda remete (e, de certa forma, homenageia) às mulheres cheias de desejo que irrompiam nas novelas de Aguinaldo Silva; a mim lembrou, principalmente, Scarlet, personagem que Luiza Tomé fazia saboreando o sotaque farsesco, aberto, quase debochado que Camila Morgado também coloca aqui. Morgado, aliás, arrisca e acerta: conduz o estereótipo não à redução, mas pelo caminho árduo de buscar uma profundidade sem se desfazer da superfície. A mise en scène à mesa (ou na mesa), com Rachid posto num meio termo entre hábito e hijab, corroborou o humor desse casal (que não chega a configurar um núcleo cômico), sem atenuar a sensualidade.
– Nessa novela sobre patrimônios, sobre ter, Pitoco responde sobre um não ter abissal: “tive não”, diz, quando perguntado da mãe. “Pois agora você tem”, retruca Morena, nessa cena especular daquela de ontem, com pai e filha, Deocleciano e Zinha. Morena, a primeira dessas mulheres a sentir um vazio incontornável, se ilumina com a casa cheia, lugar que acolhe os menores cuspidos pela sede (enquanto a de Jacutinga acolhe os maiores). Numa Renascer de Juans, Paiva já tem as atenções há algum tempo, mas Queiroz surge com uma faísca parecida, brilho de ator para se ficar de olho. Promete.
– Se em 1993, Lívio e Tião falavam das terras com elas à vista, agora o ensino da reforma agrária vem quando os dois olham por esse basculante que não revela o mundo, só o brilho (miragem?) dele. De uma janela à outra — a lousa —, Lívio fala sobre o Jubileu, desenha a vida como um traço horizontal e o patrimônio como uma diagonal. No contracampo, o flare que recai sobre o ombro de Tião também delineia nessa vida um início de mosaico, como se a reforma, a partilha começasse por aquele corpo. Tião se levanta e a câmera encara esse homem como olho da lousa, vendo-o tapar a boca, sublinhando os próprios olhos enquanto pensa sobre a complexidade daqueles dois traços. Então, com sua mão-instrumento, Tião apaga a diagonal do patrimônio, do alto até a intersecção, o nó, que ele desata. A mão se fecha para, antes de virar suporte à escrita, simbolizar nova lufada de força a esse homem com tantas rasteiras.
– Inocêncio dá uma prensa nos garotos e Marcos Palmeira faz uma jogada esperta: permite um vislumbre da figura feita por Fagundes, algo que vem ao justo encontro da revelação de que ele continua vivo e ligado. A suposta ingenuidade talvez seja manobra, flexão máxima dessa inocência dissimulada desde o nome.
123.
– O jogo entre Egídio e Eliana se reequilibra e a câmera se põe no meio de campo, no centro da mesa. Na original, acho que o deslumbre do coronel durava um pouco mais (e Eliana dava corda, dizendo que ele a fazia sentir-se uma colegial). Agora, a cortesia carregada de segundas intenções já se acabou, e o coronel mostra a verdadeira face (que Eliana já conhecia): diz que mulher dele tem que ter serventia na cama. Ele emenda o nome depois do “dona” contra a vontade, com um quê de sarcasmo, doido para substituir “Eliana” por Patroa, Bruaca, ou qualquer outra depreciação. Não é o único embate de Eliana; ela dobra Mariana, mas não Sandra, que ouve que ainda ficará agradecida. Pode até ser, mas a sororidade de Eliana é antes com ela mesma; suportes ou retribuições a outras mulheres têm que partir ou passar pelo lugar em que Eliana se coloca..
– Egídio põe na mesa a semelhança com Inocêncio: ambos têm visões próprias e tangentes da justiça, preferindo que a justiça institucionalizada passe a largo das fazendas. Mas o Delegado vem aí para aperrear os dois.
– Se no capítulo 122, Palmeira lampejou o Inocêncio de Fagundes, agora foi a vez de Theresa Fonseca encarnar, por alguns segundos, a Mariana de Esteves: ao convidar Inocêncio para se juntar a ela na cachoeira, Mariana/Fonseca fala “a roupa, primeiro” com a mesma empáfia moleca da de outrora; até tom e timbre modulam e lembram a Mariana de Esteves. Essas homenagens surgem na calmaria que antecede a separação dos dois; hiato harmônico que parece se estender aos arredores, encontrando retrato preciso no sumário narrativo corre o tempo e as gravidezes (em travellings e elipses especializadas, Du isolado dos demais). Se, como diz Inácia, nem a tempestade nem a calmaria duram para sempre, é também verdade que esses respiros de tranquilidade elaboram um discurso sobre esse mundo, esse modo de vida, como se esses momentos de equilíbrio conciliatório servissem para assentar aprendizados. Acho que falo mais sobre isso num próximo vídeo…
124.
– A morte anunciada por Quitéria é reforçada como intriga pelo pedido de Mariana: ela quer ir ao Jequitibá, lugar que Inocêncio apresentou à Maria Santa quando recém-casados. Liso, o coronel despista e Mariana finge não perceber; mesmo nesse rescaldo de lua-de-mel em que estão, não confiam um no outro.
– Singela a cena em que Tião penteia o cabelo da filha, arrumando-a para ir à escola. Ao que tudo indica, ambos olham para um espelho no extracampo, mas a câmera opta por uma angulação mais próxima de ¾ ao invés da frontalidade (que configuraria um ponto de vista do espelho), posicionando-se próxima à ação, mas respeitando esse espaço do carinho entre pai e filha. Dali, eles seguem para o café da manhã. Joana senta-se à ponta da mesa; Rachid pode ter a escritura da casa, mas é ela quem tem regulado o ambiente dessa família estendida: preocupa-se com a suposta greve de fome de Iolanda, aconselha Eliana…
– Se no último embate à mesa, Egídio saiu com a última palavra, desta vez, Eliana contra-ataca ao longo da cena em que os dois aparecem em campo e contracampo de “quebra-cabeças”, peças recortadas pelas cadeiras. Ao final, Eliana sai com o mesmo ar enigmático de Egídio na refeição anterior. Chumbo trocado. Ela segue para a venda, onde Norberto — mexido com a possível partida de Rachid — vira João Grilo Falante, tentando recobrar o juízo da “viúva do cacau”. Os conselhos de Norberto saem com um pesar cansado, incomum ao personagem, que expõe a preocupação genuína que ele tem com Eliana. Ela, por sua vez, segue noutro tom, costurando esse diálogo rítmico entre a mulher resoluta e o sujeito dos panos quentes.
– Norberto e sua derrubada de paredes é resultado de uma feliz afinação entre roteiro, direção e ator. Isso porque as marretadas na 4ª parede modulam entre avanços, retrocessos e surpresas, como a deste capítulo, quando Norberto usa o pronome pessoal “tu” para falar individualmente com cada telespectador (e não como o público como coletivo). Além disso, pactua-se uma espécie de jogo a cada aparição do personagem, com a provocação da pergunta “quando será que ele olhará para cá?”.
– Inocêncio chama a responsabilidade de Buba (e, implicitamente, de José Venâncio) no gancho que finaliza o arco iniciado num atropelamento. Novela é isso: dilatação, reiteração e complicações sucessivas, que vão dando arcabouço à estrutura folhetinesca. O plano em contra-plongée extremo contrapõe Augusto e Inocêncio, esses Josés tão diferentes, mas também Buba e Mariana, que pega o exame de DNA — o documento como cartada em destaque — para dar o xeque. Mas o jogo está mais para um dominó enfileirado, e a peça derrubada por Buba lá atrás, além de outro papel prestes a chegar em perfeita sincronia (a coincidência como marca melodramática), dispararão outro efeito dominó à Mariana, que, mulher de lugar nenhum, começará sua peregrinação entre as casas. Teca é sangue daquele sangue; tem, portanto, lugar garantido na fazenda Jequitibá-Rei.
125.
– Bruno Luperi disse que haverá uma virada no cap. 128, mas o 125 já trouxe um terremoto, que reuniu algumas placas tectônicas, separou outras. Um capítulo de roldanas azeitadas, que culminou numa cena bem característica do melodrama familiar — o segredo revelado pelo destino diante de todo a casta. Tudo foi uma questão de timing: Camila Morgado, por exemplo, teve uma sequência de tons e tempos; a conversa com Deus começa com um alívio crível, mas logo vai passando, pelo humor, à tomada de consciência. Na cena em que adentra o “buzu” (um clássico!), Morgado se desvencilha da caricatura para transbordar a perda daquele amor recém-encontrado dentro de Iolanda, conduzindo-nos do riso à dor (o crítico Didi-Huberman lembra que há um tangenciamento ambíguo nesses polos/feições).
Enquanto isso, na Casa, a bifurcação iniciada na fazenda ao lado (patrão Belarmino, empregado Venâncio) se reencontra para mudar a vida de Teca e Mariana, mulheres com destinos rebatidos entre o rural e o urbano. A chegada de Rachid é testada pela dispensa de José Inocêncio (que testa o coração do noveleiro!), mas quando as coisas têm que ser, hão de ser: de novo, Rachid costura o corpo dessa família, puxando o fio de Maria Santa e Marianinha. A crise de Mariana é deflagrada pelo mais ausente dos fantasmas, aquela que nunca foi corpo real aos Inocêncio, cujo nome é justamente o diminutivo desta que — diz o próprio Inocêncio — não é da família. Theresa Fonseca, que coleciona boas cenas, brilha ao se apagar, ao perder o chão. A terra se abre (como na abertura de 1993) para Mariana, mas ela tenta levar consigo aqueles que a cercam: João Pedro, José Augusto, Sandra, Buba. Em vão; são sangue do coronel, homem cujo rosto petrifica e envelhece enquanto a intriga se alastra na encenação em profundidade sem profundidade de campo.
Na cena seguinte, Mariana cruza atrás de Inácia para ser desvelada com esse sofrimento erguido, prestes a avançar. Quando o faz, tromba em João Pedro, o amor trocado, para ir contra o pai, Palmeira enfatizando o olhar duramente desnorteado, os ombros tesos, as costas carregadas. “Se você for-se embora dessa casa, vai morrer pra mim” / “Quem sabe assim você me dá algum valor?”. Há capítulos, essa trama de divórcio (que ressoa outros “lugares”, talvez Rohmer, Garrel, Truffaut) me faz buscar uma música que não está na trilha: Drão, de Gilberto Gil, mas mais dolorida nas vozes de Caetano e Milton Nascimento:
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar nalgum lugar, ressuscitar no chão
Nossa semeadura
126.
https://www.youtube.com/watch?v=M79er-Jm-aA
127.
– Na original, o povo ia cercando Tião conforme ele descobria a palavra (e Lívio temia que Tião descobrisse a indústria dos milagres). Mas, agora, é Tião quem encontra o acampamento, o povo, gente que nem ele. A contradição é que Tião tem um teto, a ele inadmissível por não ser seu de papel passado, por ser sustentado pelo trabalho da esposa. Tião é a ponta frágil, arrebentada, desse patriarcado que impõe o desejo do patrimônio; masculinidades legitimadas pela posse.
– Uma cobra passa pelos grãos de cacau espalhados no chão. Ah, não, é o chicote de Eliana, serpente simbólica, bíblica, nas mãos dessa mulher que quer reconquistar o Éden colonizado/coronelizado. O jogo dos fetiches que ela propõe ao coronel é bem diferente das negociações da Eliana de Pillar, que dissimulava um puritanismo ambíguo para seduzir Teodoro. Nesta Renascer, é Eliana quem escolhe a personagem que cabe a ela na relação. Egídio não percebe, mas o lenço-mordaça é troco também de Iolanda, tantos anos calada por ele.
– Na casa de Jacutinga, Mariana é enquadrada entre as flores pintadas nas paredes. Floresce, mas entre a melancolia dessas pinturas gastas, cheias de tempo; ali desde a época em que o avô frequentava a casa. Na conversa com Inocêncio, instala a dúvida acerca da inocência dele: a única ação de João Pedro apoiada pelo pai foi justamente a de ficar com as terras de Mariana. O coronel de Palmeira vai sendo colocado em dúvida; ele que, há 21 anos, interpretou Bentinho, assolado pela incerteza; mais duvidoso dos nossos personagens…
– João se enciúma da proximidade entre o pai e Bento, mas a nota dissonante da cena é Sandra, consumida em sombra sob o contraste da cortina rendada. O ciúme dela tem porquê e salpica sombra no rosto de João Pedro, quando ele entra no quarto, na cena seguinte. O diálogo da separação é árido, tal qual a dureza da luz no campo e contracampo. João, sem querer, responde à pergunta de Sandra — “cê vai levar meu filho pra longe de mim?”, ele questiona, ao se dar conta da situação, nessa novela de linhagens.
— Professora, senhora mandou me chama?
— Mandei, não, Tião. Eu pedi.
Nessas terras, o mau hábito de mandar é dos homens, ensina Lú, no subtexto.
128.
– A casa se esvazia dos Inocêncio para que Cacau, tataraneta do Boi, nasça. O parto, esse trabalho de vida e morte que está no âmago da novela, começa depois da pelada, da cena corriqueira que passa também a ser anacrônica. Du propõe à Teca a fuga, o mundo, mas a casa ancestral está logo ali, no destino, na mudança focal, a alguns passos. Desta vez, Maria Santa surge não no caminho, mas atrás do tronco, textura e enquadramento criando um raccord gráfico para a abertura; a árvore como limiar entre mundos (será que alguém da direção curte Kiyoshi Kurosawa?!).
É entre as paredes impregnadas de histórias e fantasmas que se dará a luta do nascimento; não na casa de Morena, com a família cercando o choro, como na primeira versão. O parto é dilatado, e a premonição de Inácia, feita na cena do ralo, do olho e do poço, concretiza uma reparação devida — a presença de Buba, a responsável por desfazer a encruzilhada no destino de Teca. O presságio é o poço, o pilão de Morena é o pêndulo, e o parto é dilatado para além do físico, pois embaralha as dimensões e os tempos. O fantasma de Maria Santa zela; os fantasmas de Morena soam como mau-agouro.
Mas Teca está cuidada por essa junta de mulheres, todas, de alguma forma, agregadas, mas com acesso singular aos recônditos, à alma daquelas terras. Inocêncio fala com Maria Santa; Inácia fala por ela, reverbera aos vivos a sabedoria dos mortos. Nos diz Renato Ortiz, “a cultura é a consciência coletiva que vincula os indivíduos uns aos outros”. Inácia é o diapasão que afina os saberes entre vivos e mortos, que estende os alcances humanos pela cultura mais primordial — a oralidade, menos narrativa do que poética.
O capítulo acaba; o parto, não. É trabalho longo, árduo, gestar, trazer ao mundo, criar, em sentido amplo. “[…] Trabalho sensorial das mulheres na produção de seres humanos através do parto e da criação de crianças”, nos diz Donna Haraway. A cena é também sensorial. Memória da diferença de classe, Morena é a cicatriz de que esse trabalho pode ser ainda mais difícil e injusto. Teca escolhe a criança, mas Maria Santa abençoa, de uma só vez, a sobrinha e a nora — “Buba sabe o que faz”.
Cacau virá fruto, não pelas mãos do dono das terras, mas pelas mãos da mulher trans, no espaço locomotiva (desvairada) deste país; no país que mais mata mulheres trans no mundo. Nessas sincronicidades irônicas, o capítulo vai ao ar numa semana em que os jornais trazem uma mesma história: homens tentam legislar para penalizar mulheres, nos corpos e nas almas, para que seus filhos — gerados da maneira mais vil e colonizadora — nasçam, custe o que custar. O capitalismo, liberal no consumo, é intervencionista nos corpos que vê como fábrica, investimento em futura mão-de-obra e retroalimentação do consumo. Não à toa, o combustível da máquina está fora da Casa-grande, para que o bebê nasça na pequena casa de empregados, nas mãos e no tempo dessas mulheres. Ao que tudo indica, uma criança intersexo: é a volta da volta do parafuso nesta narrativa feminina que olha para um mundo patriarcal. Subversão dos gêneros, em amplo sentido.
– Mariana, que a essa altura, na original, ainda estava casa, vai tecendo sua teia de intrigas. Nesse meio tempo, tem um ótimo — e raro — encontro com Norberto: essa realocação possibilita a interação entre atores que contracenaram pouco, caso de Fonseca e Nachtergaele. O papo é igualmente afiado, mas de canto de ouvido, sem a frontalidade que tem com Eliana; para Norberto, Mariana ainda é esposa do coronel (e talvez seja o diabo!), e ele preza pelo seu couro, de fábrica.
129.
– Na continuidade do parto, a luz cai perfumando os contornos dos rostos das atrizes, desenhando uma atmosfera transcendental. Inocêncio desponta como rosto físico, concreto, que, inclusive, rejuvenesce diante dessa nova era de nascimentos, como se o pacto se renovasse conforme a linhagem se estende. É um close difícil, porque as emoções e motivações de Inocêncio têm diferenças sutis se comparadas às expressas nos rostos das mulheres — nelas há o sensível, o imediato, a poética; no de Inocêncio, o reconhecimento embasbacado, que embaralha os tempos. Um rosto dado à hermenêutica.
– Mariana pede guarida a João Pedro, mas divide essa responsabilidade com ele (“eu ouvi a voz de minha consciência, como cê disse que era pra eu ouvir”). Transitando entre as casas, ela vai se instalando como uma praga indolente a partir dessa postura passivo-agressiva que burla os mandonismos. É uma dissimulação intrincada, que não permite que sintamos completamente nem admiração, nem piedade, tampouco que a rejeitemos. Mariana é figura de apostas; nos move menos pela identificação e mais pela curiosidade: o que quer? Até onde vai?
– É por isso mesmo que Morena a encara com as mãos na cintura, demarcando o território que é ante ao que era. Da cama à cozinha, Mariana é espaçosa: “como dizem, né? Bolo bom é bolo quente”. Tem razão, ainda que, do bolo, tire uma torta de climão.
130.
– Se a atual versão negociou, até aqui, um paralelismo com a Renascer de 1993, é chegada a encruzilhada que desprega uma trama da outra: o arco de Teca ganha tônus, o de Tião aponta para novos caminhos, que prometem costurá-lo melhor ao destino dos Inocêncio. Diferencia-se também ênfase e andamento daquilo que permanece: o amor de Iolanda e Rachid, a peregrinação de Mariana, os imbróglios amorosos de José Bento…
Depois de uma dupla de capítulos catárticos, este assenta as informações, sobretudo o nó que parte da original para abrir novos caminhos: a consolidação do bebê intersexo, que deve movimentar Buba, Augusto e Teca, personagens que, a essa altura, já perdiam o fôlego em 1993. Assentam-se também as emoções. É um capítulo de boas novas, com Rachid embalando a criança entre lembranças de Marianinha, Tião e Joana num forrobodó próprio, singelo, com os passos postos sobre os panos de chão (e o marido menos incomodado com o trabalho na casa), o pedido de casamento de Augusto e Buba, instante de amor romântico meio piegas, mas que era devido à personagem que por tanto tempo amargou aquele relacionamento com Venâncio.
Os dois, inclusive, estão na melhor cena do capítulo: aquela em que Augusto, num momento de pouco tato, pressiona Teca pelo nome da criança, e Buba, claustrofóbica, pede que ele pare o carro. Da indisposição do casal abre-se a brecha a essa cena de ar fresco em meio à paisagem. Quando Teca decide que o nome será Cacau, a fruta no pé entra num amarelo em contraluz, a dicotomia da pulsação da cor e da sombra num só plano (vida), antítese do cacau saturado, banhado no sangue de Belarmino. As palavras de Inácia no início do capítulo servem como pedagogia e pista à recompensa que se abre como benção da natureza: o arco-íris de Oxumaré, orixá cuja menção vem nessa abertura de um novo um movimento, começo de novas curvas e novos ventos. É bonito perceber a trilha aberta a facão por Benedito, mas que Bruno Luperi investe cada vez mais em percorrer sozinho, seguindo a pista dos passos, mas sem as mãos dadas e sem facão. Talvez com a colheitadeira mostrada por João Pedro para colher cacau maduro pelo caminho.
131.
– Mise en scène. Pôr em cena, em francês. Trabalho capitaneado pela direção, que coreografa tudo o que está interno ao plano, essa unidade de tempo e espaço. A colocação em cena começa com João Pedro aperreado; o braço apoiado buscando estabilidade no batente da porta, que orienta o olhar radical da câmera em contra-plongée. Vem, então, o plano principal, com João numa silhueta de costas, em primeiro plano, e Zinha, num ¾ sob o sol rebatido, um pouco atrás dele, no início do midground. Ao fundo, as colunas do alpendre demarcam a moldura às avessas que ecoa a principal — a porta, em duas lâminas, aberta.
Então, Mariana irrompe na profundidade e, em passos decididos, fura o vácuo entre os irmãos e escanteia Zinha, colocando-se na lâmina oposta, cara a cara com João. Ele, como sempre, escapole; vai para o background, dando as costas para a câmera. Mariana, em primeiro plano, o imita, deixando Zinha, no meio de campo, como corpo/rosto da partilha da indignação, da identificação e do sensível. Mais do que consciência de João, ela está ali para personificar o público.
Juntos (Zinha e nós), somos driblados pela intrusa, impotentes diante da teimosia de Mariana. Zinha, então, se recosta no batente, posicionando-se com maior legibilidade do que os outros dois que por ali passaram, oferecendo essa face/espelho que reflete o humor despertado por Mariana. Quando João Pedro enjoa do jogo de gato-e-rato, escapa pela lateral. As duas mulheres se encaram nos polos do espaço, e mesmo nesse átimo, inverso à metragem que as separa, é possível sentir a faísca desse olhar-chumbo trocado.
Trata-se de uma cena pós-climática, início de uma dissipação da tensão que parte da coreografia espacial. Poderia ser campo e contracampo, mas mise en scène, em seu sentido mais estrito, é uma colocação pensada, montagem de um quebra-cabeça com cortes abafados na dilatação, nos “tempos mortos”, nos deslocamentos e desvencilhamentos. Mise en scène que pinça e organiza cuidadosamente as varetas ao invés de simplesmente lançá-las. Duvido muito que haja algo assim na reprise de Alma Gêmea (até porque era uma outra televisão).
– Se a tensão centrou-se na mise en scène, a desopilação veio pela montagem na sequência que mostra retroativamente a noite de Iolanda. A narração calma (e irônica) de Rachid contrasta a justaposição dos planos, que escala o humor nas consecutivas quebras de expectativa. Ao mesmo tempo, são planos que se mantêm econômicos, justos, como se a voz de Rachid narrasse os lampejos de consciência que restaram do pileque de Iolanda.
– José Inocêncio atende o pedido de Maria Santa e, tardiamente, o de Mariana: a imagem não mais opera um milagre, uma transmutação. Agora oca, deixará a casa. Como bem lembrou o perfil @jupa Inocêncio,no Twitter, era um evento que ocupava um capítulo inteiro na novela original. A ver como será agora.
132.
https://www.youtube.com/watch?v=sCviW7gVgYs
133.
– Mariana e Eliana conversam, e a câmera se desvencilha num travelling lateral pelo corredor até as estabelecer. Mais adiante, a conversa entre Buba, Augusto e Inocêncio, na cozinha, começa pela vista da porta, como se esse olho espiritual-onipresente respeitasse, ao menos no início, as intimidades. Entre as duas cenas, a câmera se põe diante de um espelho no balcão, compondo em moldura elaborada (ou sobreenquadramento, como prefere Jacques Aumont) a conversa de Bento e Lú.
– Já entre Morena e Pitoco, a questão é menos o quadro (ainda que a cena termine pela janela) e mais o abajur, núcleo orbital que interliga mãe e filho. A possível reencarnação ainda não foi colocada, mas tudo indica que aparecerá; talvez tenha sido postergada para abrir novo arco/batimento mais adiante, já que, pelo que parece, Pitoco e Teca precisarão de novo fôlego.
– Antes do sexo, Eliana brinca de tentar matar Damião: Eros e Tânatos, sexo e morte. Pulsões antagônicas e complementares para Freud; na imagem, tangentes, como diz André Bazin. Se Mariana é a tocaia prometida, Eliana é a tocaia ambígua, risco de vida que também desperta pulsações. Inclusive em Ritinha, que acorda e ganha novo pulso com o flagra. Ela não anuncia, guarda a descoberta para a hora certa.
– O livro de Tião revela Joana. Ela anuncia João Pedro, cujos sons da chegada não foram percebidos na concentração de leitura. Mas a literatura, essa fábrica de imagens mentais, leva ao outro, e essa alteridade surge imageticamente como Joana — único outro capaz de abrir Tião a todos os outros.
– A mise en scène de Mariana e Eliana a cavalo parece vir diretamente de 1993. Principalmente o plano inicial, longo, com a correção da câmera a mercê dos animais, o sol perfumando os cabelos, o trote do cavalo de Mariana alinhado ao momento em que ela “ralha” com Eliana, que foge. Cena aparentemente simples, mas que envolve todo um esforço de produção, da ordem do dia à captação.
134.
– “Se agarre nesse emprego. Se firme nele. Vá certinho, todo dia”. É inteligente o uso que Alice Carvalho faz dos diminutivos: é nesse “ti”, nas transições para o sufixo, que ela imprime o sotaque, mas, sobretudo, coloca uma mistura de carinho e autoridade, marcantes nesta Joaninha.
– “Nós sabemos que o caminho de Cacau não vai ser dos mais fáceis dessa porta para fora. Por isso que dessa porta pra dentro vocês devem se unir, se fortalecer, para dar segurança a Cacau pra lidar que estão por vir”. É também papel da dramaturgia imaginar modelos melhores, principalmente quando as imagens atuais viralizam e envenenam com os piores exemplares. Lívio é a projeção anti-Valadão, pastor da palavra que congrega, não da que amedronta e desagrega. Hoje, aliás, a Mariana daqui chegou em casa contando que Cacau (e a condição intersexo) brotou como assunto na aula, interesse da própria turma. A novela imagina um mundo ao mesmo tempo em que apresenta as questões do mundo. Coisa séria.
– Bento volta ao espelho; desta vez, cercado por Ritinha, essa “menina baiana” cuja música-tema tem uma comunhão rara, orgânica com figura-personagem. A impressão é que a canção surge sem ser extradiegética, como se a voz e, principalmente, o ritmo partissem da órbita dos gestos, da própria atuação. Como se Ritinha fosse o instrumento, a corda, a caixa e o próprio som.
– Egídio apresenta sua versão à Mariana e entram as imagens “oficiais” da primeira fase. Sua narração é pontuada pelas cenas, talvez porque não seja assim tão enganosa, ainda que o coronel invista em certos contornos e conexões que o interessem mais nessa história tronco, que liga as raízes à copa de tramas que vemos agora.
– Iolanda e João Pedro têm ótimo timing cômico quando juntos. O susto no sofá é o tipo de alívio importante, especialmente num momento mais melodramático do mocinho.
135.
– Marçal, de Osvaldo Mil, cresce e vira uma pedra na bota de Eliana; empregado-extensor do patrão (“coronel Egídio tem oio em tudo o quanto é canto dessas terra”), Marçal fica na entoca da coluna, bicho semi-velado pelas arcadas do alpendre. Da montaria, Eliana o enfrenta, mas Marçal é esse olho leal que, bem pago, usurpa o pequeno poder desse púlpito arquitetônico, na ausência do coronel. Eliana reclama com Egídio, mas o coronel calculado é também mais calculista do que Teodoro, cujos cornos se acendiam simbolicamente no abajur sobre a cabeça sem que ele ao menos notasse. Teodoro era vilania rústica, enquanto Egídio é dissimulado com algum refinamento.
– A corda do varal — elemento cênico contundente desde 93 — alinhava a câmera até enquadrar Ritinha e Bento, numa prosa inspirada: “medo eu tenho de painho. De Damião, tenho pavor”, diz o espertalhão faiscando contra a vivacidade de Ritinha. Antes, porém, há o varal simbólico, uma beleza só, amarrando Tião, Zinha, João Pedro e Deocleciano. Quando no jogo de campos e contracampos, Tião fala, Zinha dispensa a ele um relance respeitoso, disposto à escuta; nesses olhares singelos, mas generosos, Jones vai dissipando a rivalidade amorosa, da qual Tião permanece alheio.
– Não me lembro dos antigos Bento e Augusto irem para lida por vontade própria, fora dos castigos paternos. Na Renascer original, a vocação herdada era de João, enquanto os outros se transferiam para o campo reposicionando suas aptidões. Além de reinserir algo que faz falta — as canções de trabalho —, a cena na qual o trio pisa o cacau adensa essa reconexão com a cultura familiar/comunitária. Do pisar das castanhas ao separar dos feijões, abrem-se capítulos que, de grão em grão, vão construindo novos ruídos e tensões. Nas cenas antecipadas do capítulo de hoje, Egídio prevê/declara a guerra.
– Eliana, sem querer, ensina Ritinha que a barcaça coberta é esconderijo propício a certo tipo de tocaia. O tom malandro-atrapalhado do Bento de Marcello Melo Jr. vai ao encontro do pavor que ele tem de Damião, mas que está nas mãos de Ritinha. Ela, sim, brinca de apavorar.
136.
– Quando Eliana verbaliza ter brochado, a verdade é que a câmera já nos revelara isso rente à cama, na expressão dela de um tédio debochado. Tão entediada que carrega o diálogo a uma ação costumeiramente evitada pela economia narrativa do classicismo: o ato fisiológico de urinar, humano e trivial a ponto de quase não aparecer (a não ser quando atrelado a uma ação mais importante), é posto aqui como intimidade e banalidade, provocação e desdém. Ação humana inevitável, que ganha dimensão tanto pelo fato de ser pouco vista na telenovela, quanto pela forma que contrasta o diálogo tenso ao alívio fisiológico. Eliana faz um xixi paradoxal antes de encerrar a cena, justamente brincando com as palavras, com a contradição.
– Egídio tenta entocaiar João Pedro pelo instrumento jurídico, pelo contrato, mas José Bento pega a farsa e transmuta a mise en scène de mesa em embate dos corpos. A culminância disso está nos gestos: Egídio esconde as mãos nos bolsos para fingir ofensa e recato, enquanto dissimula o apanhar da arma. João Pedro, por sua vez, levanta-se para o confronto, braços e peito aberto de dono da casa. Qual a vantagem de ter um cacau de qualidade, se eu não tenho exclusividade?, pergunta Egídio com a visão curta. Falta ao coronel dar uma olhada nos streamings, sobretudo no caso da Netflix, que tem comprado o crème de la crème da HBO desde que percebeu que monopólio não sustenta prestígio, que é preciso outros investimentos a longo prazo.
– Uma novela desatenta se contentaria em captar o diálogo de Rachid e Iolanda à mesa, mas Renascer é uma novela de detalhes — de plano detalhe, no caso, na mão de Rachid que trabalha sobre a folha de uva, enrolando cuidadosamente o charuto.
– Zinha vai de uma prosa à outra: conversa com Joana, que não larga a rabeca, tentando tirar dali notas coesas. Se Tião, pela palavra, descobriu o sonho, Joana pelo som — algo ainda mais elementar — descobriu a arte e teima em querer fazê-la. Tião quer ser sonhador; Joana, fazedora de sonhos. Dali, Zinha parte para venda, ter um dedo de prosa com a professora e conosco, atrás do balcão. Isso porque Norberto se coloca como mediador entre as “mesas”; na diegese, é para ele que Zinha olha, mas o olhar dela cruza com o da câmera. Norberto não só quebra a quarta parede, como induz outras personagens a fazê-lo.
– Kika reaparece e dribla o merchan para falar com José Bento, numa cena breve, mas que demanda muito do rosto de Juliane Araújo. Beat a beat, ela passa pelo desdém, pela incredulidade, até chegar ao desconcerto comovido com a sinceridade inédita do ex. Kika fica mexida, e isso faísca conflito.
– Acho sempre comovente essas conversas solos entre Inocêncio e Buba, porque é uma relação que lembra a Inocêncio que ele entende daquele mundo entre cercas (suas), mas muito pouco do mundo que há além. Nesse sentido, é como se esse homem compreendesse que pouco adianta a imortalidade sem a curiosidade, sem querer saber. Buba lembrar ao homem imortal esse movimento humano cada vez mais diluído no gesso das crenças — a necessidade de aprender para que se veja o mundo não pela ilusão, mas pelo que ele é.
137.
– Há uma grande diferença entre a demissão de Tião em 1993 e agora, assim como certo descolamento entre os personagens. O de Osmar Prado, a essa altura, já era um sujeito meio delirante, sequestrado pelas utopias. Nesse contexto, o João de Palmeira o dispensava, pois o considerava subversivo, perigoso para ficar perto dos demais trabalhadores. Esse tipo de pensamento não cabe a qualquer um dos personagens de agora. O Tião de Irandhir sonha, mas luta para manter os pés no chão, enquanto o de Prado já “avoava”. Esse reposicionamento fez cortar ainda mais o coração a cena em que Zinha e Deocleciano o dispensam por conta do infortúnio tramado por Egídio. Indiretamente, o coronel volta a esbarrar no destino de Tião. O microcosmo apertado interfere na sorte do sujeito.
– Egídio e Eliana se pegam no capô do carro, e a câmera volta a ser de palmiana na, circulando os dois como em Dublê de Corpo que Trágica Obsessão. Formam esse casal de vilões bem típicos da telenovela, cúmplices de ocasião, mas preparados a sacanearem um ao outro (acho que o casal formado por Cláudia Abreu e Fábio Assunção, em Celebridade, é o mais representativo dessa dinâmica na teledramaturgia “recente”, mas serve também para Glória Pires e Riccelli, emVale Tudo). Eliana, no entanto, parece mais sabida: com uma espécie de feeling de que é observada, ela posa em momentos-chave do travelling, colocando-se como força magnética a este olhar já hipnotizado. Pela segunda vez, Egídio oferece Paris e ela debocha; Eliana não é Esther, a esposa do coronel, em Terras do sem fim, que nas noites de insônia, com medo das cobras em meio à escuridão, sonhava com a “cidade-luz”. Re(pti)liana, ela põe os óculos que hipnotizam e anestesiam a outra cobra; de certa forma, mostra o pau, antes de matá-la.
– Enquanto Eliana se coloca à vista (inclusive na cama de Ritinha), Mariana se esconde no desfoque, na encenação em profundidade sem profundidade de campo. Ela tem duas intenções ali: uma mais plana (plantada por Eliana), que é distrair Marçal; outra, mais dúbia — por algum motivo, Mariana quer aprender a atirar. Para quê? Por ora, pouco importa, o que chama atenção é que ela atira como quem sabe, e que ela encarna momentaneamente uma vilã, sem evidenciar se aquela é a face ou um mascaramento intencional. Se a amiga aprende com o coronel, Mariana busca como professor o jagunço, mão armada deste universo.
– Interessante, porque quase singular no melodrama, esse tipo de desapego com a que a Lú recebe a notícia de Bento e Ritinha, oferecendo ainda ouvidos e conselhos a moça. Na conversa, Muzillo, que já tinha tido uma boa cena com Xamã, vai da mulher braba à menina exposta, fragilizada (mas não frágil), que, no entanto, encontra aliadas inexistentes na primeira versão. Lá, Ritinha tinha apenas Inácia, que nem sua mãe era. Aqui tem Zinha e, agora, Lú.
– Bem encadeado o presságio de guerra que Bento joga Norberto, cobrando-o inclusive (“não vai ter nem muro pro senhor se equilibrar em cima”) e a cena seguinte, na qual as sombras se espreitam pela mata, até revelar Marçal à frente desse gancho Bacurau.
138.
https://www.youtube.com/watch?v=h_4h94Nqx7E
139.
– Marçal saboreia o cacau de Inocêncio e, perdido no paladar, distrai a vista; quando vê, Mariana já está ali, refletida na lente, pronta para seu intensivo de jagunço. Ela belisca, degusta as sementes e, enquanto isso, goteja as palavras com malemolência, descolando-se de Eliana, que adiante, dirá dura e direta — “o coronel sou eu”. Amigas, mas, pelos detalhes, um pouco menos aliadas.
– É uma bem-vinda adição essa do povo assentado, da lona; “antecipa” o Rei do Gado e coloca Tião como protótipo de Regino, feito mais de sensações do que consciência, de politização. Isso porque a autonomia está com Joana, líder familiar que vai se soltando desse casamento sustentado por ela; Tião quer terra, mas é Joana quem tem os pés no chão. O olhar de Lívio reconhece esse homem sonho/pesadelo quando encara Tião nesse novo espaço. No barraco, Tião planeja os cômodos e, quando fala em abrir uma janela para Joana… olha para a câmera. Não com a frontalidade ou persistência de Norberto, mas olha para essa janela que quer rasgar, mas que está ali, revelando as opressões pelas quais ele passa e, de alguma forma, estende e reverbera. Quer rasgar uma janela para Joana tocar rabeca, mas a rabeca é a janela de Joana. Ela que conversa com Lívio entre janelas paralelas, uma de basculantes abertos, outra completamente fechada. A Tião, o destino reserva a desconfiança injusta de José Inocêncio, que não tem vocação para Bruno Mezenga. Mas Regino está ali, em algum ponto do olhar de Jackson Antunes, que cobra, mas titubeia, suspeita, mas se reconhece.
– O delegado Nórcia (Edmilson Barros) entra em cena no lugar que cabe à justiça nessa terra de coronéis — o de espectadora. Espectador passivo, quase lá da teoria crítica, ele assiste num só sentido, sem se mexer, o duelo interno, colocado em voltas na sala, com Brichta inspiradíssimo no momento em que cheira e finge encarnar o diabo, mesmo ele não estando ali, porque segue com Mariana. O que me leva a crer nisso? A interpretação de Fonseca, outra desde o capítulo passado; basta ver o close de perfil, em que ela beberica a pinga e silva as palavras como se, antes, misturasse na boca o álcool, o cálculo e o cacau guardado desde a cena anterior. Ela caçoa de Norberto; “agora o senhor sabe o que é melhor pra mim?”. Norberto sabe o que é melhor para todos, mas ele é só o representante deixado por Jacutinga; essa, sim, capaz de tecer destinos. Na impossibilidade de suprir esse vácuo, Norberto comenta para memorizar, para guardar com a cuca, dele ou do outro, como se esperasse Jacutinga voltar para pôr ordem ali. Enquanto isso, Mariana aguarda seu momento de guardar — tudo o que o braço puder alcançar, ela avisa. Pode ser da terra ao caroço, do copo ao gatilho.
140.
– Numa trama que começa nas raízes, o cacau maduro, já perto do fim, é escondido no subterrâneo dessas terras adubadas com o ranho de Egídio. A sequência, típica de suspense, é feita dessa câmera que paira e que se coloca no ponto de vista de maior impacto, produzindo outro tipo de catarse, mais cerebral, vinculada mais à forma do que ao drama. O clímax da cena é justamente o quadro que se abre dentro do quadro, que balança a câmera tensa, espiã pendurada no alto. O início deixa uma pista para ser seguida, que pode recompensar o telespectador mais atento: se o delegado Nórcia reparou na incongruência de um local abandonado fechado à corrente e cadeado, faltou a ele botar reparo na cintilação desses objetos, novos, num lugar supostamente trancado há 30 anos. Tomara que esse insight venha ao delegado, mas se precisar de detive, estamos “open to work”.
– Se no a objetificação da imagem feminina é uma questão central desde o cinema clássico, Ritinha, num “jump scare” refletido, especular, parece consciente disso e brinca de pregar pequenas tocaias em José Bento. Da silhueta ao rosto iluminado, ela se levanta e se desdobra em desejo e perigo, pulsão e castração a José Bento, o Inocêncio com excesso de Id e pouco superego.
– Inocêncio perde a primeira batalha — não ouve ou ouve mal o que o diabinho lhe sopra —, mas ganha a seguinte, travada em território supostamente neutro — a venda de Norberto. Se nos galpões de Egídio a própria arquitetura era tensa, aqui o que tensiona o espaço são os corpos e os rostos, que se apertam ao redor da mesa de sinuca, objeto que volta a ser palco/ringue dos coronéis. Inocente sustenta o corpo pelos braços, enquanto Egídio, atravessador que pega carona na produção alheia, apoia a banda da bunda. Quando Inocêncio dá xeque — oferecendo comprar as dívidas dos trabalhadores na venda de Egídio —, uma panorâmica em levíssimo slow passa por um trio de figurantes, cujos olhares faíscam nova esperança. A suspensão dá espaço à ironia de Egídio (“esse povo aqui não vai comer seu reggae”). Então, o corte traz o sujeito no centro do trio, aquele com a mudança de olhar mais marcada; o primeiro, agora, a levantar a mão, que sobe todas as outras no corte para o plano aberto, que contrasta a distração de Egídio, seguro de si. Distração que vira descrença e descontrole no close. No canto do plano de José Inocêncio, Norberto que não deve nada a ninguém, também ergue a mão, zombando e saboreando a derrota do Pica-Pau.
– Os coronéis voltam a se encontrar no escritório de Egídio; a moldura da janela formando uma cruz entre eles. Damião se posiciona como jagunço; Marçal, quase como um espantalho. Enquanto isso, coronel Eliana lida com o que Egídio não entende — a fruta. Dá ordens, sem contar que, enquanto ainda descasca, Mariana, desde ontem, chupa os caroços. Se a tensão entre os homens demanda esses escapes em diferentes catarses, esse gancho tensiona duas mulheres com compreensões cada vez mais distantes do poder que têm e que querem ter. Não é preciso escape; a ordem aqui é outra, baseada nas pressões e nos rearranjos. Menos questão episódica, mais coisa de arco.
141.*
– Se Norberto olha para a câmera, não é a primeira, nem a segunda vez que Ritinha se recosta em alguma superfície para, ao invés de olhar seu interlocutor em cena, encarar o extracampo. Ela dá ouvidos aos conselhos da mãe, ali, mas desvia o olhar para esse espaço que, naquele momento, só está ao alcance dela, como se tentasse esconder algo de seu, algo íntimo — talvez o gosto desse troco perigoso que dá em Damião. O jagunço é boa prova de que o personagem é outro e os tempos, também: sob Jackson Antunes, Damião era uma espécie de matuto natural, sujeito que replicava, sem muito controle, uma conjunção entre instinto e habitus. O de Xamã é um jagunço mais calculado e calculista, personificação consciente e orgulhosa de um tipo de virulência que já foi romantizada pela ficção, mas que soa, agora, como deveria ser desde sempre — como algo incabível e absurdo. Se a traição já era condenável em 1993, agora ela é, de fato, condenada, aprofundando a complexidade desse tipo com lealdade e consciência que respeitam classes e priorizam um gênero. Quando ele sai, Ritinha, olhando o extracampo que contém Damião, diz que homem que trai tá sempre com desconfiança. A postura ereta, decidida, contrasta com a de Inácia, que se curva, como se farejasse problema…
– A discussão com João Pedro carrega Inocêncio para a venda, e descompensação do homem afeta o espaço. A composição desse tipo de plano, chamado plano holandês, é comum em momentos de desequilíbrio psicológico, emocional ou situacional, mas pode trazer, além da tensão, uma impressão de desleixo — nem todo mundo compõe como Carol Reed, em O Terceiro Homem. Não é o caso aqui: a desestabilização traz o incômodo visual planejado, mas encontra detalhes para manter um equilíbrio, se não das linhas, dos pesos e pontos de atenção. Assim, enquanto Norberto é recortado pela porta, a face de Inocêncio é duplamente sublinhada pelo eixo que se estende pelo bico da garrafa e pelo encontro das paredes atrás. Além disso, a linha superior do enquadramento passa milimetricamente pela quina da porta, retirando o espaço vazio acima do batente. Por fim, com Norberto apoiado sobre o balcão, a manga da camisa estampada cria um vetor imaginário, que delimita o olhar a essa porção central, fazendo do quadro centrípeto e não centrífugo. Quando Norberto cede lugar à Mariana, ela e Inocêncio invertem as posições e Mariana descompensa ainda mais o quadro. O coronel ocupa posição mais propícia, mas Mariana cresce e realinha o plano. No perfil que coloca os dois em conjunto, a haste de um coqueiro estoura e liga os olhares. With lasers.
– Inácia se impõe e cobra: descasca essa laranja, José Bento! Rita chega mais tarde, depois de deixar a casa, o anel e Damião. Recosta-se no batente, mas escolhe a área externa, não o lugar de sua labuta, para chorar, enquanto as samambaias escorrem ao fundo; isso até a correção que delimita, primeiro, o colo, depois a mão de Inácia, afagando os cabelos da filha. O close de Ritinha — permitindo-se menina com o diminutivo — termina nessa mão que, entre os carinhos, cerca e protege, nesse colo de pele e de toque que é bem mais do que a Rita de Fillardis teve.
142.
– As ameaças de Damião vêm permeadas pelo sorriso sádico, zombaria carregada de perigo. Ritinha dribla as palavras, mas acaba pressionada entre o cobogó, elemento arquitetônico dos mais interessantes daquela casa. Adiante, na sombra de um galpão, Damião de 1993 busca o de agora para tirar satisfação; o chapéu amassado sublinha os olhos faiscantes sob uma linha de sol. Do outro, vê-se, a princípio, o braço forte e o boné de Nossa Senhora. Quando o rosto entra em quadro, o jagunço calculista responde ao outro, mais malemolente: “Fui [sincero] da maneira que consegui ser”. Sai, antes de ouvir a resposta de Deocleciano, e o conjunto de impropérios que Mariana soltou aqui, ao meu lado, para a cara-de-pau na tela.
– A Mariana da novela, enquanto isso, para o cavalo para ter uma ideia sombria na camada denotativa da cena (Inocêncio dar a vida pela casa é justo, mais que justo, justíssimo, diz ela), mas simbolica e decorativamente iluminada: isso porque, ao longo do bordão de Belarmino, o fundo vai perdendo profundidade, granulando as árvores e o naco de céu que vaza entre as folhas. É nesse pedacinho de céu que o rosto de Theresa Fonseca estaciona, ilumindo-a, criando uma aureola disforme à mulher que encarou (e, talvez, engoliu) o diabo. Essa dicotomia continua diante da Santa, que na casa do Boi, projeta uma sombra expressionista sobre a parede. Teca flagra a confissão, o pior de Mariana, mas Cacau está ali para adormecer no colo dela e despertar o que há de melhor.
– Inocêncio diz a João Pedro que o casamento com Mariana foi uma forma de manter a casa, troféu dos duelos. A confissão é sincera, calculada ou dissimulada? Confessa agora para não perder patrimônio, para espezinhar o filho ou para mantê-lo longe de Mariana? Estamos no ponto onde a inocência de Inocêncio é colocada em xeque, em que começamos a perceber que sobrevivência e prosperidade não são só coisa de Deus e Diabo. É preciso não dar ponto sem nó. Coisa que o homem costurado sabe fazer.
– Bonita a cena que começa com Zinha dizendo às crianças que “Tião é massa” e termina com Joana perdendo as palavras ao agradecer o apoio dela e de Lu. “Sem vocês eu não conseguia…”, diz como se engolisse o resto da frase, mas sem precisar falar mais — essas palavras acesas bastam.
143.
144. “Breve, muito breve, brevíssimo”
– Tião do facão abre um céu de estrelas para Joana, enquanto Lu, Zinha e João afiam trilhas para cosmos [e][ in]ternos (eternos. porque internos? Porque ternos?). Por fim, Norberto é escancarado no fio cego da saudade; gênio da lâmpada que realiza seu desejo no faz de conta.
Noite de Sherazade esta entre educação e imaginação, que, no fundo, são uma coisa só. Coisa de sobrevivência, de prolongamento da vida em noites, e nos dias que as retroalimentam.
145. “Foi Deus”
A esfereográfica estende Tião, que aprende biologia, química, físic quer saber dos mistérios, da metafísica. Educação pela e para a complexidade, para tentar compreender as teias do mundo, como nos ensina Edgar Morin. A professora Lú – não mais no diminutivo, como antigamente — é quem incita a democratização do conhecimento e coloca Inocêncio de bode. Buba é quem o ouve e o aconselha; é a mentora do coronel. João não é José, nem coronelzinho; tem o dom fraterno, tudo compartilha com Linha, e, agora, com quem vive sob a lona. A vocação à alteridade o afasta da herança da autoridade. A curiosidade plantada por Tião ecoa em colheita irônica: o bode preto não sobrevoa as plantações, mas Deus passa pelo barro, pregando peças — ressuscita Dona Patroa e reverbera a resposta de Amelinha sobre a solidão de Norberto. “Foi Deus quem fez…”. Páthos: eis o mistério da fé, da vida e do drama.
146. “Noite escura até a aurora”
Noite escura da alma de Norberto, que dá nome à dor, enquanto a fumaça do cigarro carrega a aura de Jacutinga à Iolanda. De dona de casa à dona da casa, a esposa crente era uma máscara acomodada, mas a mulher de agora quer vestir fantasias inteiras, noite adentro. Quando o sol bate na visita ao Jequitibá, anuncia a chegada da Aurora. Malu Mader ilumina como presença cênica e como símbolo memorial de um star system dourado da Vênus Platinada. Sol que dissipa um capítulo de névoas e fumaças.
148. “Megafones”
Lúdica a forma de Rachid buscar Jacutinga; amplificando a carta de Norberto, fofocando a vida do fofoqueiro. Comunicação e transporte num único meio, tal qual a novela, essa máquina de tempos e espaços. Lembrou-me que, minutos antes de minha entrevista com Bruno Luperi, o carro da quitanda passou vagarosamente, ameaçando intrometer promoções na conversa.
149. “Drão”
– Caiu um grão aqui. Falo melhor depois que passar.
– Lembrou-me que quando eu trabalhava no Depto. Ficcional, no Ipiranga, passava o carro do churros, berrando um exótico sabor frango com catupiry. Lembrou-me o curta de Cavi Borges (que dividiu sessão com meu “Palhaços”) em que o autofalante de uma kombi percorre e conversa com o Vidigal. Lembrou-me que, quando criança, não sosseguei até ganhar uma gaita de sorveteiro, som sem voz que anunciava os picolés pelas ruas da infância em Itápolis.
150.
151.
https://www.youtube.com/watch?v=-3eXwc2A5fE
152.
– “Ela plantou esse amor em seu peito”. Renascer começa pela plantação da lâmina física, que rasga a terra e, nessa reta final, recupera a lâmina invisível, inevitável aos que vivem — a dor da perda. Para Inocêncio, que almejava uma vida eterna e exuberante, essa dor veio como obstáculo, maldição a ser carregada pelo resto dos dias. Para João, vem como uma nova muda, para que ele não replique por completo o pai. O reencontro com a mãe é rosto a rosto, peles presentes e palpáveis nesse momento imaterial. O contra-plongée não só eleva esses dois sujeitos, como resolve uma questão técnica (o bebê que não é bebê) e sublinha os olhares conjuntos, ternos e doloridos, que mãe e filho lançam à Maria Santinha.
– Na cena seguinte — que começa Ozu (câmera baixa, batente da porta recortando a situação) e segue em Mizoguchi (a composição pictórica com luzes e sombras perfumando o espaço) —, Inácia explicita: Inocêncio é de Ogum, João Pedro, de Oxóssi. Guerra e caça, expansão e sobrevivência, duas faces que negociam aventureiros e povoadores. Se a oralidade conta causo, ação e conflito, no triunvirato formado por Inocêncio, Rachid e Norberto, o trio consagrado por Inácia — Padre Santo, Pastor Lívio e ela própria — volta ao oceano, aos conhecimentos mais profundos, aos arquétipos. De um lado, narrativa, do outro, filosofia. Inácia, como não poderia deixar de ser, toca a ferida incontornável — a escravização. “Imagine o que não se perdeu?”. A novela dá voz e luz aos Brasis sobreviventes para lembrar e se contrapôr a tudo o que foi e é morto por um Brasil.
– Zinha cresce contra Mariana, numa dessas cenas que ecoam o público e lavam a alma. A faísca entre elas pode gerar pólvora. A lealdade de Zinha não é subalterna, o que a torna diferente de todas as outras nesse universo.
– João despeja as cinzas da filha no rio, numa cena de close e detalhe. Quando o plano se abre, ao final, uma revelação: João está numa encruzilhada feita não de terras, mas das quedas das águas.
– Eliana é outra que cresce de forma inédita, principalmente nesse desenlace que começa com Egídio. Curioso que, desde sua volta à Bahia, Eliana usurpa o código da vilã-clichê (figurino escuro e sensual) para contrastar uma figura cheia de nuances e contradições, cujas maldades são sempre reativas e convivem com a consciência. Charlotte estabelece a corporeidade de uma coronel que cavalga flanando, sem trote, altiva na postura que culmina no queixo, ponto de fuga de toda a empáfia. A encenação com Brichtta é interessante no contraste pela semelhança: esguio, Egídio tem figurinos cada vez mais apertados, e Brichtta, ao contrário de Charlotte, vai desmilinguindo, fazendo esse homem-lombriga, que, faminto, se corrói. Erisícton, nos diz a mitologia.
153.
– Eliana e Damião duelam, mas ela não respeita a mise en scène do western; se desvencilha, cerca, sopra os ouvidos e encanta o jagunço. Após o atrito das abas em riste, Eliana tira o chapéu; sabe que o boné com a cruz se dobrou à peça de figurino que compõe um símbolo maior, que faz dela uma coronel.
– O plongée absoluto sobre os pés de cacau em linha de produção desafia o olhar: demora a percepção de um ponto movente, que se evidencia conforme vai sentido ao centro enquanto o drone se aproxima. O plano seguinte é um close de José Inocêncio, pré-anunciado pela trilha instrumental que lhe cabe (espécie de Philip Glass mais árido, composição das mais bonitas da trilha). O sol rente à silhueta da cabeça traz de volta um lampejo do jovem, de Humberto Carrão. Alvorada ou poente? Aurora. É quem chega desfocada sobre o ombro, quase miragem causada pelo sol que esquenta a cabeça e a terra. Os ensinamentos de Inocêncio se abrem para além da família, espanando poeira entre os pés dele e de Aurora, que caminham nas esteiras desse deserto verde.
– Zinha e Deoclecino de um lado, Mariana e Marçal, do outro. Enquanto pai e filha confabulam — e Antunes transforma seu Deocleciano num Damião curtido pelos anos —, Mariana envenena o empregado, marcado como gado numa fazenda de cacau. Ela cerca, mas não como Eliana, uma vez que dissimula essa perseguição, finge que acompanha Marçal; ele, por sua vez, para, atarracado ou pelas palavras, ou pela dor no peito, ou pelas duas coisas. Para como um cabo de ferramenta, como um cano de espingarda. Deocleciano, do outro lado, avisa: “quem quer matar não fala”.
– Genial o “caco gestual” (existe isso? Não sei; inventei) de Brichtta de bulir com o biquini da sereia, improvisado por Iolanda.
154.*
– Egídio reflete na lente dos óculos de Marçal, e o rosto se distorce. Loucura e cólera ganham formas deformadas, que transmutam o pica-pau num verme ao qual nem Brás Cubas ousaria deixar dedicatória. O plano internaliza e ressignifica outro: o da morte de Teodoro, posto sob uma grande angular justa à face, que estendia o nariz adunco e marcante de Herson Capri ao passo que aprofundava a cava dos olhos. As duas composições retomam um maneirismo anterior, localizado nos primórdios deste estilo — o Auto-retratato diante do espelho convexo, pintura de Francesco Mazzola que carrega o jogo de deformações e remete às lentes que, agora, capturam/refletem estes vilões televisivos.
– Punctum: para Barthes, aquilo que punge, que, como uma flecha, atravessa a fotografia para que se supere a compreensão média do studium. Na conversa romântica entre José Inocêncio e Aurora, o punctum é a fogueira. Não a que aparece na lateral direita do plano mais aberto, mas a que farfalha como um ponto no campo e contracampo, dentro dos olhos de cada um. Punctum cintilante; amor, talvez não à primeira, mas entre vistas que se sustentam em olhares. No meio disso, o fogo sobrepõe a base do plano de Marcos Palmeira, que acende e ascende. O casal se ama diante das janelas daquela Casa-grande transformada em casa-modelo, arquitetura desabitada transformada em brinquedo/espetáculo. Mais tarde, Inocêncio lembra sua renascença e as mortes decorrentes, e se põe a registrar seus ensinamentos; desta vez, não pela oralidade, mas por uma atividade mais lúdica, regressiva. As árvores traçam um ecossistema de grafite no papel. Inocêncio começa a pensar em maneiras de não se perder depois da morte.
– Mariana serpenteia e vai apertando a mente de Marçal; ela dispensa a ele uma preocupação penalizada, quase maternal, driblando a desconfiança do jagunço. Mas há algo mais ali, uma outra tensão, que talvez nunca se acenda, mas que está intrínseca, subterrânea na cena. Mais tarde, ele cruza com Damião e o “detalhe” mais importante da cena não é o diálogo, nem as armas (ainda que Marçal saque a sua para tentar reequilibrar o detalhe em questão). Falo da diferença de alturas entre os dois; Damião a cavalo, Marçal, numa motoca que, por si só, sucumbe diante das patas e do peitoral do bicho. O vento brinca com o excesso de pano da camiseta enfiada por dentro das calças de Marçal, que tira o capacete. Em Damião, não há vento ou qualquer tremular. Ele, tampouco, tira o “capacete” estampando com Nossa Senhora. Marçal será o jagunço sem vocação de Damião (seja de Benedito, Luperi ou Jorge Amado), cuja tomada de consciência será a la Macabéa — tarde demais.
155.
– Augusto cumpre seu dever profissional, mas os irmãos cutucam até rasgar uma ética própria, familista, cordial: importa a ética com o mundo, mas os Inocêncio são um mundo, aquele que pari e regula as relações com todos os outros. Essa lealdade — mais consanguínea do que por afinidades — é o que torna esses sujeitos complexos, fazendo com que Augusto oscile entre o pacto público e os interesses particulares, que João titubeie, mesmo no âmbito privado, entre ver Egídio como pai de Sandra e como assassino de José Venâncio. Zinha é que ouve e fala com os dois, compondo com Augusto uma das melhores cenas do capítulo: a conversa no galpão se desdobra até chegar a planos expressionistas, no sentido mais basilar, de destacar a expressão. Ali, enquanto o rosto de Renan Monteiro vira um chiaroscuro, o de Zinha parece irradiar justamente sobre a parcela iluminada do outro — afinal, o papel dela é trazer luz, revelar o médico ao arrancar o primogênito da barriga da baleia. Jones é uma atriz televisiva inata: a presença dela pede o close, que quando a encontra, revela um paradoxo à câmera, que quer estar perto do rosto, mas descobre que não pode contê-lo, pois ele irradia e transborda.
– Dois olhares em transformação: enquanto Egídio está numa sinuca de bico, Eliana ouve o trotar de um cavalo e se vira para ver quem chega. O contracampo/subjetiva dela, revela o cavalo, a perna do cavaleiro e um pacote entre a perna e o bicho, tudo isso embalado num slow sutil. Quando voltamos à Eliana, o olhar dela se aperta, como se encarasse o embrulho. Então, ela corrige o rosto e, ao ver (no extracampo) a identidade do cavaleiro (Damião), os olhos se desapertam, ou melhor, se arregalam pasmos, num combo de surpresa, temor, admiração e preocupação. Tudo isso num embrulho só. O segundo olhar é de José Inocêncio, que, a bordo da camionete de Deocleciano, recebe a notícia do nascimento da neta. O sorriso largo exige uma correção de câmera, que circula e se espreme entre as barras do carro. Com a descoberta da morte, o sorriso se desfaz enquanto a câmera termina o movimento, estacionando para comprimir, na moldura, o rosto atônito, para ver as pálpebras cederem ao peso e enxergar o fiapo lacrimoso que se forma na linha dos cílios inferiores. O balanço do carro muda a posição e dá privacidade a esse patriarca, que sente o peso da perda e o peso de ter renegado a neta. Peso por ter impedido um nascimento anterior e primordial: aquele que acontece no coração.
156.
https://www.youtube.com/watch?v=YY_tAGOUNVA
157.
– Tião Galinha tem seu momento Roberto Benigni ao transformar a detenção num “passeio entre amigos”. É verdade que, aqui, as implicações éticas não são controversas como em A Vida é Bela, filme em que um pai dissimulava a experiência do holocausto inventando um jogo ao filho, com a narração fílmica posta nesse mesmo nível (um filme mais encantando com a “brincadeira” do que horrorizado com o genocídio). Aqui, a cena também é de proteção às crianças, mas em outro nível, uma vez que elas não estão diretamente implicadas na situação. Tião age para preservá-las do que poderia se tornar uma memória dura dele, da infância (para além das que já têm). Adiante, Tião transita entre as linhas das grades e das persianas, que justapostas formam o xadrez em que fora colocado. Ele se curva para apoiar a cabeça sobre a de Joana, mistura de beijo e de cheiro; ela, tenta manter-se firme, ereta, ainda que consumida pela dúvida — Galinha ganhou o diabo como pagamento pela tocaia? Ambos tentam se equilibrar nessa sala torta, que só reestabelece uma horizontalidade quando Joana diz que acredita em Tião. É a deixa para a câmera corrigir o quadro, na melhor ambientação dessa delegacia.
– Digo isso porque a sala do delegado, onde Kika e Bento o confrontam, me parece um desses casos de cenografia herdada, cenário insípido e burocrático, provavelmente reaproveitado de outra novela (não seria improvável ver Giovanna Antonelli e sua delegada Helô atuando por ali). Apesar desse espaço aparentemente incondizente com o universo narrativo, há ali outro plano holandês dos mais interessantes: a descompensação do quadro traz o esperado incômodo, mas Kika serve de estrutura narrativa e estilística da imagem, enquanto Bento (mais alto do que ela) preenche e equilibra o “vácuo” maior na composição (à direita do quadro). Do outro lado, o computador, a logo da polícia e as costas da poltrona criam um contrapeso visual. Nórcia, pego no mau exercício da profissão, tenta se equilibrar, mas não tem o mesmo tipo de apoio (ele tem que apelar à mesa) nessa delegacia transformada num barco em mar bravo. O momento dos óculos coroa a volta de Kika / Juliane Araújo à novela; mérito da atriz, que soube espremer com graça a personagem, e de Luperi, que encontrou lacunas importantes para reconduzi-la.
– Se há uma diferença entre 1993 e 2024 é que, na primeira, o uso de planos longos, com olhares em robustos deslocamentos, era um recurso mais recorrente. Na distinção do crítico André Bazin, era uma novela com mais cenas de “diretores que acreditam na realidade” (ainda que, muitas vezes, essa realidade se dobrasse ao maneirismo; consequentemente, à imagem), enquanto agora percebe-se mais o cálculo entre mise en scène e decupagem; novela de “diretores que creem na imagem” (e acho que o fato de ser uma novela de estúdio influencia a isso). Nesse sentido, a casa de Jacutinga era um dos espaços que mais abriam possibilidades a essas cenas de mise en scène dilatada, de olhares em movimento ininterrupto (basta ver o capítulo 48 da novela de 1993), o que não acontece com frequência na atual, que prioriza o diálogo entre arquitetura (e decoração) com os enquadramentos.
Dito isso, o capítulo de hoje trouxe essa vida (e essa casa) passada, com Iolanda socorrendo um cliente bêbado e, nesse trânsito, movimentando a câmera nas interações com Sandra e Norberto (as janelas como parte inicial desse novo jogral em que a música não acompanha a labuta, mas o lazer). Morgado faz uma síntese paradoxal e curiosa de dois tipos comuns em obras regionalistas (estão em Jorge Amado, em Dias Gomes, em Aguinaldo Silva), mas que (pelo que me lembre) não eram costumeiros nas novelas de Benedito: a carola e a cafetina. Na cena de ontem, era como se ela incorporasse a um só tempo Maria Altiva (de Eva Wilma) e Zenilda (de Renata Sorrah). Nos contracampos colados no início e no fim desse longo passeio guiado pela dona do brega e pelo dono da venda, Zinha e Joana forrozeiam com uma química que antecede o romance — no post que fiz, dias atrás, de Don & Peggy (de Mad Men) e Carmy & Sydney (de The Bear), poderia ter Zinha & Joaninha, esse casal possível, mas que brilha, antes disso, como dupla.
158.
– Damião aperta Bento, mas é Inácia quem pega o jagunço pelo braço; ação que detém o rompante e retoma a promessa, nessa novela de pactos. Há, inclusive, uma raiz em cena: a bacia de mandiocas que Inácia carrega com a outra mão. Depois, quando Damião e Eliana quase são pegos por Marçal, uma composição simbólica usa o vidro da janela para conjugar o capanga dos Coutinho e o capanga dos Inocêncio como réplicas imperfeitas. A materialidade do chapéu ecoa o reflexo do boné de Nossa Senhora. Mimese que muda de figurino, mas veste um mesmo papel nessa comunidade.
– Inocêncio e Mariana conversam afinados na pinga e na cor das roupas. Ela, desde ontem, anda afiadíssima, especialmente em algumas linhas de diálogo: “não precisa esquecer, esquecer [Maria Santa]… mas é bom desapegar um pouco”. Consciente de seu lugar, Mariana faz questão de estabelecer um elo entre Maria Santa e Aurora, costurando a conversa entre o amor que projeta sombra em Inocêncio e essa iluminação — quase lampejo — que recai agora sobre o crepúsculo do coronel.
– Tião recita, discursa, co-move; não à toa, a câmera o vê pelo travelling circular, que encontra o rosto entre os vácuos deixados pelas cabeças dos que estendem Tião — os trabalhadores em roda, exercitando o “se ouvir” (como diz Tião), testemunhando e participando dessa consciência crescente sobre as cercas e sobre as leis. Sebastião transita do coletivo ao individual quando se dirige à Dona Maria e Seu João, nomes dos mais populares em muitos Brasis na boca desse que vai se reconhecendo como orador do povo. Irandhir leva ao centro deste assentamento inédito, este e o outro Tião: quando balança o corpo acompanhando a cadência das palavras, traz o de Osmar Prado. Quando abre o sorriso-ponto final à palavra “trabaia”, também.
159.
– “Você foi mãe, sim. […] Mas a sua filha viveu a vida todinha dela dentro de você”. Íntima e emocionante, a conversa entre Sandra e Morena é decupada como tal: com os perfis em conjunto, num quadro interessado no contra[en]cenar (as ações e reações postas num só espaço e tempo), e em campos e contracampos com a câmera rente aos ombros, ressaltando o encontro entre essas mães e suas dores.
– A mesma estratégia aparece na conversa entre Buba e Meire, mas ali a compreensão não é entre maternidades, mas entre mãe e filha. Gabriela Medeiros traz uma nuance interessante ao rosto a partir da linha em que pergunta à mãe se voltarão “cada uma ao seu canto”. Dali em diante, ela olha Meire não como a mulher resoluta que costuma transparecer, mas como uma menina que teme perder (de novo) a mãe. Malu Galli devolve com essa mãe que se entrega tateando, construindo entendimentos permeados por dúvidas, re-conhecendo a própria filha. Depois, num momento mais arejado com as amigas de Buba, é interessante a opção por enquadrar Buba e Meire sob a onipresença de Inocêncio (no quadro), que fica ali de butuca, como se abençoasse aquela reconciliação familiar reunida à família estendida.
– Sandra se aprofunda, e Giullia Buscacio a conduz da meiguice à melancolia, algo que o texto anterior não permitia à Luciana Braga. O diálogo com João Pedro traz tudo isso: o carinho, a ternura desse amor (adormecido? morto?) e as colocações decididas contrapondo o jeito quase infantilizado como João lida com a dor quando está com Sandra. A amplitude da voz de Mônica Salmasso em Canto Sedutor — tristemente esperançoso nessa novela de sereias — embala a queda da aliança, objeto que carrega pesos que o ancoram, que nem a corrente das águas é capaz de levar. A partida dos pés de Sandra, no entanto, abre movimento para que um lampejo solar refrate sobre o anel, que fica ali como dúvida — relíquia morta ou lâmpada mágica? Talvez, semente subaquática.
– Egídio cerca Eliana pelo fundo (do plano), pela moldura (do espelho), até que invade o quadro dela. Em um tom que vai aprofundando os sussurros, faz ameaças não tão veladas e as pontua com um beijo banal, desses de casais que se despedem nos desencontros da rotina. Egídio sai, mas o beijo de despedida deixa um gosto ambíguo à Eliana, que, talvez, se dê conta de que está num lugar em que não há desencontro.
160.
– Norberto enxota quase todos os clientes, mas nós ficamos para acompanhar a prosa matreira entre ele e Mariana. A constituição de uma masculinidade singular — regida não pelo patrimônio, mas por um poder atrelado à observação e informação —, permite a Norberto essas trocas cheias de carinho e sagacidade com personagens como Mariana, Eliana e Sandra; aliás, ele transita habilmente entre as rivalidades dessas jovens mulheres, se esquivando de desconfianças e rompimentos. Para além da ação do abraço que acende o cigarro, o jogo cênico entre Nachtergaele e Fonseca tem uma geometria de olhares provocativa: quando Mariana incita que Norberto vá ao forró saber de Sandra, o dono da venda traga o cigarro enquanto olha para a câmera com uma malícia discreta; Mariana, por sua vez, não consegue conter a curiosidade e, num lapso, titubeia no charme para convencê-lo e olha, de canto de olho (no canto do quadro), para o extracampo. Nessa mise en scène intrincada dos olhares, Norberto nos mantém no centro do quadro ao reforçar uma crença na cumplicidade que tem conosco. Já Mariana nos faz querer ir à casa, que se faz presente na camada sonora e na geografia dessa vila, implícita nesse olhar ato-falho dela. No dia seguinte, Mariana ouve na entoca (ela exerce bem esse dom melodramático) e não hesita em usar Norberto para embarcar no carro de João Pedro. O mocinho não se contrapõe à companhia, e embora essa inação sirva à narrativa, é o tipo de passividade que depõe contra o personagem, sobretudo porque ele permite que tudo aconteça diante da casa e dos olhos de Sandra.
– É curioso rever cenas de Herson Capri como Teodoro e ver Vladimir Brichta como Egídio, porque Capri fazia aquele vilão truculento, mas bonachão, quase indolente; as vilanias e violências lhe eram inatas, instintivas, enquanto Egídio se constrói como uma ameaça mais cerebral, capaz de encenar uma brincadeira com Pedro e Manú para aterrorizar Joana. Alice Carvalho usa a marcação de cena para construir a investida contra Egídio: de costas para a câmera, ela caminha com as mãos para trás, ouvindo as ameaças do coronel. Quando o discurso descamba em ofensas a Tião, o rosto dela, então semi-velado pelos cabelos, se levanta como se procurasse forças, enquanto os passos firmes a levam até a mesa. O plano de Egídio (que sussurra uma verdade dolorosa) impõe o contracampo de Joana, que apanha uma faca e, numa virada (física e dramática), talha, de raspão, o pescoço do coronel. Se ao longo da cena o rosto de Joana permanecia em suspenso, a ação principal vem revelar essa face furiosa, que desmantela Egídio do outro lado. No plano que encerra a cena, Carvalho cresce o rosto num ranger de dentes. Capaz de fazer até Damião picar a mula dali.
– Em Ilhéus, Mariana fantasia a lua de mel que poderia ter sido, caso tivesse escolhido João Pedro. Desperta sentimentos ambíguos, tanto nele quanto em nós: se por um lado, é possível sentir empatia pela menina que sonha com um grande amor, por outro, as pequenas intrusões e insistências criadas por ela, constrangem. Na cena em que conversam num banco, Mariana confessa o arrependimento de ter se casado com José Inocêncio. Mas não é essa a grande revelação, e, sim, uma que está implícita no rosto, mais precisamente no contracampo-reação de Mariana quando ouve João Pedro lamentar a perda Sandra. Ali, Mariana parece compreender que é tarde para ela; ou, ao menos, para essas estratégias que apelam ao coração.
161.
Sextou na venda de Norberto. Mas o dono, que, quando dá a hora, não hesita em enxotar, é praticamente expulso pelas clientes — Zinha, Joana, Kika, Sandra e Ritinha, que dá um basta na cantoria da sofrência. Quando Zinha propõe um jogo, Eliana, player n° 1, aparece, com música assobiada a la Enio Morricone. Ela, que escapara de um DR muito sui generis (“eu, meu marido e o jagunço dele”), desafia Ritinha na sinuca, que já se torna um jogo-ritual para abrandar ou acirrar desavenças. Antes, Eliana se defende dos olhares tortos; curiosamente, é Kika, ex-melhor amiga, quem costura a conversa, apontando o lugar cordial (no sentido de Holanda) que Eliana ocupa: como os coronéis, ela busca justiça por linhas tortas e, sobretudo, privadas. Sobre o caso com Damião, assume e divide (com ele) a culpa, mas se esquiva de prosseguir, talvez consciente das limitações de sua galgada feminista, que busca o empoderamento individual sem combater o patriarcado. Mais do que isso: a relação amorosa se entrelaça à luta pelos direitos, e ela subjuga o próprio desejo, reduzindo o romance a mero troco, revide aos Inocêncio. Talvez esse seja seu arco final: a expansão desse feminismo liberal, bancário, aderido ao sistema vigente, a outros feminismos como aquele que, de certa forma, se conjuga ali, naquela venda sequestrada por mulheres.
Enquanto as bolas seguem para as caçapas, Zinha dá um necessário chacoalho em Sandra, que precisa sair ligeiro desse momento Giuliana-Terra Nostra (“Dove stai, João Pedro?). “Eu falo as coisa errada, mas falo as coisa certa”, diz, entre tragadas (eu, que não fumo, estou adorando essa novela com personagens palpáveis, entregues aos pequenos vícios). Ah, sim, João Pedro continua em Ilhéus, tentando se desvencilhar de uma Mariana regredida à adolescência (com aptidão para Marissa Cooper). Nesse pequeno arco, Fonseca anti-compõe Esteves: lá, Mariana azucrinava João num jogo calculado, enquanto aqui, a paixão se transforma numa alegria genuína e meio incontrolável. Mas João consegue dar seu perdido e vai de táxi para Ilhéus. The ladies night acaba com a bebedeira de Iolanda, que começa na casa de Jacutinga e continua na venda, carregando Norberto como único homem admitido nessa noite sob nova direção. O espaço é reocupado: deitada no colo de Ritinha, Zinha conecta Ritinha à Eliana, enquanto o pé de Joana descansa na garrafa da cachaça, quase na cara da “irmã”. O saldo disso tudo, além de um capítulo de ruptura, característico das narrativas complexas (na concepção de Jason Mittell), é que Iolanda fecha a noite com uma advogada. Tomara que Norberto venda xantínon para remediar as dores de cabeça. Só não servirá à Eliana, que volta ao jogo perigoso no qual a arma toma o lugar do taco.
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https://www.youtube.com/watch?v=pKPdQIp7KbI
163.
– “Esse menino são fiota, são peitica”, ralha Joana com Tião prometedor. Sem o triângulo amoroso original, a relação ganha uma dinâmica nova nesse amor suspenso, grávido de sonhos sem data para o parto. Alice Carvalho comove na maneira como trabalha o texto, principalmente nessas modulações entre discursos — aqui, ela abre parênteses na lucidez da fala principal para trazer uma intrusão carinhosa, um “olha, chegue, sente aqui” lançado a Tião. – Kika fica na Bahia e continua abrindo caminhos (ou plantando novos histórias) para si. O contracenar com Iolanda é rico justamente no contraste entre a advogada resoluta e a carola titubeante, uma na chave do realismo, outra na alegoria. Araújo também tem bom timing cômico no jogo com Mello Jr, no típico atrito entre esse bastard/womanizer e a logical smart one. Numa novela sem núcleo cômico de fato, essas interações oxigenam os capítulos.
– Mariana já balançou o mundo, mas agora é ela quem se balança entre sofrimentos múltiplos — a rejeição de João Pedro, a perda de Inocêncio, as dúvidas que a levaram ali, ainda indefinidas. A promessa que ela faz a Inocêncio, de encontrar e retirar o facão, é a antítese do encontro anterior, em que ela desejava a felicidade dele. A diferença é que lá, Mariana julgava que encontraria a própria felicidade com João, algo que não se concretizou. Agora, ela volta a apontar ao defeito, ao possível antagonismo. Tem 30 capítulos para escolher onde ficará. – Que maravilha a roda de samba na base das palmas e com personagens inclusos; Ritinha e Lú no meio, desvencilhando qualquer rivalidade. É o tipo de cena que, na original, seria uma transição, e que aqui aparece como drama. Ali, Lívio acerta as contas com o público: “eu não faço fofocas, faço um trânsito de informações privilegiadas pro o bem da coletividade”. Piscadela de novela aberta, atenta às redes sociais.
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– Em 1993, a tensão entre Teodoro e Eliana se dava mais por conta da possibilidade da descoberta do caso dela e Damião, enquanto aqui, a trama do cacau roubado sobrepõe o risco do flagra, conjugando uma disputa mais interessante, de poder político-econômico. Nas cenas mais recentes, os dois têm escalado da postura passiva-agressiva à “agressiva ao quadrado”. Entre gritos e sussurros (não necessariamente nesta ordem bergmaniana), a proximidade física é sempre um dado que injeta tanto a tensão sexual, quanto o risco de vida. Charlotte e Brichtta têm a vibe de Cláudia Abreu e Fábio Assunção em “Celebridade”; sócios de ocasião que negociam sobre a cama, um mal esperando para ver o outro pelas costas.
– Falando em “Celebridade”, Malu Mader segue consciente de que sua imagem carrega toda a memória de um star system Global; nesse sentido, não se livra do glamour, mas o adapta a essa personagem lapidada numa curiosidade tímida, de quem descobre e se encanta com esse universo, mas explorando-o com cautela. O plano em que Aurora e Inocêncio se posicionam sob a auréola da santa forma céu estrelado e arame farpado. Simbolismo ambíguo, num capítulo com composições inspiradas (na cena anterior, há um PG radical, com o corrimão conduzindo o olhar a João Pedro; no gancho do capítulo passado a este, o establishing shot surge, de maneira incomum, hitchcockiana, na ponta final da cena, revelando o galpão vazio). A cena na capela termina com um reflexo tristonho dos dois na janela, fantasmas sob a superfície por onde Maria Santa via o mundo. Na velha casa do Boi, os vivos cercados se tornam fantasmagorias, ainda que pela imagem.
– A possibilidade de ceder a sede à Mariana dá à casa-grande uma simbologia inédita; mais um amuleto dúbio numa novela com tantos. A casa guarda lembranças das quais Inocêncio precisa abdicar para levar a vida adiante. Inácia entende isso de maneira mais literal: se deixar a Bahia, Inocêncio talvez escape da 3ª tocaia. Tudo novo (ou, pelo menos, não me lembro de nada disso na novela original).
– Se, originalmente, a justiça era representada apenas pelo delegado, nesta, Kika desponta como outra figura de trânsito entre esse mundo privado e as esferas públicas. O litígio que ela abre contra Egídio tira dele, a princípio, as possibilidades particulares, e ele responde a isso da única forma que consegue — com trocadilhos vulgares, tentando intimidá-la. A conversa entre Kika e Eliana é mais uma (entre tantas) que avançam na tentativa de abrir os olhos da coronela, mas Eliana responde com a proposta de uma aliança entre elas, mulheres; a questão é que os métodos de Eliana se baseiam nos de Egídio. Já há algum tempo, Renascer tem levantado esse tema, bem contemporâneo, de questionar o limite entre as conciliações pragmáticas e as inaceitáveis.
– Boa a escolha de colocar numa externa o momento em que Buba externaliza a emoção com o indício da mudança paterna, cena arejada, que alivia as tensões do apartamento. Por ali, além de Augusto e das amigas de Buba, está o Décio de Miguel Rômulo, um craque em fazer “menino bão”, que teve, neste arco, bons momentos com Gabriela Medeiros (como essa despedida) e com Renan Monteiro (o “acerto de contas” no carro).
165.*
– Sandra promete cuidar da terra melhor do que qualquer Coutinho, mas não se dá conta de que Coutinho nenhum antes dela esteve na lida com a terra de fato. O negócio dos Coutinho é o trânsito e a transação; se Firmino e Egídio especulam com a terra, é mais pelo valor simbólico que ela agrega à imagem deles — a fazenda é o feudo, reino medieval que sobrevive num país cuja colonização se dá na História Moderna. Por isso mesmo, o cacau aberto por Zinha parece um fóssil, fruto morto da produção falida dessa fazenda, cujo verde é plantado dentro da casa pelos itens da decoração.
– A cavalo, João atrapalha de novo a passagem de Sandra, e a repetição dessa situação (posta desde a original) brinca, por si só, com os clichês que tocam a cena. Isso porque, antes, João cavalga para tentar alcançá-la, temendo que Sandra parta (partida que, aliás, nem convence tanto). É a típica cena de aeroporto/rodoviária em que uma ponta tenta impedir o embarque da outra. Às vezes, dá errado (Rachel, em Friends); às vezes, tudo acaba bem (antes de ser Inocêncio, Humberto Carrão parou um ônibus para resgatar Maíra/Charlotte em Todas as flores). A minha favorita, aliás, é a corrida do garotinho em Simplesmente Amor, filme que faz parte dos meus rituais natalinos.
– Simples e dramaturgicamente eficiente o close conjunto de Giullia Buscacio e Samantha Jones enquanto Zinha e Sandra conversam na mata. Sandra olha para a mata, tentando esconder suas dúvidas e inseguranças de Zinha. A amiga-irmã-conselheira se aproveita do desnível do terreno para colocar-se sobre o ombro de Sandra, direcionando a fala ao ouvido, quase como uma versão live action (e realista) dos anjinhos de desenho animado. O establishing shot, que estabelece as duas na mata fechada, vem ao final, menos para localizá-las do que para mostrar o tanto de trabalho que terão ali.
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– Iolanda faz renascer, pela farsa, a casa de Jacutinga em sua função primeira. Ela dobra a aposta de Norberto, que, com boas intenções, vestira-se de Rachid para aplacar a saudade que Iolanda sentia. A questão é que Iolanda sustenta, como ninguém, as fantasias, mesmo aquelas que a descontrolam, que, depois, causem crises de identidade. Depois do divertido faz-de-conta com Norberto, que escapole na hora certa, ela volta ao quarto para não se reconhecer diante de sua imagem em dois espelhos. É nessa mudança de beat que Morgado brilha: a voz soa grave e rouca ao longo desse monólogo que pontua o fim do fetiche, culminando com Iolanda dizendo (como se tentasse se convencer) que só precisa dela mesma. Nachtergaele protagoniza outro grande momento depois: pego de surpresa pela volta de Rachid, Norberto mistura a emoção de ver o amigo ao peso de consciência da noite das “mentirinhas”. A quebra da quarta parede é outra, pois Norberto não precisa fofocar, precisa se confessar ao público cúmplice, e o faz num timing cômico dado no vai e vem de abraços em Rachid (destaque também para a iluminação levemente escurecida, que denota a venda fechada, feita espaço íntimo para esse reencontro de amigos). Dali, Rachid vai à casa, para outro bom momento de Morgado (desta vez com Sater), com Iolanda oscilando entre a saudade e o rancor, a alegria pelos presentes e a fúria pela ausência. Capítulo sob a regência de Morgado, Nachtergaele e Sater, com dois momentos muito bons de Alice Carvalho — o abraço terno que ela dá em Rachid ao recebê-lo, e o olhar fixo, estudando as reações de Norberto à mesa de café.
– “Piteca”, o casal jovem mais jovem, começa a querer aparecer. É um romance resgatado da original, mas que deve ter novos caminhos, sem os afastar da trama. Fofura a cena na qual os dois saem montados no mesmo cavalo, mas com Pitoco agarrado em Teca, morrendo de medo da montaria. Parece coisa boba, mas é o tipo de detalhe que aquece o coração do público, que cria lembrança e atrai torcida ao casal.
– Para além de narrar, emocionar, simbolizar, a mise en scène tem ainda uma camada decorativa, preocupada com as belezas da cena. Estabelecida por um plano geral, a caminhada de João e Sandra é uma dessas cenas com um decorativismo minimalista, mas deslumbrante: falo das copas das árvores que, sob o vento, balançam acima do casal, que passa pela silhueta de dois grandes galhos que “se dão as mãos”. Plano que poderia estar em Apitchatpong ou em Naomi Kawasi.
167.
– Aparição incomum, o quarto de Norberto sempre surge sob um desenho de luz que salta aos olhos — em chiaroscuros nas noturnas, com essa luz entre o banal e o espectral nas diurnas. O enquadramento final de Nachtergaele é especialmente inspirado: a dor estoura na luz sobre os cabelos, ao mesmo tempo em que é arejada pelo background suave da janela, por onde esvai a fumaça do cigarro como se, junto, levasse as lágrimas. A ação final é um balançar de cabeça afirmativo, buscando a cumplicidade de Rachid, mas há escondido ali um titubear da goela, um engolir o choro. Em tempo: são outros tempos (e outros orçamentos), mas essa viagem de Rachid era a oportunidade perfeita para voltar à Bahia, colocar Sater em locação, interagindo com os espaços e figurações locais numa road soap. Fica pra próxima.
– Lú flagra a conversa afiada entre Bento e Kika (“bendita hora em que eu não tirei minha OAB”, “você vendeu minhas ações na baixa”) e a chegada da professora puxa o travelling in que reenquadra o olhar “entendi tudo” de Juliane Araújo. A conversa que se segue entre as duas tem um subtexto ambíguo, porque Kika, resoluta, pragmática, fala por si ao tentar esclarecer as coisas, enquanto Lú usa das mesmas características para falar de Bento — “ele joga a isca…”. É Kika quem, de certa forma, titubeia, dando o benefício da dúvida (“talvez ele tenha mudado”). “Pergunte à Ritinha”, responde a professora. Para além do imbróglio romântico, há ali um encontro entre vistas e visões (de mundo) que pode ser interessante acompanhar: a advogada, que lida com a justiça institucional (no Brasil, quase sempre paliativa e burguesa) e a professora, que tenta uma justiça social (que, no Brasil, sofre boicotes contundentes justamente em sua base, ou seja, na educação).
– Prosa boa entre Inocêncio, Aurora e Norberto, pelo menos até Mariana (que anda na vibe It follows) aparecer: ela sequer se esforça para fingir alguma etiqueta; logo explicita sua insatisfação, mesmo num espaço em que está de favor. A conversa entre ela e Inocêncio começa vista de fora, como se a câmera hesitasse em entrar no meio do fogo cruzado, dessa DR da vingança que poderia ter sido. Quando Inocêncio diz que Mariana não conseguirá construir um lar alicerçado na vingança, Mariana sente o golpe e se recompõe umedecendo a boca, passando a língua entre os dentes para tentar engolir essa verdade indigesta. Nessa dúvida das inocências, o punch dela vem pelo amor — “você me amou de verdade?”. Inocêncio diz que sim, mas as palavras saem na microelipse do raccord de movimento, isto é, enquanto ele se levanta, tirando o rosto do quadro. No desfecho da cena — “eu aprendi a viver com você. Tô aprendendo a viver sem” —, um acorde retumba e puxa o corte que, na justaposição, situa Aurora na posição onde antes havia o vácuo entre Inocêncio e Mariana (depois, Mariana é quem se colocará entre ele e Aurora). A cena encerra com o flagra de Mariana em Norberto em plena quebra, e com a pequena batalha de panos de prato entre eles. Com características típicas da telenovela (essa conversação reiterativa, que espirala os personagens em um tempo privado, doméstico), essas DRs de Inocêncio e Mariana (com ela devidamente reposicionada para enfrentá-lo) estão entre os melhores momentos desta Renascer.
– Tião suspende o “sonho por sonho” para um momento “beijo por beijo” com Joana. A música de Leandro e Leonardo surge na diegese nos fones de ouvido, criando uma cumplicidade ímpar com o casal (ouvimos o que eles ouvem e o que outros personagens não ouviriam se ali entrassem). Joana, essa mulher surgida da lama e entre caranguejos, descobre e usa as tecnologias (do instrumento ao celular) para trazer um pouco de sonho à aridez dos dias. A cena se desdobra com a câmera rente aos rostos e às danças; tanto aquela dada pela música, quanto a outra, feita dos anos, da cumplicidade entre as testas que recostam uma na outra. Que se beijam.
– Quitéria faz uma aparição inédita, com o rosto surgindo na lateral do quadro, em primeiro plano. É uma participação de segundos (um único plano), mas que toma o capítulo para si nessa estilização da entrada, do close-perfil contundente de Belize Pombal, que, a um só tempo, se afina e se contrapõe ao rosto de Inácia ao fundo. Encontram-se, de novo, essas duas mulheres pretas, com heranças e passados em comum, mas divergentes nos olhares presentes — enquanto Inácia é devota do coronel, Quitéria volta para lembrar que não há coronel inocente. “Essa terra ainda vai beber o sangue do coronelzinho”, prenuncia. A sequência termina com Inácia e Inocêncio diante da santa ausente, momento em que ele se desfaz de outro símbolo material — o manto. Pouco a pouco, o homem eterno vai se desvencilhando das coisas terrenas.
168.*
– Capítulo de chamadas orais: a começar pela que Tião faz com os filhos (“a natureza é sempre generosa; os homens podem ser generosos”). É o ápice de um conjunto de cenas ternas que ele tem com Pedro e Manú, numa relação de carinho e cuidado que é visual e, por isso, mais evidente do que a que Tião tinha com seus “remelentinhos” em 1993. O plano detalhe das sementes nas mãos é importante para estabelecer o contraponto das formas que atravessam a terra (a lâmina do facão, o milhozinho seco e o carocinho de feijão). Mais tarde, é João Pedro que, professor orgulhoso, vai dando as deixas para que Sandra fale aos tabaréus, expondo o que aprendeu. No plano principal do discurso, João se coloca atrás dela, os dois afinados na cor e no tom das camisetas.
– Se montarem a vida conjugal de Egídio e Eliana só com essas cenas de café da manhã, deve dar uma espécie de dilatação da sequência dos cafés em Cidadão Kane, com campos e contracampos ganhando novos significados a cada elipse. Aqui, Eliana sai de cena por cima; quando Egídio a chama de “Dona Patroa”, a câmera a enquadra no contra-plongée, e Charlotte cresce a personagem a ponto de fazê-la sair de quadro. Na cena seguinte, o plano antítese: a câmera baixa encurrala Eliana no banheiro, diante do vaso, com a possibilidade da gravidez que ela nunca, de fato, desejou.
– Tião se pergunta sobre o milagre das sementes e as mãos, instrumento primordial do trabalhador, aparecem enormes em quadro antes de acariciar a “dona terra”. Surge, então, o ponto de vista da própria (ou do grão), que retribui o olhar de Tião, essa figura sempre tão concreta, mas que aqui surge como um Deus que cumpre a gênese. Tião beija o chão e crava ali o talher primeiro, aquele que alimenta as infâncias depois do leite, antes que haja a coordenação do cortar, antes que se possa rasgar as carnes. Não é a lâmina de um facão que rasga a terra, mas o cabo da colher, deixando a parte côncava, que espelha e nutre, virada para cima. O capítulo, na reta final, termina com esse gancho, que coloca Tião como a ponta oposta a José Inocêncio.
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169.
– Doce a conversa entre Zinha e Joana, porque há essa troca de olhos e ouvidos atentos, numa reciprocidade das observações, compreensões e interesses (não necessariamente amorosos). A decupagem ainda consegue um bom enquadramento conjugando uma proximidade imagética e o contracenar dentro do plano com Zinha refletida no retrovisor, ao lado de Joana. É uma relação inédita e mais do que bem-vinda à Joana, que se despede com beijos ternos (e fraternos) no braço de Zinha, celebrando esse bem-querer mútuo e descompromissado.
– Por sinal, este foi um capítulo de duplas: Eliana rompe com Damião sob uma fragilidade inédita, diferente daquela que exibia no casamento com Venâncio; talvez o medo comece a tomar conta da coronela. Justaposta à cena na casa abandonada, está a DR de apartamento, com Meire subindo o tom contra Humberto. O campo e contracampo no medium close-up (bem televisivo) destaca os rostos, mas não deixa de expor as posturas, principalmente a altivez da/de mãe de Buba, que se impõe ao marido (e Fontes responde com esse sujeito bronco, mas frágil, que não sabe como conjugar essas duas coisas).
Outra conversa postural é aquela entre Kika e Ritinha; à vontade na cama, a filha de Inácia segue segura e pragmática no que tem para dizer, enquanto Kika pisa em ovos e se apoia, tensa, tentando entender as novas configurações de José Bento (mas topa com Eriberto, que discursa as configurações do carro, num merchan tão absurdo que soou cômico, principalmente no punch “custava fazer um barulhinho esse motor?). Entre os encontros com Eliana e Egídio, Damião arranja tempo para brincar de gato e rato com Norberto (o quadro sempre valorizando as costas de Xamã contra Nachtergaele), mas acaba azucrinado por Mariana, cada vez mais especialista em envenenar geral. A única dupla que se reafina é João Pedro e Sandra, naquela conversa lânguida entre galhos, com o sol preguiçoso contornando os cabelos e cintilando as árvores em torno desse romance que renasce.
170.
– Capítulo de Zinha: primeiro na dupla improvável com José Bento, que veste o arquétipo do mentor ao conduzi-la às coisas da juventude. Porque há, nessa personagem, essa perda implícita da juventude (e, em certa medida, em João Pedro): criada na lida, orbitando a família sem possibilidade de escape a outras vivências sociais, Zinha carrega consigo uma adolescência incompleta. Talvez por isso, ela tem essa rabugice meio velha, que transborda nas frases espirituosas (Luperi, aliás, injeta nesses personagens um humor mais ácido do que o de Benedito, que trabalhava um humor mais matuto, quase pueril). Soma-se a isso a sexualidade não plena, não aberta, limitada não só pelos preconceitos interioranos, mas também pela falta de possibilidades imposta por esse microcosmo apertado. Nesse sentido, o beijo entre ela e João, lá no começo da novela, é uma escolha acertada, já que retrata esses quase adolescentes buscando alguma experiência. Na Boate Azul, Zinha se liberta: bebe, não afogando as mágoas na cachaça de Norberto, mas para cometer os deslizes da idade, para permitir-se, um pouco, jovem. Deocleciano, pai zeloso que é, se preocupa e cobra um “aprendizado” da filha. A maneira como Antunes solta a frase (“você apaixonada por uma pessoa que não lhe ama”), pai partilhando o sofrimento da filha, cobra de Jones (há pouco, impagável com óculos escuros), um olhar difícil, da adolescente (que ela é e não é) descoberta, flagrada em seus sentimentos mais profundos. A valoração da cena muda rapidamente quando Zinha assume que só espera a amizade de Joana, aliviando a preocupação paterna. Nesse arco episódico, fica explícito o coming of ageum pouco tardio, em que Zinha, distante de sua geografia, tem — como diria Kim Hudson, na releitura que faz da jornada do herói pelos arquétipos femininos — “oportunidade de brilhar”. Ela é conduzida para longe do “mundo dependente” justamente pelo Inocêncio à margem, aquele que sempre driblou as expectativas familiares e sociais baseadas em valores postos pelo pai. Zinha segue das personagens mais interessantes desta Renascer. Samantha Jones é atriz para não se perder de vista, pronta para protagonizar.
– Inteligente a trama das balas, que revela a Egídio o responsável pela tocaia ao passo que até aqui cria um falso álibi, “livrando-o” do assassinato de José Venâncio. Potencializa o público na posição do suspense; o espectador, sabendo mais do que os personagens, ativa a imaginação supositiva para especular sobre quando e como será a resolução de mais esse desdobramento, que, por ora, “inocenta” Egídio. Dispensado pelo coronel, o rosto de Marçal desconfia, mas o corpo segue na rigidez meio torta desse sujeito cuja vida (e o corpo) é receber ordens tortuosas; Marçal apoia uma mão na fivela do cinto, mas deixa o braço direito enviesado, talvez repuxado pela desconfiança no olhar. O momento em que Egídio encontra arma é provavelmente o mais extremo da interpretação de Brichta, cujo coronel não é mais aquele que herda e reproduz um certo habitus, mas um vilão sádico, patológico, que caminha pelas montanhas da loucura ao descobrir-se traído pelo empregado que ele considerava posse.
– A Bahia fez bem a Eriberto, que chegou se sentido em casa. A existência de pentaedro amoroso (Lú-Bento-Kika-Eriberto-Ritinha) em que todo mundo parece um pouco interessado (mas ninguém está perdidamente apaixonado), por si só já é mais interessante do que o conflito Bento e Ritinha, que aparecia a parte final da novela original.
171.
– Mariana competia com a memória de Maria Santa; Aurora compete com o trabalho (e o patrimônio, dele resultante). José Inocêncio trabalha para se sentir vivo num sentido polissêmico: vivo, viril, operante aos olhos dos filhos, dos amigos, dos inimigos. A labuta — ainda que burocrática, quase sem os pés nas sementes —, garante a ele uma raiz, assim como o mantém como caule dessa estrutura social. A vida entre fazendas que Aurora propõe, carrega não só a ideia de um agronegócio volátil e predatório (a terra como lugar de passagem), como restituiria (e restringiria) Inocêncio a uma pseudoposição do que Buarque de Holanda chamava de colonizador aventureiro, aquele que descobre e parte. Inocêncio é o trabalhador/povoador. Se um dos dois não ceder, o romance está fadado ao fracasso.
– As redes sociais corroboram algo que já disse em outras ocasiões: o Egídio de Brichtta é pica-pau mais mau do que Teodoro, flexível entre o sujeito dissimulado e o ensandecido. A cereja do bolo do cinismo é a volta do óculos de corredor da São Silvestre, acentuando o sorriso de Grinch em Esqueceram de Mim.
– Bom encadeamento entre cenas de tensão e distensão: na fazenda Jequitibá-Rei, Egídio e Eliana sustentam essa cena de climão familiar, com Eliana destilando veneno — ela retoma a oposição (que andava suspensa) à Buba, e ainda dá a oportunidade de Aurora dar uma bela retrucada em alguém (já não era sem tempo). Curioso que, ex-cúmplice de Eliana, Eriberto faz a egípcia e se bandeia fisicamente para o lado de Buba. Dois gestos merecem destaque: 1) a mão erguida de Gabriela Medeiros, que esfrega os dedos até fechar o punho, como se concentrasse ali a raiva da rival; 2) a virada de Sophie Charlotte diante da decisão de Egídio de que pagará a banda. O alívio vem com o trio Norberto, Iolanda e Rachid, com a divertida troca de olhares sobrevoando Rachid (que se faz de bobo, mas de bobo não tem nada). Mariana também aparece, mais solar do que nos últimos dias (Norberto que se cuide; se bobear, ela enterra ali uma faca e toma a venda).
– Outra que anda solar (na verdade, de volta ao que era) é Ritinha, personagem com tom diferente da original: em 1993, Ritinha era uma moleca colocada entre instinto e malícia, mas que era majoritariamente reativa as provocações dramáticas de Damião e José Bento. Apesar da trama própria e do tempo de tela, esbarrava na sexualização racista tantas vezes dada às mulheres negras televisionadas. Aqui, a sensualidade ainda é uma questão, mas Ritinha é mais adulta, mais perspicaz e mais consciente da posição ativa que agora ocupa.
172.
– A venda de Norberto fez bem à Mariana, e Theresa Fonseca se aproveita do texto para exercitar um timing cômico até então incógnito. Um exemplo é a cena em ela e Rachid assistem Norberto dar uma “tapa na lataria”: Fonseca poderia conter Mariana a reações pragmáticas à situação, mas ela imprime um deboche doce no riso; em seguida, de perfil, aperta os olhos para ler Norberto, titubeando precisamente num comentário de Rachid (um olho no peixe, outro no gato). Ao final da cena, ela se posiciona de forma a recostar levemente no ombro de Rachid (num tipo de marcação que também aparece em interações dela e de Norberto). Os dois olham para o extracampo, compondo ali uma dupla dinâmica, detetives amadores em sintonia com a venda da fofoca. Norberto, cujo segredo sabemos, nos dá satisfações numa quebra incomum, já que o comentário não é sobre a vida alheia, mas sobre um enrosco pessoal. Nachtergaele trabalha essa diferença nas pausas e nas pálpebras inferiores, cujos limiares brilham, revelando os olhos umedecidos sob a possibilidade de perder o amigo.
– Inocêncio é enquadrado num xadrez diante da ausência do diabo. No plano seguinte, a câmera sobe; rente ao teto, deixa de ser terrena para tirar o chão do coronel, oprimindo-o num sobreenquadramento inquietante e incomum (é o tipo de plano que abriria uma cena em 1993, mas que apareceu pouco nesta). Então, Aurora entra e a cena culmina num abraço, ato que talvez impeça Inocêncio de subir antes da hora, junto da câmera que, por enquanto, encontra impedimento no teto.
– A relação de Teca e Pitoco é outra, mais baseada no “fechamento” entre eles do que naquele desejo de voltar ao habitus da vida pregressa, à “liberdade” da rua (como era em 1993). O tom da declaração pueril contrasta à seriedade do tema, essa paternidade que Pitoco vai assumindo no lugar de Dú. Juan Queiroz faz bem o menino meigo, mas não abobado, que carrega com leveza a perspicácia forjada numa vida dura. Um detalhe na escalação é a cereja no bolo nas cenas entre os dois: como Queiroz é mais baixo do que Lívia Silva, ele inclina o rosto para vê-la e isso faz com que a feição de Pitoco se acenda e ascenda num olhar que mistura carinho e admiração.
173.
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– Segue a serialização do casamento, quase uma intrusão a la Manoel Carlos no universo de Benedito. Capítulo curto, que circula pela festa, intercalando cenas de Tião e Marçal. A cena da tocaia ao capanga é bem resolvida no diálogo entre mise en scène (com efeito prático) e montagem, e desemboca na seguinte, plano único num travelling out que antecipa o sadismo de Egídio (sem que ele sequer apareça no capítulo). O corte suspende o destino de Marçal até segunda, capítulo que costuma ter maior audiência.
– Tião volta às terras de Egídio — lugar do começo de sua história — para se instalar numa cabana. A cena é decupada nos pequenos procedimentos de Tião: reconhecer os estragos, amarrar o “teto”, encontrar a colher do pacto silencioso. Tudo posto sob um sol que irradia pelas clareiras, que a fotografia trabalha fazendo cintilar os contornos de Tião (e do facão) ao passo que cria uma atmosfera etérea nesse Éden solitário, dúbio, tão abençoado quanto trágico.
– Kika tem uma recaída por José Bento, mas, inconscientemente, usa Lú para testá-lo (mas a professora percebe e não se deixa levar). A situação, obviamente, culmina no típico bafão de casamento, com Bento e Eriberto aos socos. Um detalhe é curioso: Bento se incomoda com Eriberto chamando-o de “parceiro”; ele que sempre propôs parcerias duvidosas aos irmãos, que perdera o irmão mais próximo, melhor amigo de Eriberto. Brigam, então, o irmão de sangue e o de convivência de José Venâncio. O conflito é coroado pelos comentários de Zinha: “fica bonito pra minha cara, né, Zé Bento? Meu professor de paquera arranjando briga aí…”. Ela, que na encarnação anterior era irmã de João Pedro, vai construindo essa relação fraterna com Bento e Augusto. Entrelaçam-se diferentes irmandades.
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– Kika tem uma recaída por José Bento, mas, inconscientemente, usa Lú para testá-lo (mas a professora percebe e não se deixa levar). A situação, obviamente, culmina no típico bafão de casamento, com Bento e Eriberto aos socos. Um detalhe é curioso: Bento se incomoda com Eriberto chamando-o de “parceiro”; ele que sempre propôs parcerias duvidosas aos irmãos, que perdera o irmão mais próximo, melhor amigo de Eriberto. Brigam, então, o irmão de sangue e o de convivência de José Venâncio. O conflito é coroado pelos comentários de Zinha: “fica bonito pra minha cara, né, Zé Bento? Meu professor de paquera arranjando briga aí…”. Ela, que na encarnação anterior era irmã de João Pedro, vai construindo essa relação fraterna com Bento e Augusto. Entrelaçam-se diferentes irmandades.
– Rachid rompe com Iolanda com um motivo convincente no discurso, mas não tanto nos atos: ele sempre pareceu menos entregue à relação, colocando a amizade com Norberto à frente. É um reflexo distorcido da outra Renascer: lá, a fraternidade masculina predominava, mas em outros personagens (Inocêncio e Deocleciano, João Pedro e Zinho). Aqui é plantada principalmente em Rachid e Norberto, ainda que sobre uma outra masculinidade, mais maleável fora das fazendas. É um conflito contraditório: por um lado, abre espaço para que Iolanda conheça a si mesma (provavelmente, pela primeira vez), por outro, suspende o amor recíproco que o romance incitava, devolvendo a personagem a uma desolação cortante.
– Sobre a cena de Egídio… o comentário será em vídeo.
176.
– Egídio vai às sombras, literalmente, para sentir o luto por aquele que matou. A dor do coronel existe; envolve lealdade e posse. No plano principal, um facho de luz vira uma espécie de avesso de tapa-olho, revelando um olho só na silhueta do vilão (cujas orelhas brilharam, como as de um demônio, na cena da morte). Adiante, quando, por trás de um engradado, ele prepara a arma, Egídio diz que botará à prova as culhudas que José Inocêncio conta. É reiterado esse incômodo do vilão com algo que é inerente a José Inocêncio — a oralidade, a contação das histórias. Nesse sentido, extirpar os Inocêncios significa também calar os causos.
– Buba e Augusto partem para lua de mel e deixam Kika e Ritinha num climão. Mell Muzilo tem um pequeno momento de genialidade quando Kika insinua que há algo mais no interesse dela por Eriberto: depois de soltar um “oxente” malemolente, ela desvia o olhar e esconde o rosto levando a xícara à boca. Assim que se recompõe, volta a encarar Kika. A segunda conversa, no final do capítulo, é ainda mais dura, mas tem uma franqueza cortante e rara, o que acaba destacando a cena por contaste numa novela em que os diálogos ásperos sempre carregam dissimulações e subtextos. Kika, por sinal, parece mais franca na conversa com Rita do que na que tem com Eriberto, quando ainda oculta (dele e de si própria) o que sente.
– Bonitinha a cena de Teca e Pitoca, mas mais ainda as entradas de Ana Cecília Costa como essa mãe que orienta o filho adolescente, que se emociona e torce por ele.
– Inocêncio se embrenha na mata, mas Inácia trabalha para que ele não se desfaça do último objeto-símbolo da fé. A montagem articula os detalhes da oferenda e a procura pelo jequitibá, que desaparece; a sensibilidade com que os gestos de Inácia e os ritos são captados é algo que merece destaque, não só pela beleza artística, mas pela importância dessa representação, que pode criar laços e dissolver preconceitos. Caubói em mata densa, horizonte fechado, Inocêncio se perde pelos olhos, que circulam para encontrar o jequitibá. Ele aparece para nós na subida da câmera, que vai revelando a grandiosidade do tronco, da copa, até, por fim, mostrar a imensidão da mata que vai além da capacidade do quadro. É um ponto de vista inédito, providenciado pela tecnologia atual. Aliás, drone é para isso, para servir à dramaturgia, não à pirotecnia.
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– É um problema (desde 1993) essa ingenuidade de Sandra sobre Egídio. Ela, que já foi testemunha e vítima das barbaridades do pai, não deveria sequer cogitar Tião como responsável pelo sumiço de Marçal. É o tipo de desconfiança que serve ao conflito, mas é incongruente com a trajetória da personagem. Testa um pouco a paciência do público.
– Correndo o risco de estar me repetindo (mas é inevitável num trabalho tão extenso e fragmentado), quero falar sobre o solilóquio de Egídio, flagrado por Eliana. Doc Comparato, em sala de aula, praguejava contra solilóquios, dizendo para que não os fizéssemos de jeito nenhum. Mas no universo de Benedito, eles sempre encontraram uma maneira orgânica de se apresentar; talvez por conta do tempo da narrativa, que abre brecha em começos e finais de cena, talvez pela própria enunciação desse solilóquio, que se assume como um raciocínio, um diálogo consigo mesmo, diferente daqueles em que o personagem parece falar para uma orelha faltante, para outro que não está ali. Este de Egídio tem um risco: o vilão insinua seu crime e é quase apanhado (o que poderia colocar sua sagacidade em dúvida), mas a mise en scène colocando-o na janela (como se ele falasse para fora) e a progressão psicológica do personagem nos últimos capítulos ajudam a atenuar esse deslize. Enfim, esses solilóquios me parecem construções complexas, que mereceriam mais tempo de análise.
– Eliana revela a Egídio o caso com Damião e a modulação do discurso é das mais interessantes: ela oscila entre uma cautela titubeante (“eu tava sozinha, eu tava…”) e uma empáfia cortante (“como diz aqui na Bahia, um pá de vez”) que tenta resgatar aquela Eliana que enredara o coronel, mas que agora se enrosca na própria linha (Sophie Charlotte cria um bom tique nesses momentos de fragilidade, fazendo Eliana acariciar os cabelos como se tentasse acertar toda a “máscara”). É Damião quem, adiante, reequilibra a situação quando percebe que palavras não bastarão ao coronel: é preciso um teatro físico do firmamento dessa fidelidade, que Damião promete com uma marca, mas não a dos Coutinho.
– Norberto chega ao brega onde supostamente está Jacutinga e a mise en scène dessa entrada brinca com uma diluição do naturalismo ao colocar Norberto como ponto de uma rigorosa convergência dos olhares. O ápice dessa brincadeira vem depois da fala (“pense numa pessoa que sabe chegar no ambiente sem chamar atenção”), quando um trio de figurantes (duas mulheres e um homem) acena a Norberto com as cabeças, numa sincronia milimétrica.
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– Eliana revela a Egídio o caso com Damião e a modulação do discurso é das mais interessantes: ela oscila entre uma cautela titubeante (“eu tava sozinha, eu tava…”) e uma empáfia cortante (“como diz aqui na Bahia, um pá de vez”) que tenta resgatar aquela Eliana que enredara o coronel, mas que agora se enrosca na própria linha (Sophie Charlotte cria um bom tique nesses momentos de fragilidade, fazendo Eliana acariciar os cabelos como se tentasse acertar toda a “máscara”). É Damião quem, adiante, reequilibra a situação quando percebe que palavras não bastarão ao coronel: é preciso um teatro físico do firmamento dessa fidelidade, que Damião promete com uma marca, mas não a dos Coutinho.
– Norberto chega ao brega onde supostamente está Jacutinga e a mise en scène dessa entrada brinca com uma diluição do naturalismo ao colocar Norberto como ponto de uma rigorosa convergência dos olhares. O ápice dessa brincadeira vem depois da fala (“pense numa pessoa que sabe chegar no ambiente sem chamar atenção”), quando um trio de figurantes (duas mulheres e um homem) acena a Norberto com as cabeças, numa sincronia milimétrica.
– Um problema prático se coloca: o superpovoamento dessa “um bostinha de vila” (como disse Rachid). A cena em que Norberto tenta despejar Mariana, Rachid e Eriberto é resolvida em campos e contracampos simples, mas que constroem a comicidade sempre que volta à Mariana, que aparece mais irritada a cada micro-elipse dos cortes (“eu estou rentabilizando seu negócio!”). A maneira como Eriberto é apresentado (a Norberto) e o nariz empinado de Lilith (que parece uma superstar olhando tudo e falando pouco; mas quando fala, fala na lata) sobre Mariana lapidam o tom dessa tensão bem-humorada. O azar de Mariana foi ter caído na casa de Jacutinga; se tivesse ido parar na venda de Norberto, sua história seria outra (mas talvez não fosse novela, fosse sitcom).
– Lívio explica a diferença entre invasão e ocupação. Se tivesse uma máquina do tempo, poderia voltar ao Roda Viva para explicar aos jornalistas que entrevistaram Benedito na época de O Rei do Gado.
– Egídio se esmera no vocabulário (“condição sine qua non”), mas quando Lívio fala “terras improdutivas”, responde: “vamos evitar o juridiquês”. A postura de Lívio, que anda contracenando menos com o coronel, também é outra, como se o pastor tivesse tomado consciência de que a liderança espiritual impõe a ele o papel de protetor daquelas vidas em corpo e dignidade.
– “Passe a régua que não quero deixar nada pendurado”, diz Inocêncio à Mariana, que fica de cabeça baixa, olhando a conta. No entanto, ela parece engolir algo (as palavras, talvez). Apoia-se no balcão, mas mantém a cabeça baixa, como quem entende tudo, mas precisa de tempo para prepara uma reação. O olhar a Inocêncio irrompe como gesto contundente, com a mesma força com que sai a frase que cobra — “e sua conta comigo, você vai acertar quando?”. O amor, até então suspenso, ressurge para movimentar a vida pacata dos últimos dias de Inocêncio. Antes, um instante de silêncio que diz muita coisa.
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– – Egídio se esmera no vocabulário (“condição sine qua non”), mas quando Lívio fala “terras improdutivas”, responde: “vamos evitar o juridiquês”. A postura de Lívio, que anda contracenando menos com o coronel, também é outra, como se o pastor tivesse tomado consciência de que a liderança espiritual impõe a ele o papel de protetor daquelas vidas em corpo e dignidade. – “Passe a régua que não quero deixar nada pendurado”, diz Inocêncio à Mariana, que fica de cabeça baixa, olhando a conta. No entanto, ela parece engolir algo (as palavras, talvez). Apoia-se no balcão, mas mantém a cabeça baixa, como quem entende tudo, mas precisa de tempo para prepara uma reação. O olhar a Inocêncio irrompe como gesto contundente, com a mesma força com que sai a frase que cobra — “e sua conta comigo, você vai acertar quando?”. O amor, até então suspenso, ressurge para movimentar a vida pacata dos últimos dias de Inocêncio. Antes, um instante de silêncio que diz muita coisa.
Mas o momento mais marcante (e comentado) é aquele em que Zinha entra na vibe brechtiana de Norberto, não para derrubar a 4ª parede, mas para realizar com ele um gesto teatral rigorosamente coreografado — o abaixar de cabeças que dimeriza a luz e abre a narração de futebol. É o momento máximo dessa mise en scène metalinguística, plano que abre uma espacialidade de palco, como se a venda se reduzisse aos focos de luz que recortam e acompanham a ação. O balcão se torna uma espécie de púlpito, de onde Norberto e Zinha observam. Então, Norberto passa a narrar toda a aproximação de José Bento; enquanto ele encara a câmera, Zinha olha ao redor, como se desviasse de nós em respeito ao poder particular de Norberto. Quando o merchan chega, parece até aceitável, ou ao menos, perdoável. Se ele é um mal necessário, que desponte assim, pela quebra de expectativa, entre a autoconsciência e a metalinguagem.
– Na mata — penetrada agora por uma luz dourada que perfuma e abençoa o terreno —, Tião diz a Lívio que seus passos sempre o trazem de volta àquela terra. É uma epifania interessante de surgir verbalizada agora, já que, de certa forma, possibilita uma correspondência com José Inocêncio, outro com passo amarrados, puxado pela corda invisível do destino, esse elemento tão característico do melodrama. Aliás, quando Inocêncio fala em direito, Mariana evoca justamente ele, o destino. Afinal, nem ela sabe mais o porquê de estar ali. Talvez seja para isso, para mudar o desenlace de José Inocêncio, aquele que Benedito narrou para convencer Fagundes a aceitar o personagem numa outra novela, num outro tempo.
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– Às vezes, é possível compreender um personagem pelos olhos de outro; caso de Tião neste capítulo. Pacientemente, ele não se deixa levar pelos apelos de João, Zinha e Sandra: “dormir, amanhecer e trabalhar nas suas roça… Ave Maria, é reino de Deus”, ele diz. É no fim dessa frase que o corte traz o contracampo de Sandra e, no olhar dela, Tião se refaz, refletido. Isso porque Sandra (e Giulia, que constitui esse olhar) olha para Tião entre a compaixão e a admiração. Compaixão pelas injustiças reiteradas, grilhões que puxam Tião de volta à vida precária. Admiração pela sobrevivência do sonho, mas, sobretudo, pelo amor à terra, posto numa declaração que Sandra provavelmente nunca ouvira do pai, o dono do papel. Papel não enche barriga, bem diz Tião, que, depois de ler A Revolução dos Bichos, confraterniza com as formigas, dos bichos mais minúsculos e organizados dados à vista. Se Joana estivesse ali, em cena, diria “Tião, se organize, meu fi”.
– Se em um plano, Sandra refaz Tião, noutra cena, derruba Eliana, mesmo restrita ao reflexo num espelho e em desfoque (aliás, a decupagem em espelhos é uma das marcas desta novela). No início, Eliana confronta Sandra da porta, mas entra no espelho para tentar dialogar com a enteada de igual para igual. No entanto, quando Sandra começa a despejar verdades, Eliana volta à porta para, ali, ter uma revelação — ela e Egídio são equiparáveis; é o que Sandra indica quando diz que os dois se merecem e que tem pena do bebê. Sophie Charlotte, primeiro, desmonta os ombros, como se ouvisse incrédula; depois, se recosta ereta na parede, tomada pela súbita consciência de seu descaminho. É uma Eliana mais grave do que a primeira, porque ela deixa a infelicidade de um casamento opressor, sobe à superfície, vê a luz do dia e, de repente, é puxada a outro poço, ainda mais fundo (justamente, o que eliminou o primeiro). O plano em que Egídio menciona o casamento é simbólico: transformados em silhuetas no reflexo de um quadro, o casal de/em sombras tem movimentos contrastantes — Egídio finca o corpo e se ergue até a barba, enquanto Eliana titubeia, insegura. Quando ele fala em marcarem a data, os braços dele a cercam, unindo as figuras, como se a sombra maior iniciasse um processo de fagocitose para engolir Eliana. A aflição de Eliana é por se dar conta de que ela, agora, é D. Patroa, mas numa extensão mais completa (e condenável) do marido.
– Joana ouve que Iolanda renunciou seus direitos em prol de Tião e do “povo da lona” e abre uma belíssima cena calcada nos silêncios, nos não-ditos. O texto é reduzido ao mínimo, às perguntas-chaves daquilo que Joana precisa saber; não há espaço ao debate, à argumentação, à bronca. Quando a pergunta central vem, a reação de Iolanda dá continuidade ao silêncio, à resposta pelo gesto e pelo olhar. O abraço entre as irmãs irrompe como único ato possível, entre braços firmes e olhos fechados, entre consolos e resistências. Alice Carvalho é quem modula toda a cena através das respirações e olhares de Joana. Camila Morgado regula a cena anterior: aquela em que ela se despe de Iolanda enquanto figura espalhafatosa, caricatural, para confrontar Egídio com uma voz dura, cortante, até mesmo sem o sotaque. É quase como se resgatasse Irma (personagem de Morgado em Pantanal) para a cena.
– Eriberto rompe de vez com Kika e a cena termina com um discreto travelling in (em contra-plongée) sobre Juliane Araújo (que acompanha a saída com os olhos, mas não com a cabeça). Como movimento de câmera e angulação não são matemática (quer dizer, até há matemática na feitura, mas não no discurso), o plano que se forma é ambíguo: ao mesmo tempo em que eleva a personagem, sublinha a sombra da dúvida na face e certa ansiedade no arfar que movimenta os ombros. A depender de como se encara a jornada da personagem, o plano pode significar libertação ou encruzilhada. Uma coisa é interessante: incumbida por José Inocêncio, Kika está à frente da casa; aqui, literalmente. Como disse, não é matemática. Ainda bem.
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181.
– Há capítulos em que as ações/reações orbitam praticamente um único evento (evento no sentido usado nos estudos de roteiro, como acontecimento narrativo que movimenta a história). O primeiro beijo de Zinha e Lilith é o evento do capítulo, filmado com delicadeza, mas sem se esvaziar de uma sensualidade nos olhares (o que contraria o cenário atual de não representação dos desejos). É uma cena de namoro na janela, com a câmera na mão trazendo uma organicidade discreta, as atrizes iluminadas pelo verde & vermelho quase complementares (a complementar propriamente dita seria o magenta, mas o contraste entre verde e vermelho é mais comum), num jogo de cores-luz que era recorrente na Renascer original, mas entre azuis e amarelos. O super-close — estabelecimento relativamente recente na telenovela, com o corte na altura do queixo — desvencilha a cena do espaço para concentrá-la nas personagens, sobretudo na de Samantha Jones, cuja jornada acompanhamos há tempos. É na alteração entre campo e contracampo que dois desses closes de Zinha mudam o beat da cena: no primeiro, ela desvia o olhar e oscila o rosto entre ¾ e perfil; luminosa e cautelosa, ela diz que é cheia de se emocionar e depois se estrepa. No contracampo (sempre em over the shoulder), Lilith provoca e quando a decupagem volta à Zinha, Jones coloca, numa virada de rosto (e num piscar de olhos), todo o arco interno dessa personagem, que chega a um momento inédito. O primeiro beijo se dá no limiar do batente luminoso (marcante da casa de Jacutinga) e é visto sob uma câmera mais rente, mais emocional e emocionada. O segundo, é um beijo mais posado, com a câmera dando mais espaço às personagens (transformando-as em silhuetas) e investindo na camada decorativa do plano, na beleza da composição.
– É desse beijo não visto (pelos personagens) que a fofoca diegética trata: Norberto e Mariana (que dupla!) especulam sobre Zinha ter dormido na casa (e aterrorizam o pobre Eriberto sobre Damião; “com um currículo desse, a gente tem que falar que é boa pessoa”, zomba Norberto), e até a sempre discreta Joana não hesita em confrontar Lilith, para saber de suas intenções com a amiga. Mas a melhor cena nessa borda do beijo é aquela em que Zinha e Ritinha se encontram no corredor, cada qual saindo de um quarto, as duas tentando disfarçar o indisfarçável. A delícia dessa cena está numa conjunção de fatores: no plano sequência distanciado, aberto às entradas e saídas reveladoras (de Eriberto e Lilith), no enquadramento ancorado na retidão de Ritinha recostada à parede (em contraste com Zinha, menor e mais ao fundo, “sambando” entre as desculpas e os flagras), na química entre Jones e Muzzillo, que compõem essa dupla em que uma é ácida e a outra é apimentada, uma é sarcasmo e deboche, a outra, vivacidade com uma pitada de malícia. Aliás, é uma novela de jogos em duplas: Zinha e Ritinha, Zinha e Bento, Zinha e Joana, Norberto e Rachid, Norberto e Mariana, Joana e Iolanda… são várias as possibilidades de boas composições, muito por conta do desenho dos personagens, mas, principalmente, por um bom entrosamento do elenco. Porque esse tipo de coisa, como diz Denis Carvalho (não só), sai impressa na novela, se evidencia na tela.
– Eu sou suspeito (porque adoro a música), mas a versão de Gil para Drão, ritmicamente mais marcada do que as de Caetano e Milton, abraça bem essas cenas de caminhadas e cavalgadas de Inocêncio e Aurora. É uma versão de passos (sonoros) malemolentes (na polissemia da palavra), que combinam com essas andanças que arejam a vida do coronel.
182.
– A conversa entre Norberto e Lilith sintetiza o bom uso desse balcão como expositor das motivações e atuações. Primeiro, Norberto se encosta ao lado dela, ombro a ombro, de frente para a câmera (“quanto mais eu vejo, mais eu me interesso”, diz Lilith). Ele se sente traído pela moça e logo deixa isso claro: o azedume circunstancial resulta num muxoxo, que faz Norberto se virar e apoiar as costas no balcão, dessincronizando os rostos — agora ficamos com o de Lilith, enquanto Norberto esconde sua expressão ao olhar para fora. Lilith faz charme; ao dizer que tem muita coisa interessante naquela vila, olha para o lado esquerdo do quadro, estabelecendo o momento menos comunicativo do plano (com Lucy Alves de perfil e Matheus Nachtergaele de costas). Quando, desconfiado, Norberto pergunta o que, Lilith atua numa calculada virada de rosto, decidida e decisiva em mudar o tom da cena — os acordes de violão entram justos ao gesto; a trilha terna e melancólica traz, junto com Lilith, a memória de Jacutinga. Abre-se esse flerte ambíguo: Lilith esconde algo e não pode deixar Norberto tão desencantado; tampouco encantado em excesso. Quando ela sai em direção à porta, apoia a mão no alto do batente, compondo uma pose de quem guarda a entrada da venda, tomando-a para si. Uma pose de Jacutinga. Norberto olha para a câmera, mas desta vez não fala; sorri com os olhos marejados, compartilhando a emoção diante desse renascimento parcial, dessa “reencarnação”.
– Cafézinho amargo o servido aos Inocêncio nesse conhecido entrecho (de Shakespeare a Machado) da rivalidade entre irmãos, restaurada para essa reta final. Mais do que a briga em si, interessa a disposição do conflito, com os campos de batalha bem divididos: Bento (com Kika, Buba e Teca) na sala de visitas, João Pedro (com Augusto, Sandra e Inácia) à mesa da sala de jantar; um no espaço social (recepção ao mundo de fora), outro no lugar da consagração familiar. Não percebem ainda que, mais do que contraditórios, são complementares. É Inácia quem levanta a voz para murchar a briga e não poderia deixar de ser: decana da fazenda, ela é a personificação da própria casa, compreendendo-a como lugar de segurança e conciliação. Nesse sentido, ela é mais do que uma presença materna reguladora dos humores e amores familiares, é uma força protetora capaz de antever os desequilíbrios e acionar os demais amuletos (a santa, o diabo, a Guia, o manto). Nesse conflito caseiro e entre crianças, dispensa tudo isso: basta-lhe a voz de dona da casa.
183.
– A justiça tarde e falha quando diz respeito à justiça social. A notícia chega primeiro aos personagens-guias — o pastor e a professora —, e o travelling in que atravessa o plano-sequência é uma pequena genialidade: vagaroso e discreto, começa com Lívio no ponto de fuga, colocado-o — literalmente — contra a parede de um barraco enquanto fala ao telefone. A entrada de Lú obriga que Lívio se coloque numa posição pouco comunicativa (um ¾ de costas) e promove uma lenta correção do enquadramento, que resulta no ¾ frontal da professora e no perfil de Lívio. Além da dramaticidade dos rostos (o sofrimento de Lívio, a preocupação de Lú), há um timing milimétrico nesse movimento, que abre entre eles o corredor das lonas e trabalhadores ao fundo, colocando os injustiçados — ainda alheios à injustiça — no quadro dos mediadores. A cena termina num close contundente de Breno da Mata, o rosto em luz dura contrastando com a fragilidade da parede que o suporta: uma tábua de madeira que balança sob os pesos do pastor.
– Disse, dias atrás, que Zinha costuma compor boas duplas com João, Joana, Ritinha, mas há uma que se diferencia dessas todas: aquela formada com o pai, Deocleciano, que Jackson Antunes faz como um sujeito menos arisco — mas não menos vivo — do que o de Roberto Bonfim. Deocleciano, agora, é de uma vivacidade branda, que sabe observar e escutar, o que cria uma nota dissonante entre ele e a filha, tagarela das “conversa réia”. Hoje, houve essa cena em que ele, sem sobreaviso, se afina à Ritinha para convencer Zinha a ir à vila; ontem, um momento ainda melhor, quando a moça cospe a pergunta (como foi a primeira vez dele?) e depois tenta justificar como uma curiosidade banal. Aliás, é na banalidade dessas conversas carinhosamente ordinárias que essa dupla comove.
– Tião abre uma fenda no teto do barraco para conversar com Deus; na verdade, para cobrá-lo, tendo o diabo como testemunha. Da última vez que Tião fez essa mesma ação, o olhar era inverso, de dentro para fora, para mostrar o céu estrelado aos filhos. Agora, é Deus quem espia Tião e toma uma providência — Joana, que chega de facão em punho para voltar à lida com a terra, numa Renascer em que a terra só prospera sob a comunhão entre homens e mulheres. Antes, Joana pergunta quem Tião prometeu no novo pacto, criando outra comunhão singular entre gesto e olhar: ela toca o ombro de Tião, e a câmera faz um rack focus do rosto ao detalhe da mão; depois, recua para enquadrar o rosto do Tião e a dicotomia que rege esse casal — unidos pelo toque, distanciados nas faces (a dele em foco; a dela, fora), expressões dessas individualidades, dessas visões de mundo cujo tangenciamento (único, talvez) é o amor.
– Muitas vezes, as profissões dos personagens pouco importam numa novela; há, inclusive, novelas em que o trabalho é uma espécie de fantasia obrigatória (pelo realismo), salpicada como participação especial. Não é o caso de Kika, que (como diria Gil do Vigor) vigorou em 2024 como a advogada mais requisitada das cercanias de Ilhéus (salvo engano, ela sequer tinha essa profissão na original). Tião na cadeia: Kika; terras de Inocêncio e Eliana: Kika; divórcio de Iolanda: Kika; direito fundiário: Kika. Essa atuação polivalente é mais um sinal do acerto da manutenção dessa personagem, que tem encontrado abertura em diferentes tramas.
– Essa pseudo-triangulação Norberto-Lilith-Zinha já acontecia na novela original com Lurdinha, personagem com posição análoga, mas personalidade e importância bem menores do que as da sanfoneira. Se Lilith for mesmo filha de Jacutinga, o objetivo pragmático dela é Norberto, único que pode lhe restituir (pela memória) a ausência da mãe. O romance com Zinha depende menos dela e mais do arco interno da filha de Jupará. Pensando a personagem a partir do paradigma de Kim Hudson, Zinha precisa “deixar para trás o mundo que a prendia” e “decidir brilhar”, mas, neste capítulo, titubeia, aponta na direção oposta. Precisará dos próximos capítulos para botar a cabeça no lugar.
– Os desentendimentos entre João e Bento culminam na briga física, na luta que, de tão dilatada, vai dissolvendo o drama em tintas cômicas. Mais importante é a discussão antes da ação, em que os irmãos, tão diferentes, extravasam algo em comum — ambos são vítimas da falência paterna de José Inocêncio. É um ressentimento que já aparecia bem delineado em João, mas explode de maneira inédita em Bento, que vomita o abandono, a expulsão dessa fazenda-feudo-quase-Éden (algo que está também em Mariana). Marcello Melo Jr. aproveita a densidade cênica para torcer o rosto, imprimindo uma fisicalidade assustadora às mágoas e à raiva. O Bento de Tarcísio Filho trazia isso aos poucos, ao longo da novela; o de Melo Jr. é panela de pressão em fogo baixo, que explode nessa revelação/reconhecimento e, de quebra, presenteia o ator com sua melhor cena.
184.
– “Ô, meu fio, o homem é pastor! Não é padre, não.” A frase de Morena soa metalinguística, como se dissesse “esse conflito é lá de trás, aqui, isso não é questão”. Na Renascer anterior, o celibato pesava sobre os ombros do Padre Lívio, principalmente a partir do momento em que ele se apaixonava por Joana (embora houvesse indícios anteriores dessa suposta “falta de vocação”; era assim que Lívio encarava a relação amorosa e o desejo sexual).
– De novo: o desenho deste José Bento é bem diferente do anterior. A cena com Kika em que Bento expõe esse reconhecimento profundo é algo que no de Tarcísio Filho era salpicado; essa consciência das limitações emergia entre lacunas da performance de autoconfiança. O de Mello Jr. sustentou essa performance de macho arrogante e inabalável até o desmascaramento operado por João Pedro (não à toa, o rosto colérico, deformando), completado agora nessa cena de campo e contracampo com Kika: ele, olhos baixos e expressão na sombra; ela, rosto luminoso e olhos fascinados de quem descobre algo, ou melhor, alguém. Kika não vê diante de si um item que José Bento mantinha incógnito; ela vê o próprio José Bento, esse desconhecido, por inteiro.
– Interessante esse delegado de Edmílson Barros, que cumpre seus desígnios com um lapso de satisfação de quem se alinha ao poder econômico para investir contra o pobre. É quase um ato-falho de quem não se contenta com o poder de braço do Estado; é preciso ser essa face fina do deboche, que degusta a manutenção das classes nessa marginalização ao quadrado (cada movimento de Tião é rebatido para reposicioná-lo sempre uma casa a mais para trás). A polícia ao redor cumpre seu papel histórico pelas bandas de cá: não o de proteção social, mas, sim, o de capanga do Estado (ou, no caso desses rincões, dos terceirizados do poder). Tião mesmo nota: “jagunço tá vestido de homem da lei”. Coronelismo é o nome que se dá.
– Para resistir à prisão, Tião imita José Inocêncio e finca o facão no chão. As algemas entram em quadro no contra-plongée que sobe da lâmina ao rosto de Irandhir Santos, que concentra a dor no vinco que surge entre os olhos. Joana protesta armada com o outro elemento simbólico — a garrafa do diabinho, que precisa mesmo de um sacode; anda trabalhando pouco.
– Há sororidade na honestidade entre Rita e Kika, o que não faz da conversa menos dura, menos difícil, nem as torna necessariamente amigas. Aliás, para além do contraste de personalidades entre elas, há nessa e em outras conversas femininas uma consciência de que é preciso botar as coisas na mesa para que a civilidade se construa. É uma antítese de quase todas as relações masculinas, baseadas em temores, ressentimentos trancafiados e tocaias (incluo inclusive o entrecho entre Norberto e Rachid, já que o vendeiro escondeu do libanês o quanto pôde a situação com Iolanda).
– Recompensa comovente o resgate da aliança de Sandra, junto com a de João Pedro nas mãos de Maria Santa. Aquele plano detalhe do anel sob a água era pista, não estava ali à toa. É desconcertante o plano final, em close, da mãe que assiste a felicidade (união entre vida e destino) do filho; principalmente por conta do sorriso de Maria Santa, que poderia escancarar riso, mas silencia, que poderia soluçar choro, mas engole.
185.
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186.
– Aurora cobra de Inocêncio uma explicação (sobre a perseguição ao Bumba) e a cena começa com a câmera baixa e longínqua, captando o casal a dois cômodos de distância. A composição se torna ainda mais austera pelo reflexo dos arcos no piso polido. A imagem encastela Inocêncio, ainda que a fazenda de Aurora esteja mais para palácio do que para castelo. De qualquer forma, Inocêncio é o homem da casa-grande, aquela cujas portas estão sempre abertas, pois a construção física e simbólica, por si só, provoca o respeito temeroso.
– Boa a decupagem que isola Lívio num canto da venda, mantendo-o apartado da entrada de Egídio. Isso porque Egídio se coloca no centro do espaço e parece que irá tomá-lo, mas quando ele se aproxima de Lívio para ameaçá-lo, a câmera faz um over the shoulder na altura de Brichtta, o que destaca a estatura de Breno da Mata. O pastor retribui a ameaça e, literalmente, cresce contra o coronel. A cena termina com Lú e Rachid se movimentando para completar o cerco a Egídio, que perde a batalha.
“— Tu acha bom matar gente? Tu não sente nada? Nada por dentro? O negro Damião está sentindo. Antes nunca sentia nada.” O trecho é sobre o Damião de Terras do sem-fim, de Jorge Amado, mas cabe à consciência de Damião diante de Tião e Joana. Ele sente e entende que são da mesma classe, compreensão que o poder da arma antes distorcia.
– Na época da pesquisa, Gilberto, meu orientador, me disse — “esse diabinho é Exu”. Pois bem, isso agora é dado e consagrado pela boca de Inácia, que conta a Inocêncio que a imagem lhe fora dada por um mensageiro de Exu. Sem essa proteção, Inocêncio parte para conter os danos: pede que Tião e Joana não comentem a garrafa quebrada. O coronel sabe que poder se constrói pelo simbólico, que por sua vez, também é uma construção e, em certa medida, uma ilusão. Ao perder esses objetos da fé, Inocêncio luta para que se mantenha a crença nos pactos que o fazem “intocável”, que resguardam vida e imagem desse homem.
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187.
– Inocêncio repara a ironia do diabinho aparecer justamente para Joana (que nunca quis o cramulhão), mas logo duvida da história dela. Especula que Joana possa ter mentido por vingança; justo ela que havia reconhecido que o coronel não é mentiroso (ao menos não nesse caso). No fundo, Inocêncio nega a si mesmo um fato: ele não é o único com o poder de fazer dos objetos simbólicos lâmpadas mágicas.
– Também não tem mais o poder de chamar Maria Santa; agora, é João Pedro quem encontra a mãe. É uma transferência que complexifica a relação vista na trama original, já que, pela perspectiva paterna, é como se esse filho tirasse Maria Santa duas vezes de José Inocêncio — no parto e agora, em espírito. Se Mariana e João competem por Inocêncio como pai-patriarca (o pai idealizado), João Pedro disputa com o pai essa mãe ideal, Santa no nome e na forma como se configura. Na conversa entre mãe e filho, Maria Santa deixa escapar o destino de Inocêncio: pedir perdão é o que resta ao conquistador, porque é incontornável aos conquistadores se apossarem, julgarem-se mais poderosos e, com isso, tolherem outros a quem julgam mais fracos. Nessa jornada em que compreenderá que não é Deus, o final de Inocêncio será descobrir que é falho. Um homem, portanto.
– A carta de Marianinha retorna quando parecia que era um conflito acabado. A vantagem de fazer uma releitura é justamente essa de poder olhar para as peças originais e entender as que foram bem usadas, mal-usadas ou usadas no tempo errado. A progressão desse terço final da trama é melhor do que a da original por isso, porque Bruno Luperi criou novas peças, mas guardou outras, antigas, reposicionadas para abrirem conflitos e tarefas nesta reta final.
– É o caso de Lilith, que chega buscando a memória de Jacutinga, essa personagem tão misteriosa, tão lacunar. Jacutinga existe a partir de um paradoxo: ao mesmo tempo que vive (nesta e na anterior) pela boca dos personagens, é essa imagem que não mais aparece; partiu sem dizer para onde ou porquê. A apresentação dessa nova personagem adensa a mulher invisível, que foi mãe de tantas, menos desta que pariu. Na falta de sua história, Lilith busca preencher esses vazios com as memórias de Norberto e Morena, a mãe de todos, que roda com ela pela casa, de braços dados, como se apresentasse a sanfoneira à mãe. Morena é quem traduz o sentido da saudade de Norberto, quem nos explica que a saudade de um pode reconstruir a história de outro. Portanto, não é um sentimento de vazio, mas de vontade de preencher de alguma forma, de qualquer forma.
– Impagável João Pedro escutando Zinha como aquele irmão meio sem paciência, mas que tem que cumprir suas obrigações.
188.
– “Terra é sempre terra”, já dizia o título do filme de Tom Payne, produzido pela Vera Cruz. O arco de Eliana fez dela a personificação dessa crença: para equiparar-se aos coronéis, ela diz que renuncia aos bens (fruto das lavouras), mas não à matéria-prima — não abre mão de um palmo de terra. O palmo surge como medida simbólica, ainda que haja, na novela, a reiteração do palmo de Tião, sem-terra cuja mão, ironicamente, é a que mais aparece sobre o solo. Em Renascer, a disputa pela terra configura essa triangulação entre uma hegemonia (local), gênero e classe social. Para Tião, a terra é matéria, o mundo em sua concretude; para Eliana, é representação, significado que ela usa para iludir outros, mas, principalmente, a si mesma. Mais curioso é o uso que Egídio faz da terra: para o vilão, ela inexiste; a questão ali não é a depredação, mas o absoluto desinteresse e abandono. Para Egídio, a terra é mero sustentáculo da rivalidade viril, talvez a única coisa que mantenha vivo o pica-pau. É isso que Inocêncio parece compreender ao final do travelling que começa avançando sobre ele e Egídio, mas termina sobre o rosto do protagonista, duro, analítico, descobrindo que sua sombra, sombra de Renascer, é esse coronel de pura pulsão da morte.
– As roupas nos varais eram objetos cênicos importantes em 1993, principalmente nessa função de suporte de luz e sombra, como na cena em que a silhueta de Damião surge ao lado da imagem de Ritinha. A sombra dura pouco; Ritinha trata de desfazê-la ao correr o lençol para o lado, mediando a imagem do jagunço, controlando a situação. Damião até tenta cercá-la, mas Rita encontra apoio entre a corda e a câmera, que trata de reenquadrá-la para que ela cresça imageticamente, para que fique em pé de igualdade com o brutamontes. Ela ganha o jogo usando Eliana como peça à espreita, lá nos cafundós do plano. Quando diz que não tem dona, Damião solta a frase com uma espécie de ressentimento de quem sabe que mente para si, ecoando, de certa forma, a ação da própria Eliana.
– A câmera passa pelo Jequitibá, pela lápide e, por fim, encontra o nome de Maria Santa escrito na carta estendida (restituição do nome desbotado na cruz), na caligrafia de outro fantasma. O acorde retumba no justo ponto em que o olhar encontra essa escrita, que remete a uma vida e se destina à outra, ambas mortas quando a carta finalmente chega ao destinatário. Essa memória materializada (cujo conteúdo ainda desconhecemos) nasce agora a José Inocêncio, o regulador de todas as histórias, que ressuscitará o ritual popular de renascimento. Essa é a contradição de José Inocêncio: ele deseja a morte para reencontrar Maria Santa, mas tem pulsão pelas vidas, sejam elas plantadas ou contadas, presentes ou lembradas. Talvez o Bumba volte porque nascer e morrer seja um mesmo nó nessa encruzilhada.
– Amizades masculinas sempre estiveram nas telenovelas (e sempre foram bem representadas no universo de Benedito Ruy Barbosa), mas não tenho memória recente de uma como esta entre Norberto e Rachid. Não há qualquer indício romântico ou tensão sexual entre eles (nem no subtexto), mas a possibilidade da separação — por conta das pequenas deslealdades carregadas de boas intenções — ganha texto e tela de uma trama de amor (porque não deixa de sê-la, ainda que num contexto de amor amigo). O sofrimento pela ruptura dessa amizade é análogo a um término amoroso digno de plot principal, com direito a olhos úmidos (de Norberto) e silêncios esquivantes (de Rachid). Desponta como conflito raro no desfecho dessa dupla tão singular, responsável por abrir brechas numa novela de masculinidades padrões.
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– A carta de Marianinha volta e acorda o Bumba, que ocupa o lugar da Santa; na verdade, trocam de posições, já que a imagem está na velha casa do miolo do Boi. Quando a cabeça encara os netos Josés e o João, a câmera engana em um plongée que parece uma subjetiva da máscara, mas não é; ou seja, há um ponto de vista maior, acima do boi. É João Pedro quem desprega a cabeça do altar, tirando-a da posição sacra para, em outra cena, encará-la de frente, entre os travellings ins que prenunciam as confrontações vindouras, quando a roda bumbar. João enfrenta o Boi parado, protegendo-se com outro objeto simbólico — a manta-manto, que aquecia a mãe, coroava o pai, e, agora, é herança antecipada, conquistada em vida. Inocêncio planeja a volta do Boi para encerrar um ciclo, sem explicitar se tem consciência de que será o último, de que não haverá outra aurora. Entende que o festejo é o que entrelaça todos os destinos, tanto que pede que Rachid e Mariana não partam antes do Bumba interligar as fazendas amigas e inimigas. Conto de origem pecuária, o Boi é o anti-Jequitibá, o anti-falo; não se trata de símbolo erguido e enraizado, mas de cultura movente e oscilante entre a ciranda e a procissão. Um renasce; outro, sustenta uma vida. O Boi é castrado de língua, mas isso não o impede de bufar para Teca, compondo a cena mais impressionante do capítulo, síntese do tipo de realismo-mágico de Renascer.
191.
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192.
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193.
– Como bem observa Norberto, Delegado Nórcia toma um sabão de Mariana e sai afiado para cima de Egídio (aliás, se frequentasse a venda, o delegado já estaria com o caso resolvido). A cena entre o coronel e a lei é dessas que mexem na válvula da panela de vez em quando para aliviar a pressão, mas só o bastante para que a cena não exploda. Edmilson Barros imprime um tom passivo-agressivo, com uma pitada de deboche, no homem público que, com seu pequeno poder, saboreia o jogo de gato e rato com o dono da porteira. E que bom que temos um delegado, porque se dependesse de Sandra, a conclusão do caso seria que Inocêncio se “autoatocaiou”.
– Eliana virou coronela antes da hora e, sem notar, perdeu o posto. Agora, avança sobre Mariana na posição de jagunça, com a rédea curta do colar que não é coleira, mas que Egídio fez questão de assim transformar. Os interesses de Eliana são os interesses do coronel, mas também os de Damião, o jagunço oficial, dono do coração. Eliana acaba duplamente cooptada, pelos “negócios” e pelo sentimento. Nos dois casos, por homens que, de diferentes formas, são detentores de poderes e covardias.
– Enquanto isso, o arco de Mariana é classiquíssimo: chegou ali em busca de proteção e assume para si o posto de protetora. Ela usurpa os códigos de virilidade desse universo sem se desfazer de sua identidade (diferente de Eliana, que encarou esses códigos com tanta frontalidade que acabou engolida). Mariana vai pelas bordas, como bem disse a ex-amiga.
– Lilith é um acerto: primeiro, porque concretiza o conflito de Norberto, que antes era interno, não configurava arco externo. Também porque traz contradição à Jacutinga, essa “mãe de todos”, que deixa a casa que a todos acolhe. Norberto nos prepara: “vai ser com emoção”. A cena revela que, mesmo como instância narrativa inferior (à câmera, narradora grande imagista, principal), Norberto conseguiu nos enganar: passou a novela nos convencendo de que viveu um amor recíproco com Jacutinga, mas, diante da filha que cobra uma verdade, entrega que, talvez, Jacutinga tenha tido, por ele, amizade, gratidão… Pena. Pequena tragédia — que abre uma nova dimensão ao personagem — essa crença hesitante de que, talvez, o grande amor tenha sido não paixão, mas compaixão. Nachtergaele modula o texto entre a emoção que engole palavras (“caipira”, por exemplo, sai pela metade) e essa variação do tempo e da empostação que ele costuma salpicar em algumas linhas (“eu lá tenho cacife para isso?!”). O grande momento, no entanto, é aquele que vira o beat da cena e do coração: pois é na altura do coração de Lilith que Norberto estende o braço, colocando a mão como anteparo às palavras (justo ele, homem delas). É nessa encenação-cordão, que afasta e interliga, que a sanfoneira derruba a verdade (e Lucy Alves faz como uma expiração de alívio): talvez seja filha dele. De qualquer forma, se torna. Paternidade colocada ao homem “onipresente”, que dá à filha o amor conhecido apenas pela contação das histórias, e abre outra lacuna nessa mãe-mistério, ausente das imagens, viva na memória. O desfecho da cena é anti-Renascer 1993: se naquela, a melancolia se alastrava como erva-daninha pelos áridos capítulos finais, aqui o tom é de uma ternura transbordante, condizente a essa Renascer úmida, verde.
194.
– Inocêncio chega à fazenda refletido no retrovisor, que o duplica em duas dimensões. Em ambas, é imagem que vem de trás, do passado, contraposta, no quadro, à fazenda à frente, presente, futuro, permanência. Os homens leais — João, Bento e Deocleciano — marcham em câmera lenta para recebê-lo. A paraplegia transforma a decupagem: a câmera se coloca à altura do coronel; às vezes, rente ao chão. A casa ganha novos pontos de vista nos últimos dias de José Inocêncio.
– Pequena genialidade gestual: Egídio revida a ironia de Norberto com uma ameaça inesperada — ele tenta abotoar a camisa do vendeiro, refazendo, na camada denotativa (na ação), o dito simbólico “abotoar o paletó”. Norberto, por sua vez, se desvencilha como se espantasse um inseto. Aliás, o vilão está tão vivo que flagra a quebra da 4ª parede e estica a cabeça para nos bisbilhotar do lado de cá.
– A câmera se deixa afetar: para encontrar o instável Egídio, faz uma descida num drone também descompensado; o voo vai alterando a profundidade até pousar ao lado do coronel, que comemora ter “matado” Inocêncio da cintura para baixo (a castração como castigo nesse reino fálico). Espiritualizadas, Inácia e Teca aparecem em outro plano; quase fantasmagorias refletidas no vidro da janela que, por sua vez, recorta os rostos nos rejuntes dos azulejos. Uma dimensão contínua, reflexiva, colocada diante de uma matéria concreta e intrincada — o mundo.
– Mariana, essa incógnita, se expõe diante da santa num sofrimento desmascarado, que exige um outro patamar de dor do rosto Theresa Fonseca; ela não sofre mais por algo que lhe escapou, mas pelo que perde à vista, tendo que rezar para que essa perda acabe com o suplício de Inocêncio. Na montagem paralela, o coronel tenta se levantar da cadeira de rodas, posicionado no centro do alpendre, com as linhas da escadaria tensionado esse esforço. A entrada da casa-grande não é mais lugar de onde enxerga seu reino, mas o limite que lhe resta. Mais adiante, quando ele vai até uma janela, a câmera baixa corta Mariana durante a entrada, compondo um dos quadros mais bonitos desse casal — o rei confinado e a companheira que é sem nunca ter sido, sem face, na sala de jantar, ocupados em nascer e morrer.
– Aurora se apoia na cadeira para beijar Inocêncio, mas Mariana atrapalha e o beijo acaba se tornando uma despedida terna, feita no carinho nas testas que se tocam, ato final dessa relação madura de companheirismo. Que não deixem mais que Malu Mader fique tanto tempo afastada das novelas.
195.
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196.
– Embora capítulos finais costumem ser apressados, a última semana da novela original já não tinha tantas plots a serem fechadas, o que abria tempo a um conjunto de cenas em que José Inocêncio se despedia da fazenda, transitando entre os espaços e reencontrando a vida daquele lugar nas pequenas coisas. O penúltimo capítulo da atual versão, por outro lado, não escapou de uma pressa costumeira aos últimos capítulos (na verdade, a Renascer de 1993 é que era exceção). A causa mais evidente me parece ser o universo mais inchado de personagens e a postergação do desfecho de Egídio (e toda a revelação envolvendo Mariana). Isso propiciou uma mudança curiosa: mais emocionante do que a cena do acidente de Inocêncio ou do que João Pedro diante do Jequitibá, foi a despedida do coronel de seu arqui-inimigo, assumindo, diante do caixão, o sofrimento causado por Egídio; uma dor estendida, persistente, pior até do que a depelagem episódica encomendada por Firmino. É um momento importante de diferenciação desse protagonismo se comparado ao anterior; Inocêncio não é mais um ser elevado, personificação das forças da natureza, cujo senso de justiça pode ser relativizado; é um sobrevivente que não está imune às dores e cicatrizes, sejam do corpo ou da alma. Mesmo morto, Egídio flagra a fraqueza do rival. Não à toa, sorri.
– Essa necessidade de uma economia narrativa abre uma escolha narrativa/estilística ousada, com prós e contras. Falo do sumário narrativo de Norberto, que conta os eventos ocorridos numa passagem de tempo de seis meses. A parte interessante da escolha é o posicionamento estilístico Norberto como narrador metadiegético, colocado na ponta oposta à nossa, ao fundo das imagens — estilizadas com cores e texturas de uma TV de tubo — que dramatizam o que é narrado. Norberto, portanto, vê as imagens desse lugar interno, mas sem nunca se tornar completamente uma voz over; ele permanece imagem, ainda que se coloque como uma mediação atrás daquela que é intermediária. Mais do que isso, pede que a novela se encerre, como se pressentisse o epílogo trágico, como se quisesse se abster de comentar a morte de José Inocêncio. O prejuízo de tal escolha é que, a meu ver, ela perdurou demais, diminuindo uma cena que me parecia fundamental — o acerto de contas entre Iolanda e Eliana. A opção talvez tenha se dado para aumentar a cena da viúva de Egídio com José Inocêncio; o que era um encontro breve na original, serve, agora, para reapresentar Eliana sob esse novo status de coronela reconhecida, tratada de igual para igual pelo adversário. Mais do que isso, Eliana assume enxergar em José Inocêncio um mentor, ainda que nesta a dissimulações dela soem como uma dissonância a esse mestre; ela estaria mais afinada ao Inocêncio de moral maleável da novela anterior. Aquele que era Inocêncio, mas não muito.
197.
https://www.youtube.com/watch?v=ifwEOSbBu1Y&t=17s