por Álvaro André Zeini Cruz

Apresentação
Esta semana, a Globo anunciou oficialmente, na Rio 2C, o remake de Renascer, novela das oito de Benedito Ruy Barbosa, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e exibida entre 8 de março e 14 de agosto de 1993.
Renascer foi meu objeto de pesquisa de doutorado, que resultou na tese intitulada Renascer: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira.
Já há algum tempo, percebo certa curiosidade pela novela e acho que esse interesse se dá por diferentes motivos. Alguns deles: a nostalgia como valor em voga no audiovisual, o fato de Renascer entremear dois dos trabalhos mais lembrados de Barbosa — Pantanal (1990) e O Rei do Gado (1996) —, além de ser a estreia de Luiz Fernando Carvalho na direção geral de uma telenovela.
Por conta desses “renasceres” acerca da novela, decidi remexer na tese, tentando sintetizar algumas das principais questões por mim trabalhadas, readequando-as à linguagem das redes. O objetivo é produzir um material que será dividido numa série de posts, que serão veiculados tanto no meu Instagram pessoal, quanto nas páginas da Revista Pós-créditos.
Enquanto a nova versão não chega, voltemos à saga original de José Inocêncio (que está na Globoplay) e seus quatro filhos — três Josés e um João…
Bem-vindos ao Projeto Renascer.

Parte 2
Renascer está entre minhas mais antigas memórias televisivas: a imagem de Antônio Fagundes numa cadeira de rodas, transitando pelas terras de cacau de seu personagem, na televisão de meus avós. Na sala de estar, uma rotina bem brasileira: minha família (como tantas outras) assistia ao coronel José Inocêncio desafiar aqueles “confins de mundo” vastos e misteriosos, que marcaram o Álvaro de 5 anos de idade.
A reprise do canal Viva, em 2012, possibilitou que eu voltasse à Renascer e suprisse as lacunas em torno daquela imagem perdida da infância. A desconfiança de que aquela era uma trama especial se confirmou com o deslumbramento pelas imagens baseadas num espaço e tempo muito singulares, diferentes das de tantas outras novelas.
Quando decidi estudar Renascer, parti, então, do que havia me encantado — o estilo. Segundo o teórico do cinema David Bordwell, o estilo é “a textura das imagens e sons” (2013), “porta de entrada para […] nos movermos na trama, no tema, no sentimento” (2008). De forma mais pragmática, pode-se dizer que o estilo se constrói a partir da direção (da mise en scène, mas isso é assunto para mais adiante), da montagem e do som.
Na televisão, o estudo do estilo tem sido subestimado. O teórico Jeremy B. Butler atribui esse descaso ao fato de que a TV tem uma estética da espontaneidade. Isso não significa que as imagens televisivas sejam realmente espontâneas, muito menos que tenham que parecer assim (e, apesar de seguirem um estilo recorrente, as telenovelas estão longe de serem espontâneas!). Na História das novelas, há títulos que seguiram determinados padrões, assim como há os que os romperam.
Com muitas cenas externas, e uma decupagem baseada em planos longos e movimentos de câmera, Renascer esteve entre as tramas que romperam certos padrões das telenovelas (e não só nos primeiros capítulos, como de costume). Esse estilo próprio serviu para apresentar um universo narrativo incomum de se ver (até então) no horário das oito.
Mas a trama é assunto para um próximo post.
Glossário:
Decupagem: é o processo no qual o diretor transforma o roteiro em planos, que irão compor as cenas. Decupar envolve a decisão de onde colocar a câmera (e em quantas “vistas”) e por quanto tempo deixá-la até o corte (isto é, até o próximo plano).
Montagem: processo realizado ao final da gravação, em que são escolhidos e organizados os melhores planos para “montar” a narrativa. No caso da novela, planos montam cenas, que montam capítulos. Também conhecida como “edição”.
Plano: unidade mínima da imagem em movimento. Envolve o enquadramento (distância entre a câmera e o ator) e o tempo de registro da ação (há planos curtíssimos e muito longos, muitas vezes chamados de planos-sequências).
Bibliografia:
BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. Campinas: Papirus, 2008.
___________, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Unicamp, 2013.
BUTLER, Jeremy G. Television style. Londres: Routledge, 2010. Kindle ed.

Parte 3
Antes de irmos à trama de Renascer, precisamos contextualizá-la considerando a importância da telenovela na cultura brasileira. No ar diariamente desde os anos 1960 e assistida por milhões de espectadores (aqui e no mundo todo), a telenovela tem variado entre espelho e retrato da sociedade brasileira.
Nem sempre foi assim: as primeiras novelas nada tinham a ver conosco (basta dar um Google em O Sheik de Agadir para entender do que estou falando). Mas, a partir de Beto Rockfeller (1968), elas estiveram mais atentas a personagens e questões da realidade brasileira, como as diferenças sociais e a vida nas cidades.
A urbanização, aliás, foi tema recorrente nas novelas das oito: enquanto o horário das seis priorizava tramas rurais e adaptações literárias, e o das sete, histórias cômicas e ligeiras, a novela das oito trabalhou junto ao Jornal Nacional para construir a “identidade nacional” de um país que se modernizava.
O conceito de “identidade nacional” se relaciona com o que o autor Benedict Anderson (2008) chama de “comunidade imaginada”. Numa síntese já aplicada ao nosso contexto, trata-se de uma construção cultural que cria a ilusão de que uma nação como o Brasil é uma comunidade horizontal, onde mesmo os que não se conhecem, se reconhecem. No nosso caso, a cultura é responsável por imaginar — e mostrar! — um país em que o tamanho continental e o caráter pluricultural são atenuados para que se crie uma impressão de unidade e modernidade.
É preciso assinalar que essa identidade nacional televisionada é complexa: se por um lado, permite com que nos reconheçamos na tela, por outro, promove agendamentos — e, às vezes, simplificações — de temas, questões, culturas. A uniformização e a modernização, por exemplo, foram valores sublinhados em nossa identidade nacional para atenderem à ditadura militar — afinal, um país que se vê a partir de “ordem e progresso” é mais fácil de ser controlado.
Mas a telenovela é um corpo complexo, uma vitrine de comportamentos, desejos e consumos (HAMBURGER, 2011), que negocia entre ser uma “fantasia reconfortante” (BALOGH, 2002) e “um fórum de debates do país” (LOPES, 2003). A palavra negociação não é colocada aqui à toa: ela é valor central na abordagem dos Estudos Culturais, que empresto em minha análise de Renascer.
Nessa perspectiva, a telenovela não é só boazinha ou só malvada, só progressista ou só conservadora. Ela é de tudo um pouco, porque negocia antenada com a sociedade e com a própria televisão. Renascer, por exemplo, nasce de uma negociação com a trama anterior de Benedito Ruy Barbosa — Pantanal. Mas isso é história para depois…
Por ora, fiquemos com as palavras de Sr. Rachid, personagem Luiz Carlos Arutim em Renascer: “novela é muito importante”.
Bibliografia:
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008.
BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonho em doses homeopáticas. São Paulo, SP: EDUSP, 2002.
HAMBURGER, Esther. Novelas e interpretações do Brasil. Lua Nova, São Paulo, v. 82, p.61-86, jan. 2011.
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação e Educação, São Paulo, v. 26, p.17-34, jan. 2003.
XAVIER, Nilson. Teledramaturgia. Disponível em: http://teledramaturgia.com.br. Acesso em: 18 abr. 2023.

Parte 4
Recentemente, em um evento acadêmico, apresentei a comunicação Pantanal: textos e contextos, traumas e tratamentos. Escolhi esse título tentando dar conta não só da trama, mas do trauma (e das subsequentes remediações) que a primeira versão de Pantanal (1990) representou para a TV Globo.
Escrita por Benedito Ruy Barbosa — então autor do horário das seis —, a sinopse de Pantanal foi pensada para o horário nobre da Globo, mas a principal emissora do país rejeitou o projeto alegando a dificuldade de realizá-lo. Contudo, uma emissora menor, a Rede Manchete (1983-1999), topou a empreitada e produziu a saga de José Leôncio (Claudio Marzo) e Juma Marruá (Cristiana Oliveira), que ia ao ar assim que a novela das oito Rainha da Sucata acabava. Foi um sucesso!
Pantanal marca o início de uma década em que a Globo não perde sua hegemonia, mas passa a viver uma série de instabilidades na audiência (o livro A Deusa Ferida narra essa história). O êxito da novela foi atribuído à aproximação de uma linguagem cinematográfica, que, a partir de uma câmera que passeava “lenta e amorosamente sobre os amanheceres e entardeceres do Pantanal” (BALOGH in SOUZA, 1995, p. 42), rompia “com o esquema fácil da novela em estúdio” (BECKER in RIBEIRO; SACRAMENTO; ROXO, 2010, p. 243).
A primeira versão de Pantanal rompeu também com o que Raymond Williams (2016) chama de fluxo televisivo. Para o acadêmico britânico, a televisão se organiza num fluxo audiovisual que se retroalimenta a partir da fragmentação e de uma “intertextualidade delirante, porém calculada” (SOBRINHO, 2016), cujo objetivo é fidelizar o espectador. Entretanto, vez ou outra, o espectador precisa ser surpreendido com o rompimento desse fluxo e foi isso que Pantanal fez frente às habituais novelas urbanas no horário nobre (Roque Santeiro e Tieta foram exceções nesse quadro).
Para além do contexto televisivo, Pantanal entrou no ar no mesmo mês em que o então presidente Fernando Collor de Mello confiscou as poupanças de milhões de brasileiros, inaugurando um momento delicado do país. Diante da decepção com a modernidade prometida por Collor, as paisagens atravessadas por sucuris, onças e tuiuiús (eles não podem faltar em textos sobre Pantanal!) serviram como escapismo ao público, que estava sem suas economias e via a inflação invadir os supermercados e as imagens jornalísticas.
Mas o que isso tudo tem a ver com Renascer?! Oras, Pantanal não só garantiu a volta de Benedito à Globo, como sua promoção ao horário nobre. E apesar de situar essa nova trama na região cacaueira de Ilhéus, a história de José Inocêncio e seus filhos ecoa personagens e conflitos da saga familiar anterior (tanto que várias matérias jornalísticas sobre o remake recente apontaram essas semelhanças).
Em resumo, Renascer assimilou a bem-sucedida experiência de Pantanal, readequando-a ao “Padrão Globo de Qualidade”. Além disso, propôs uma linguagem ainda mais arriscada, experimentando um maneirismo estilístico que serviu para que a Globo demonstrasse superar os desafios da novela da Manchete (mas isso é história para outra hora).
Um dos maiores sucessos da Globo na década de 1990, Renascer tentou remediar o trauma de ter negado Pantanal, mas a “cura” mesmo só veio recentemente, com a versão recém-exibida, estrelada por Marcos Palmeira. E que, de novo, abre brecha para uma nova Renascer…
Glossário:
Intertextualidade: Diálogo que há, dentro de um texto (que pode ser literário, audiovisual etc.), com textos anteriores, de forma implícita ou explícita, a partir de réplica ou absorção, operando a afirmativa, recusa ou crise desses outros textos.
Bibliografia:
BALOGH, Anna Maria. Minha terra tem Pantanal onde canta o tuiuiú: a guerra de audiência na tv brasileira no início dos anos 90. In: SOUZA, Mauro Wilton de. Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 135-150.
BECKER, Beatriz. O Sucesso da telenovela “Pantanal” e as novas formas de ficção televisiva. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart; SACRAMENTO, Igor; ROXO, Marco (org.). História da televisão no Brasil: do início aos dias de hoje. São Paulo, SP: Contexto, 2010.
BORELLI, Silvia Helena Simões; PRIOLLI, Gabriel. A Deusa ferida: porque a Rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência. São Paulo: Summus, 2010.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Editora Ática, 2007.
SOBRINHO, Gilberto Alexandre. Fluxo: para a compreensão da programação televisiva. Rebeca, São Paulo, v. 5, n. 2, p.1-7, dez. 2016.
WILLIAMS, Raymond. Televisão: tecnologia e forma cultural. Belo Horizonte: PUC Minas, 2016.
XAVIER, Nilson. Teledramaturgia. Disponível em: http://teledramaturgia.com.br. Acesso em: 23 abr. 2023.

Parte 5
Em “Dramaturgia de televisão” (2012), a autora Renata Pallottini compara a telenovela a uma árvore: enquanto a trama principal é uma espécie de tronco, as chamadas tramas paralelas são como galhos que ajudam a novela a crescer por muitos e muitos capítulos.
Renascer teve (em sua exibição original) 216 capítulos, e, curiosamente, começou sua história com uma árvore — o Jequitibá-Rei. Foi diante dele que o jovem José Inocêncio (Leonardo Vieira) fincou um facão e fez um pacto; jurou que enquanto o facão estivesse na terra diante do Jequitibá, ele e a árvore não morreriam “nem de morte matada, nem de morte morrida”.
A apresentação de José Inocêncio é decupada — isto é, pensada em imagens e sons — apresentando esse protagonista de forma enigmática: ele aparece como uma silhueta em meio à luz da floresta. Quando vê o imponente tronco do Jequitibá, a câmera subjetiva (que assume o olhar do personagem) angula gradualmente para cima (o que chamamos de contra-plongée), revelando a imensidão do Jequitibá. O rosto de José Inocêncio se sobrepõe ao Jequitibá (numa técnica de montagem a qual chamamos de “fusão”) e a altura da árvore é reiterada por uma câmera à pino (de cima), rente ao tronco que se estende até José Inocêncio, lá embaixo…
Essa primeira cena já instaura o western, gênero que está nas novelas desde Irmãos Coragem (1970), e que tem como um dos temas o confronto entre o Homem e a Natureza (BAZIN, 1991). Mas novela é sempre melodrama, e os acontecimentos do mundo não demoram a se contrapor ao herói (CANNITO; SARAIVA, 2004). Assim, mal termina o discurso e o “coronelzinho” tem esse compromisso testado: é pego e “depelado” numa tocaia preparada pelos capangas do Coronel Belarmino (José Wilker). Mas o pacto está firmado, e José Inocêncio é salvo e costurado pelo mascate libanês Rachid (Luiz Carlos Arutim).
Salvo e “renascido”, José Inocêncio agradece ao “turco”, que, ao corrigi-lo, diz o primeiro bordão de Renascer — “nós não é turco. Nós é libanês”. Fim do primeiro bloco. Hora de conhecer Maria Santa.
No entanto, antes de conhecermos o rosto de Maria Santa (Patrícia França), conhecemos o olhar dela; isso porque nossa identificação com a moça começa por seu confinamento. Mantida dentro de casa pelo pai Venâncio (Cacá Carvalho), ela espia a festa do Bumba-meu-boi por uma janelinha. Mas o pai, miolo do Boi, é brabo e censura a filha só de olhar!
Mas quando o festejo sai em procissão, Maria Santa acompanha e, de fita no cabelo, roda para encontrar o olhar de… José Inocêncio. A montagem rítmica, em que o movimento dentro do quadro impulsiona o corte de um quadro a outro (EISENSTEIN, 1990), combina o rodopiar da saia e o giro do Boi, que ataca o coronelzinho em suas próprias terras. Um novo conflito surge: a paixão é proibida pelo pai, agregado de Belarmino. Da contenda pela terra surge esse “galho” do conflito romântico, que sustentará toda a primeira fase.
Sim, como Pantanal, Renascer é dividida em duas fases (mas o então vice-presidente de operações da Globo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, decidiu que esta só teria cinco capítulos). Estrelada por Leonardo Vieira e Patrícia França, a primeira fase de Renascer narra o início das aventuras de José Inocêncio, junto a seus aliados, para a consolidação de seu império do cacau. Ali nascem seus quatro filhos; ali, morre Maria Santa. De qualquer forma, o sucesso do casal foi tanto que os atores logo protagonizaram outra novela juntos — Sonho Meu, às seis da tarde.
Bibliografia:
BAZIN, André. O cinema – ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
CANNITO, Newton; Leandro, SARAIVA. Manual de roteiro ou Manuel: o primo pobre dos manuais de cinema e TV. São Paulo: Conrad, 2004.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, c1990.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Perspectiva, 2012.
Parte 6

Além do conflito romântico entre José Inocêncio (Leonardo Vieira) e Maria Santa (Patrícia Santa), que tem como empecilho o pai da moça Venâncio (Cacá Carvalho), a primeira fase de Renascer é marcada pela disputa de terras entre o protagonista e Berlamino, personagem de José Wilker que, numa participação de poucos capítulos, emplacou o inesquecível bordão “é justo, é muito justo, é justíssimo” (uma ironia na boca de um vilão que faz as próprias “leis” na bala).
No gancho entre o 2° e o 3° capítulo de Renascer, José Inocêncio sofre um atentado pelas mãos de Belarmino, mas o pacto com o Jequitibá e o corpo fechado pelo cramunhão na garrafa (sim, como o de Pantanal) faz com que o coronelzinho sobreviva. Inocêncio, então, arma uma arapuca engenhosa para contra-atacar: finge a própria morte, encena o velório e manda que seus fiéis empregados Deocleciano (Leonardo Brício) e Jupará (Gésio Amadeu) convidem o assassino para “bebê-lo”. Lá, Belarmino confessa o atentado ao “morto”: “não existe corpo fechado, existe má pontaria”.
Esse falso velório de José Inocêncio marca uma das cenas mais tocantes da 1ª fase: o rito em que Deocleciano, Jupará, Inácia (Solange Couto) e os empregados circundam o caixão e a sala da casa cantando “Birin birin” (“meu sofrimento”), canção-lamento angolana que a pesquisadora Amanda Palomo Alves (2021) aponta como típica da tradição popular. A letra não deixa de ironizar as circunstâncias e os destinos desses dois rivais em cena.
Birin Birin
(Ai, ai)
Welelele
(O esperto só come uma vez)
Kisangela ngwetu ni mazundu
(Pergunta a quem recebeu o feitiço)
As aparições das canções de lamento e dos cantos de trabalho são representações da cultura popular sempre marcantes em Renascer. O acadêmico colombiano Jesús Martín-Barbero (1997) define a cultura popular como aquela que nasce espontaneamente em comunidades populares a partir do relato, da resistência e da solidariedade.
Assim, se o melodrama é um gênero que surge na cultura popular (e continua central na telenovela), Renascer vai se preocupar em representar ainda esse caráter pluricultural popular brasileiro, mostrando músicas e crenças de matriz africana e representando algo proeminente na nossa cultura — o sincretismo religioso (o próprio Jose Inocêncio fará essa exposição quando, a certa altura da trama, coloca juntas as duas imagens pelas quais tem devoção — uma Nossa Senhora Aparecida e a representação de um Exu).
A trama de tocaias trocadas entre os coronéis culmina neste 3° capítulo, mas reverberará na segunda fase com o surgimento de Mariana. Isso porque a mocinha ambígua de Adriana Esteves voltará, a princípio, para vingar a morte do avô Belarmino. Mariana acredita que José Inocêncio matou Belarmino; o coronel, por sua vez, negará o atentado fatal ao longo da novela. Ele e Mariana acabarão se casando, formando com João Pedro (Marcos Palmeira) o triângulo amoroso central da fase principal. Mas é justo, é mais que justo, é justíssimo que isso fique para outro post.
Bibliografia:
CRUZ, Álvaro André Zeini. Renascer: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira / Álvaro André Zeini Cruz. – Campinas, SP: [s.n.], 2018.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
PALOMO ALVES, A. (2021). “N’biri Birin” renasce: praticando a descolonização do currículo escolar a partir das canções do grupo “N’gola Ritmos” (1947-1959). Revista Crítica Histórica, 12(24), 200–221. https://doi.org/10.28998/rchv12n24.2021.0009
Parte 7

Na última semana, o jornalismo cultural televisivo percebeu um deslize do entretenimento da Globo na escalação de suas novelas. Isso porque a recém-estreada Terra e Paixão, de Walcyr Carrasco tem no cerne da trama a rejeição do pai Antonio La Selva (Tony Ramos) pelo filho Caio (Cauã Reymond), conflito que se repetirá na novela seguinte, uma vez que Renascer também narra a intolerância de José Inocêncio (Leonardo Vieira/Antônio Fagundes) a João Pedro (Pablo Sobral/Marcos Palmeira). Não para por aí: o ranço dos pais com os filhos envolve o fato de que as esposas morreram nos partos dessas crianças.
É fato que essa articulação de histórias tão parecidas é arriscada, ainda mais quando lembramos que Pantanal(2022) também apresentava uma relação do tipo: por mais que se parecesse com o pai, Tadeu (José Loreto), filho adotivo de José Leôncio (Marcos Palmeira), era preterido em prol de Joventino (Jesuíta Barbosa), filho gerado no matrimônio legítimo. A semelhança continua na recusa do pai pelo filho criado na roça, já que, tanto em Pantanalquanto em Renascer, são os filhos estudados, “dotores”, os primeiros pensados como sucessores do patriarca na manutenção das terras e do patrimônio.
Ao longo dessas novelas de Benedito esse preconceito paterno se desfaz (em Terra e Paixão, de Carrasco, ainda não dá para saber, mas o personagem de Tony Ramos tem tintas vilanescas que não havia nos outros). Em Renascer, nenhum dos filhos Josés de José Inocêncio terá o mesmo gosto ou o mesmo tino do pai para a vida (e a lida) nas plantações de cacau. João Pedro é o sucessor evidente; a identificação intrincada entre pai e filho fica explícita quando João (Pablo Sobral), ainda criança, descobre o facão aos pés do Jequitibá, mas confessa a José Inocêncio que não mexeu no objeto por ter medo do pai morrer. Essa descoberta será uma pista & recompensa importante para o desfecho da trama.


É João Pedro, inclusive, quem faz a transição da primeira para a segunda fase da novela, numa passagem de tempo bastante poética: depois de prometer ao pai que não revelará a existência do facão a ninguém, ele segue até os corredores que passam abaixo das barcaças de secagem do cacau. Antes de atravessar a passagem, brinca num balanço, como se despedisse da infância. Então, a montagem alterna o plano de João Pedro caminhando em direção à câmera (que, por sua vez, recua num movimento chamado travelling out) com a subjetiva dele; isto é, a visão do personagem, que encara a saída desse espaço. É numa dessas subjetivas que a câmera “se perde” para reencontrar João agora crescido (interpretado por Marcos Palmeira), mas ainda com a mania de segurar a medalhinha que leva no pescoço. Um homem de amuletos, de fé. Como o pai.
Quando João olha para trás, o balanço está vazio; a infância passou. O conflito entre pai e filho adultos se complicará com a chegada de Mariana (Adriana Esteves), personagem que merece um post próprio (logo mais). O quanto a trama de Renascer ecoará a de Terra e Paixão é difícil dizer, até porque a novela de Carrasco está só começando. De qualquer forma a coincidência nesse ponto de partida é dada e mais do que constatada; tanto que hoje (17/05/2023), alguns portais de entretenimento noticiaram que Bruno Luperi, autor do remake de Renascer, pediu o adiamento da trama. Se for verdade, Luperi tem razão: se historicamente a telenovela se flexiona entre “padrão” e “inovação”, essa proximidade de novelas rurais tão semelhantes pode dar a impressão de que a Globo está forçando a receita goela abaixo. E se os telespectadores enjoarem, podem querer quebrar esse fluxo…
Bibliografia:
CRUZ, Álvaro André Zeini. Renascer: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira / Álvaro André Zeini Cruz. – Campinas, SP: [s.n.], 2018.
PADIGLIONE, Cristina. Semelhança de ‘Terra e Paixão’ com ‘Renascer’ põe remake em risco. 2023. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/colunistas/cristina-padiglione/2023/05/semelhanca-de-terra-e-paixao-com-renascer-poe-remake-em-risco.shtml. Acesso em: 17 maio 2023.
Parte 8

No último post, fizemos (junto com João Pedro) a passagem da 1ª para a 2ª fase de Renascer. Mas, antes de ficarmos de vez na 2ª fase, vale relembrar os atores que deram vida aos personagens principais nos primeiros capítulos (e abrir as apostas — quem deve interpretá-los na 1ª fase no remake?).
LEONARDO VIEIRA – JOSÉ INOCÊNCIO
PATRÍCIA FRANÇA – MARIA SANTA
CACÁ CARVALHO – VENÂNCIO (O BUMBA)
JOSÉ WILKER – BELARMINO
BETHY ERTHAL – NENA
ANA LÚCIA TORRE – QUITÉRIA
LEONARDO BRÍCIO – DIOCLECIANO
CYRIA COENTRO – MORENA
GÉSIO AMADEU – JUPARÁ
RITA SANTANNA – FLOR
SOLANGE COUTO – INÁCIA
JOFRE SOARES – PADRE SANTO
LUÍS CARLOS ARUTIM – RACHID
NELSON XAVIER – NORBERTO
e FERNANDA MONTENEGRO – JACUTINGA
Entre este elenco, Patrícia França volta para pequenas aparições de Maria Santa na 2ª fase; Ana Lúcia Torre também faz uma participação. Fernanda Montenegro sai de cena no início da 2ª fase, enquanto o Padre Santos, de Jofre Soares, morre no 38º capítulo. Luís Carlos Arutim e Nelson Xavier participam dos dois momentos da trama. Na passagem de tempo, Leonardo Vieira, Solange Couto, Leonardo Brício e Cyria Coentro são substituídos, respectivamente, por Antônio Fagundes, Chica Xavier, Roberto Bonfim e Regina Dourado.
Parte 9 – O Fator Mariana

Há alguns meses se especula quem assumirá o papel de Mariana na refilmagem de Renascer; a imprensa já ventilou nomes como os de Alice Wegmann, Klara Castano e, agora, Mel Maia e Clara Moneke. A curiosidade é justificada: a personagem, que dividia o protagonismo com José Inocêncio (Antônio Fagundes), foi rejeitada pelo público. Isso marcou a carreira de sua intérprete original Adriana Esteves, que, em várias entrevistas, já relatou as dificuldades desse trabalho, incluindo uma depressão desencadeada na época.
Se o fator Mariana volta, desde já, como tema sensível na nova versão, originalmente, o problema em questão, me parece, era menos acerca da atriz e mais com relação à personagem: mocinha vingadora, Mariana é um tipo recorrente na nossa teledramaturgia, mas talvez o autor Benedito Ruy Barbosa tenha escolhido para ela o caminho menos óbvio (e, por isso, mais intrépido).
Digo isso porque considero que predominam dois padrões de protagonistas vingadoras nas nossas novelas (e esse é um insight tardio; não consta na minha pesquisa original). O primeiro tipo é herdeiro direto de Edmond Dantès, o marinheiro que, vítima de um plano ardiloso, é preso injustamente em O Conde de Monte Cristo; Nina (de Avenida Brasil) e Clara (de O Outro Lado do Paraíso) compõem essa linha, cuja matriz está no romance de Alexandre Dumas. Nesse sentido, apresentam-se como figuras ativas e devotadas a uma vingança baseada em planos intrincados (e com potencial catártico), capazes de atravessar mais de uma centena de capítulos.
O outro tipo recorrente — no qual Mariana se enquadra — é “descendente” de Heathcliff, o anti-herói de O Morro dos Ventos Uivantes. No romance de Emily Brontë, Heathcliff volta à cena para se vingar das privações e humilhações impostas por seu irmão de criação, e que resultaram na perda de seu grande amor. Sua vingança, no entanto, é errante, reativa e, sobretudo, mais baseada no ressentimento do que em qualquer senso de justiça ou reconstrução.
Apesar de não expor a amargura de Heathcliff, Mariana se assemelha a ele nessa posição de vingadora passiva, que permanece mais no campo do desejo do que da ação. O envolvimento dela num triângulo amoroso com pai e filho, a determinação frágil e a oscilação de seus objetivos fazem com que ela vacile entre rancores e dubiedades, que transformam a personagem numa incógnita escorregadia.
Desta forma, em 1993, a complexidade dessa protagonista, composta de enigmas e incertezas, abriu brecha para que Sandra (Luciana Braga) conquistasse o público com sua “mocinha” contemporânea e inequívoca, que tinha como enredo melodramático um irresistível Romeu e Julieta. Além dessa “usurpação” do protagonismo por uma personagem mais clássica, é preciso pontuar que Renascer retrata um ambiente predominantemente rural e masculino sob uma perspectiva curiosa e fascinada por esse universo. Isso, por si só, privilegia a identificação do público com os outros dois protagonistas que “regem” esse universo ao invés da empatia com Mariana, que surge como uma invasora incerta.
Nesse contexto, é preciso fazer justiça à interpretação de Adriana Esteves, que criou a Mariana que lhe fora proposta — algo entre “anja e diaba” (como dizia João Pedro, o terceiro protagonista). Espero que a nova versão não elimine as nuances da personagem, e que, ao invés de planificá-la, auxilie o público a entender Mariana como uma protagonista profunda, fora da curva. Por fim, espero para que a Globo escale uma atriz negra para o papel, agindo contra um racismo televisivo histórico em uma trama que demanda o protagonismo de um elenco negro. Torço para que Clara Moneke fique com Mariana.
Parte 10 – O Homem cordial

Se no post anterior (re)apresentamos Mariana, a polêmica protagonista vivida por Adriana Esteves, é hora de encontrar de uma vez por todas José Inocêncio, o coração de Renascer. O uso destacado da palavra “coração” é proposital: mais do que protagonista, José Inocêncio personifica um traço identitário da sociedade brasileira que Sérgio Buarque de Holanda define, em “Raízes do Brasil” (2016, primeira edição publicada em 1936), como “o homem cordial”.
O próprio autor explica que sua ideia de “cordial” nada tem de “bondoso”; segundo o historiador e sociólogo (que é pai de Chico Buarque), “o homem cordial” é aquele que privilegia “os laços de sangue e de coração”, mantidos, principalmente, através das convivências domésticas. Trata-se de uma identidade enraizada num Brasil predominantemente agrário e patriarcal, onde a proximidade imposta pela vida nas fazendas borrava os limites das relações sociais.
Essa proximidade criava o que o sociólogo Pedro Meira Monteiro (2015) chama de “zona superficial de confraternização”, e colaborava para que a percepção das diferenças de classe fosse “diluída” nessa impressão de intimidade, de pertencimento à “família”. Assim, aproveitando-se dessa “extensão” do núcleo familiar, o homem cordial encabeçava relações que deveriam pertencer à esfera pública, mas que, conduzidas e restritas ao âmbito privado, acabavam atendendo aos interesses (e dando mais poder) a uma elite agrária (precursora do slogan “o agro é pop”).
O protagonismo atenua esses defeitos “cordiais” de José Inocêncio, assim como o equilíbrio improvável que a personagem efetiva entre duas personalidades descritas por Holanda: ele encarna, ao mesmo tempo, dois tipos de colonizadores — o aventureiro e o trabalhador. Desta forma, o herói de Renascer surge como uma espécie de “colonizador ideal”. Também, como diz Maria Rita Kehl (2005), como um “pai ideal”: mais compreensivo (ou menos injusto; exceto com o filho João Pedro) e maleável ao que julga serem benesses da modernidade, esse “pai” dispõe-se a fazer pequenas concessões (considerando, talvez, sua própria sobrevivência como “homem cordial”), desde que seu “sertão cordial” (KEHL, 2016) permaneça como uma espécie de lugar seguro.
Nesse sentido, José Inocêncio permanece como o poder e a lei para os que o cercam, e a relação hostil que tem com Teodoro (Herson Capri) é um bom exemplo de uma “rivalidade cordial” (HOLANDA, 2016): ainda que seja entre tocaias, os coronéis preferem acertar a disputa de terras entre si, na esfera do privado. Ambos ficam muito incomodados quando o Delegado Olavo (Cecil Thiré) entra a cena para investigar os episódios violentos envolvendo a divergência entre os dois. Para esses “homens cordiais”, a disputa — e os crimes que se desdobram dela — é assunto deles, não do Estado.
Renata Pallottini (2012) compara a trama principal de uma novela ao tronco de uma árvore, que se abre em galhos. A metáfora cabe aqui ao protagonismo, uma vez que José Inocêncio estrutura a novela com a mesma opulência que o Jequitibá-Rei se ergue em meio a esse sertão cordial. E se Pedro Meira Monteiro resume a cordialidade como um sistema em que “o coração é o senhor”, Renascer prova (e representa) que recíproca é verdadeira: o senhor é também o coração.
Referências bibliográficas:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Kindle ed.
KEHL, Maria Rita. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p.163-180, mar. 2005.
_____, Maria Rita. ‘Velho Chico’ reinaugura um desejo de utopia. O Globo, Rio de Janeiro, out. 2016. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/maria-rita-kehl-velho-chico-reinaugura-um-desejo-de-utopia-20210647
MONTEIRO, Pedro Meira. Signo e desterro: Sérgio Buarque de Holanda e a imaginação do Brasil. Hucitec Editora, 2015, Kindle ed.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de televisão. São Paulo: Perspectiva, 2012.
Parte 11 – O Anti-Collor

No último post, analisamos o homem cordial — como conceituado por Sérgio Buarque de Holanda (2016) — na figura de José Inocêncio, protagonista de Renascer. Mas se o homem cordial é central no texto da novela, é importante apresentar os contextos em que essa presença se insere.
O contexto mais imediato é o televisivo: como destaca Souza, a programação das novelas na grade televisiva reproduz uma “tensão entre modelo e novidade” (2004, p. 227). Entretanto, era e o início dos anos 1990, e a Globo vivia uma situação singular; como narra o livro A Deusa ferida (BORELLI; PRIOLLI, 2000), pela primeira vez, em 20 anos, a hegemonia da emissora cruzava turbulências, tanto no que diz respeito à audiência (caso de O Dono do Mundo, 1991) quanto em circunstâncias como a do caso Daniella Perez (atriz assassinada por Guilherme de Pádua, seu colega de cena na novela De Corpo e alma, 1992). Acrescenta-se a esse cenário, o sucesso de novelas como Pantanal (1990) e das mexicanas, que passaram a desembarcar com maior impacto desde Carrossel (1991). Nesse sentido, como defendo em minha tese, Renascer surge para remediar uma série de tremores e o grande trauma de Pantanal, promovendo o universo bucólico de Benedito Ruy Barbosa ao horário nobre, sob os Padrões Globo de Qualidade.
Há, no entanto, um contexto maior, do país, que dialoga diretamente com o protagonismo desse homem cordial: era 1993, e, num intervalo de 8 anos, o país havia se livrado de uma ditadura (que além dos traumas sociopolíticos, deixara uma economia estagnada) e se redemocratizado; nesse processo, Vale Tudo (1988) foi a novela que melhor capturou esse “novo Brasil”, disposto a encarar suas questões de frente. Quando surge a candidatura de Fernando Collor de Mello — que se tornou o primeiro Presidente diretamente eleito a assumir o cargo desde a ditadura —, o então jovem candidato desponta como uma aposta de modernidade combinada à estampa de galã de novela das oito. Aposta nas urnas e na mídia: Boni, ex-diretor de programação e produção da Globo, já assumiu, em entrevista à Marília Gabriela, que ele e Roberto Marinho apostavam em Collor como “uma juventude que viria renovar o Brasil” (DE FRENTE… 2011).
Collor deu no que deu: a suposta modernidade do “caçador de marajás” derreteu e revelou o próprio marajá. O descontrole inflacionário e o confisco das poupanças são, até hoje, lembranças traumáticas desses anos. É verdade que engrenagens da democracia funcionaram (Collor renunciou e sofreu impeachment), mas a aposta nesse pai-ideal — jovem, moderno, galante — deixou um gosto amargo às brasileiras e brasileiros. Coube à Globo consolar tamanha desilusão com um bem-lapidado anti-Collor: José Inocêncio. Costurando o nome mais comum do país a uma “inocência” declarada desde o batismo, José Inocêncio “renasce” esse novo (velho) herói nacional: trabalhador, crente (representante de um sincretismo religioso) e moderador das tradições (disposto a negociar apenas com as benesses da modernidade, como a televisão), ele encarna o reposicionamento do homem cordial televisivo, alçado ao que Maria Rita Kehl (2005) define como pai-ideal: uma figura paterna que ocupa um imaginário de autoridade, admiração e cuidado, e que cuja posição elitista é dissimulada pela sensação de intimidade e pela má-compreensão da democracia como regime que garante equidade (quando, segundo Kehl, a democracia garante apenas a desnaturalização da desigualdade).
Assim, José Inocêncio se apresenta como um herói popular, que atende anseios de um país recém deixado a Deus-dará pelo pai-mocinho/moderno. Mesmo que sua trajetória seja errante, seus deslizes se justificam pelo zelo excessivo do pai-cuidador, aquele que projeta a continuidade a partir dos seus e que, sobretudo, protege as cercanias que reúnem esses laços familiares; ou seja, o patrimônio, essa fazenda-feudo que estende o coronel em seu papel de patriarca, provedor de escola, emprego, comida, morada, proteção e lei. Num contexto (complexo) de colapso das imagens (e imaginários) acerca da modernidade — “traduzido” nos telejornais em imagens da flutuação dos preços nos supermercados —, Renascer providenciou escapismo a um retiro mais belo, protegido, e, sobretudo, mais simples, uma vez que (quase) tudo ali se resolve pelo poder do pai.
Referências bibliográficas:
BORELLI, Silvia Helena Simões; PRIOLLI, Gabriel. A Deusa ferida: porque a Rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência. São Paulo: Summus, 2010.
DE FRENTE com Gabi – Boni. São Paulo: Sbt, 2011. Son., color. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Kindle ed.
KEHL, Maria Rita. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p.163-180, mar. 2005.
SOUZA, Maria Carmem Jacob de. Novela e representação social: Benedito Ruy Barbosa e a representação do popular na novela Renascer. Rio de Janeiro: E-papers, 2004.
Parte 12 – Autoria e roteiro

Uma das maiores dificuldades durante minha pesquisa de doutorado foi chegar a algum roteiro de Renascer. Consegui acessar um compilado de roteiros; não pela via “natural” (a Globo), mas na biblioteca da ECA-USP, que tem em seu acervo três volumes com os capítulos iniciais da novela (a partir do 3°). Essas encadernações não podem ser retiradas da biblioteca, mas permitiram que eu fotografasse os documentos.
Sim, porque não podemos perder de vista que roteiros são documentos com orientações narrativas para a equipe de produção. Roteiros possuem uma formatação própria, que costuma variar dependendo do meio destinado (cinema, televisão…), do gênero e do formato. A imagem abaixo é a primeira página do roteiro de Renascer — então com o título provisório de Jacarandá-rei (não Jequitibá!) — e ilustra as particularidades desse documento audiovisual.

Embora a maioria dos cursos ensine que roteiros têm que ser objetivos, há roteiristas que deixam marcas mais evidentes de sua autoria. Em minha tese, defendo que Benedito Ruy Barbosa está nesse grupo. A evidência mais notável está nos diálogos, já que Barbosa escreve exatamente como ele quer que os atores pronunciem as palavras, rompendo, inclusive, com o português normativo (o que me parece “justo, muito justo, justíssimo” numa obra com um caráter tão popular). Vejamos um trecho da conversa entre Deocleciano (Leonardo Brício) e Belarmino (José Wilker, personagem dono do bordão entre aspas) que abre o 3° capítulo e ilustra esse uso.

Mas o mais singular na escrita de Benedito Ruy Barbosa é a maneira como ele dá o tom da cena e “dirige” o elenco através do roteiro. Usadas para descrever objetivamente os espaços e movimentos da cena, as rubricas de ação nos roteiros de Barbosa têm tintas próprias: Inácia não sai em direção à cozinha, ela “se manda para o fogão”; Padre Santo não se surpreende com uma informação, ele “cai de costas”. As linhas de ação também são usadas para tecer comentários sobre gestos e diálogos. Quando José Inocêncio conta a Deocleciano sobre o beijo que deu em Maria Santa, a ação traz intervenções de Barbosa, que se coloca em interjeições (Ahn?!…) e comentários (Que safado!…) que podem dar o tom da ação e das atuações.

Assim, se o texto dramatúrgico busca apagar a presença de um narrador, os roteiros de Benedito Ruy Barbosa destacam sua autoria ao colocá-lo como uma espécie de narrador/comentarista; uma “terceira pessoa íntima” (WOODS, 2012, p. 21), que injeta no texto marcas de autoria como comentários autorais explícitos e ambiguidade (THOMPSON, 2003, p. 110). Tal estratégia me parece calculada a uma trama regulada pela proximidade e pela intimidade, e que tem como coração o homem cordial.
Curiosamente, nesses roteiros que compõem o acervo da USP, a segunda fase de Renascer começa no capítulo 10, diferente do que foi ao ar; a primeira fase foi encurtada a pedido de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (o Boni, então diretor de programação e produção da Globo), que temia uma rejeição do público à nova fase. Ao que tudo indica, a releitura preparada por Bruno Luperi se baseará nesses primeiros roteiros, retomando o plano original do avô.
Ref. bibliográficas
WOODS, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
THOMPSON, Kristin. Storytelling in film and television. Cambridge, Massachusetts eLondres: Harvard University Press, 2003.
Parte 13 – O Nascimento de Mariana

Ontem, 05/02, foi ao ar a mudança de fases em Renascer (2024); a novela apresentou novas personagens, incluindo a protagonista Mariana (Theresa Fonseca). Em minha tese, analiso o “nascimento” da Mariana (Adriana Esteves) de 1993 a partir da estilização ambígua que cerca a personagem, bem como pela descompensação do olhar que ela provoca ao surgir.
A cena começa num campo e contracampo entre João Pedro (Marcos Palmeira) e Jacutinga (Fernanda Montenegro), que conversam no bar. Há, porém, outra ação paralela: com uma filmadora caseira, um homem (um figurante) grava uma das garotas da casa de Jacutinga, transmitindo as imagens imediatamente num televisor posto em cena. É entre essas ações que Mariana desponta como um mistério: primeiro, como silhueta velada (por uma espécie de cortina) e emoldurada (por um batente), “enevoada” pela luz estourada (imagem de capa do post).
O corte potencializa Mariana como enigma imagético ao reenquadrá-la em um primeiríssimo plano; a personagem é recortada num olhar frontal (imagem 2), que parece quebrar a 4ª parede, como se provocasse a câmera. Só então Mariana surge completamente, de novo sob a moldura e o brilho, mas agora em um contra-plongée, que destaca a sensualidade do figurino, mas, principalmente, traz altivez a essa figura misteriosa (imagem 3). O plano concatena as dúvidas que pairam sobre a Mariana de 1993: santa ou diaba? Salvação ou última tocaia?
A partir do momento em que se estabelece como presença inteira, Mariana descompensa a dupla de olhares que articula a cena: o olhar-narrador onisciente e o olhar da câmera diegética (isto é, ela atordoa o olhar do homem atrás da câmera). Isso pulveriza a montagem, que faz de Mariana um mosaico de imagens-fetiches ao intercalar planos dessas duas câmeras/olhares. A cena só se reorganiza quando o olhar de João Pedro (Marcos Palmeira) chega à Mariana e se encanta por ela; cessa, então, a edição desses olhares desorientados para surgir esse outro, embasbacado, que se fixa.
Se a Mariana de Adriana Esteves surgia pela textura da imagem doméstica (imagem 4) a partir dessa câmera e televisão diegéticas (presentes na cena), a de Theresa Fonseca nasce também na tela (de um televisor de tubo!); não como imagem eletrônica, mas como reflexo. Essa escolha evoca a anterior, porém demarca a mudança de tempos — não um tempo de morte da televisão, mas de nascimentos de outras telas, visualidades e espectatorialidades (aliás, algo a se acompanhar é essa presença do aparelho televisor na novela, uma vez que a chegada da TV à fazenda tinha grande impacto na original). A silhueta refletida reforça a inconcretude dessa personagem escorregadia, mas a desvincula do erotismo exacerbado da original (Mariana era retratada como uma espécie de Lolita sertaneja). A Mariana apresentada ontem parece carregar menos a questão da imagem exposta, performada, e mais a questão da sombra a esconder.
Parte 14 – Nascimentos de Damião, Joana e Tião

Esta semana, três personagens, que tiveram apresentações marcantes na novela original, chegam à nova versão: Damião (Xamã), Tião Galinha (Irandhir Santos) e Joaninha (Alice Carvalho). É sobre os nascimentos dessas personagens, na novela de 1993, que falaremos nest post.
Damião (Jackson Antunes) surge no capítulo 16, sob uma decupagem que transforma esse cowboy camaleônico (que muda suas alianças) num mistério. Isso porque os pontos de vista que o enquadram, suspendem o rosto do jagunço ao longo da cena: primeiro, Damião surge, de costas, diante da venda de Norberto (Nelson Xavier); depois, são as botas desse sujeito, vistas em plano detalhe, que adentram o estabelecimento. A câmera, então, se ergue das botas à mão desse forasteiro (que empunha um chicote), reenquadrando também Norberto, atrás do balcão. Durante a conversa, Norberto ganha um close, mas ao invés do natural contracampo de Damião, a montagem corta para um plongée, que especializada a venda (mostrando-a de cima), mas mantém o personagem incógnito sob o chapéu.
A cena é entrecortada por um flashback de Norberto, que relembra a chegada do jagunço contratado para entocaiar José Inocêncio na primeira fase. Na volta ao tempo narrativo atual, Damião se apresenta, mas de costas para a câmera e para Norberto. Desconfiado, Norberto observa que “o amigo fala pouco”, dando, enfim, a deixa para que Damião ganhe um rosto; num plano que vai do mistério ao perigo que cerca esse personagem: posta no ponto de vista de Norberto (mas sem ser uma subjetiva), a imagem faz de Damião uma silhueta desfigurada, que se vira em passos firmes, aproximando-se. O rosto de Damião só entra em foco quando o matador de aluguel já está rente à lente, enorme, os olhos faiscando para cima de Norberto ao retrucá-lo — “e o amigo fala muitxo”, diz Damião depois de se reenquadrar num super-close.
A decupagem da cena constrói um Damião uma aura de ameaça, alongando e recontextualizando em nordestenuma cena clássica dos westerns — a chegada ao saloon. Em minha tese, comparo a estilização maneirista desta cena televisiva com o maneirismo cinematográfico do western Rápida e Mortal, dirigido por Sam Raimi.
A cena logo em seguida apresenta o casal Tião (Osmar Prado) e Joana (Tereza Seiblitz), e, embora também estilisticamente elaborada, tem outro teor, mais condizente às personagens. É uma cena poética, quase melancólica, em que a câmera paira pelo mangue, enquanto a montagem impregna um plano no outro (como se as imagens fossem feitas de barro) através de fusões. É nesse ambiente de cores terrosas que o nosso olhar tem que lutar para encontrar os corpos embarreados de Tião e Joana, que cumprem a lida de catar caranguejos.
Esse nascimento do barro (bíblico e mitológico) demonstra uma questão fundamental da cena audiovisual: o movimento é aquilo que primeiro tende a chamar a nossa atenção, o nosso olhar. Se nos planos abertos distinguimos Joana e Tião, camuflados, em afinidade com o ambiente, com o contraste (e um dos princípios da linguagem visual é que a forma depende do contraste), é porque o casal se movimenta, destacando-se do fundo. Essa absorção vagarosa de Tião mangue adentro não deixa de simbolizar a trajetória dele, que, entre sonhos, patina nesse lugar do ressentimento, da inação (Joana terá melhor sorte). Quando está prestes a se insuflar, Tião encontra a maior das injustiças e o fim, que, na encenação de 1993, reverbera uma fotografia histórica.
Mas essa é outra história…
Parte 15 – “Mãe ideal” e “pai ideal”

Nos estudos de cinema, o texto Prazer visual e cinema narrativo, de Laura Mulvey, expõe o pensamento desta autora que, a partir das teorias feministas e da psicanálise, associa a imagem do cinema clássico hollywoodiano e o olhar masculino. Numa síntese ligeira (e incipiente), Mulvey defende que esse cinema organiza seus pontos de vista numa observação escondida (voyeurista), cujo prazer está na crença, no vínculo ilusório que estabelecemos com a narrativa.
É dialogando com esse contexto que Tania Modleski encontra nas soap operas inglesas uma narrativa capaz de se desvencilhar dessa restrição ao olhar masculino. Isso porque, para a autora, esse gênero televisivo olha com igual empatia para todas as personagens e problemas, o que configuraria não só um espaço-tempo feminino, mas um olhar feminino específico, o olhar da “mãe ideal” — um olhar sabedor, que se identifica com todos e sem preferências, e que negocia os conflitos e reivindicações colocadas na narrativa.
Ainda que telenovela e soap opera tenham diferenças — e Rosane Svartman as resume bem em A Telenovela e o futuro da televisão brasileira —, empresto, em minha tese, essa noção do olhar da mãe ideal à telenovela, colocando-o nesse mundo do “pai ideal” apresentado em Renascer. Na novela de 1993, este olhar, no entanto, não se restringe à empatia; ele, sobretudo, é curioso, tem desejo por conhecer e saber desse mundo (diferente do masculino que quer ver e crer), configurando-se no que Laura Mulvey denomina epistemofilia. Essa curiosidade é a brecha que Luiz Fernando Carvalho encontra para exercitar o maneirismo na novela original (mas essa é outra história…).
Na Renascer original, esse olhar maternal não encontrava um corpo para si; pulverizava-se entre as personagens (e suas vistas subjetivas) e a objetividade narrativa. Além disso, esse olhar feminino e materno logo escorregava da curiosidade a um deslumbramento por esse universo masculino, atenuando, assim, sua criticidade, seu papel opositivo. A essa altura, é evidente que a atual versão reposiciona as representações femininas para recontextualizar e colocar em crise as marcas patriarcas da narrativa. Contudo, exibida em 14/03/2024, a cena que fecha o capítulo 46 corrobora a reconstrução não só do que é visto (objeto do olhar), mas também de quem olha (sujeito do olhar).
Falo das cenas que envolvem Inácia (Edvana Carvalho), que passa a transitar da objetividade material à subjetividade espiritual; poder que, por ora, restringe-se a ela. Na cena que prepara o gancho, ela vê Maria Santa (Duda Santos), e, de mãe para mãe, promete consertar o que agora se explicita como uma falha paterna/masculina — Inácia promete encaminhar as vidas dos filhos de Maria Santa. Em seguida, ela e José Inocêncio (Marcos Palmeira) se encontram diante da imagem da santa; o olhar do coronel demonstra um ressentimento inédito: se antes as visitas fantasmagóricas de Maria Santa o privilegiavam, agora, o espírito apela não ao pai idealizado, mas a essa mãe polivalente (mãe de corpo e Mãe de Santo), que, tudo indica, se coloca como central a esta releitura — antes descorporificado, o olhar defendido por Modleski encontra em Inácia uma encarnação principal.
Quando José Inocêncio cobra que Inácia “providencie o que tiver que ser feito”, ela retruca o patrão — “isso eu não vou poder fazer, não. Pelo menos não sozinha”. Agora dotado de corpo, o olhar da “mãe ideal” se encontra e se impõe ao olhar do “pai ideal” (na cena, restrito ao familiar, mas que Maria Rita Kehl desdobra ao social), que reverbera o de outrora. Sem eximir José Inocêncio de suas responsabilidades, Inácia se explicita como detentora do olhar e cobra que o pai reposicione o próprio olhar (para além do voyeurismo e da ilusão), para que possam conjugar forças e cuidar dos destinos dessa família/comunidade (o melodrama, portanto, permanecendo como gênero).
Ao se equiparar a José Inocêncio, Inácia galga um protagonismo inédito, que reequilibra a narrativa de Renascer e se revela como força motriz diegética a esta direção, que abre trilha a um novo universo imagético — um que quer descobrir o mundo, do tátil ao imaterial.
Referências bibliográficas:
KEHL, Maria Rita. O ressentimento camuflado da sociedade brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 71, p.163-180, mar. 2005.
MODLESKI, Tania. The search for tomorrow in today’s soap operas. Film Quarterly. [s.l.], p. 12-21. out. 1979.
MULVEY, Laura. Fetishism and curiosity. Londres: British Film Institute, 1996b.
______, Laura. Visual and other pleasures. Bloomington: Indiana Univ., c1989.
Parte 16 – Uma novela maneirista

Na História da Arte, o Maneirismo é um estilo que surge na transição entre a Renascença e o Barroco, momento em que a arte renascentista havia alcançado um certo ápice do realismo ao qual se propunha. Como lembra John Shearman (1967), o próprio nome remonta uma arte feita à maneira de outra; no caso, uma extensão do renascimento nas mãos de artistas que conscientes da maturidade dessa Escola e da impressão de que “chegaram atrasados” nessa história, retomam motivos das representações renascentistas, só que os reelaborando a partir de desafios estilísticos autoimpostos — sendo a torção das figuras, chamada de serpentinata, a característica mais comum do estilo.
Portanto, o Maneirismo envolve uma nostalgia e uma espécie de ressentimento por ter “chegado tarde”, quando a pintura parecia ter alcançado o pleno domínio da técnica no que diz respeito à representação realista. No cinema, também aparecerá no momento em que o classicismo tem já consolidado esse domínio narrativo/formal e inicia um desgaste (que será potencializado pelo surgimento da televisão).
Luiz Carlos de Oliveira Júnior (2015), cuja tese coloca Vertigo como um filme maneirista, descreve o maneirismo cinematográfico como um “cinema de mortos-vivos” baseado tanto no ilusionismo da transparência quanto em certo distanciamento — ou seja, é possível envolver-se emocional e psicologicamente com a dramaturgia e, ao mesmo tempo, estranhar algumas escolhas e, assim, perceber a construção audiovisual. É como se esse cinema retomasse certas cenas do cinema clássico, distorcendo-as, seja em estilizações da direção, seja em realocações de gênero.
E minha tese (e em minhas aulas), uso Rápida e Mortal como exemplo de filme maneirista, uma vez o diretor que Sam Raimi multiplica o clássico duelo do western em várias cenas, propondo em cada reencenação, diferentes brincadeiras visuais — zooms, gruas, efeitos vertigos etc. Brian De Palma é outro cineasta muito lembrando como maneirista, uma vez que ele parte da referência hitchcockiana, mas as distorce tanto em escolhas narrativas quanto estilísticas (acho Dublê de corpo o filme mais pedagógico para ilustrar essas escolhas).
O crítico Alain Bergala (1985) defende que a televisão também tem seu maneirismo, mas que este se dá como uma espécie de self-service de referências da própria TV e de outros audiovisuais. É um pouco o caso da Renascer de 1993, que se serve tanto de referências cinematográficas evidentes (o western, o Cinema Novo) quanto de teatrais (como toda a cenografia da crucificação de Padre Lívio). Entretanto, o maneirismo na novela dirigida por Luiz Fernando Carvalho retoma também a primeira acepção, no sentido de que, consciente de uma maturidade da linguagem da telenovela, Renascer reconfigura o olhar feminino do melodrama, refazendo-o como um olhar que passeia curioso (e deslumbrado) por esse mundo de masculinidades cordiais.
São várias as distorções maneiristas realizadas pela direção da novela original: há momentos em que o maneirismo está num tratamento mais artificial das luzes, há momentos em que aparece cenografia e nas molduras. Às vezes, está na descontinuidade da montagem, e, quase sempre, numa mise en scène pouco televisiva (na época), baseada em planos longos, na encenação em profundidade e em movimentos de câmera que podiam tanto estar na mão, quanto nas inesperadas gruas feitas em espaços internos. Outro aspecto essencial nas experimentações é o fato de que a novela se dividiu entre estúdios e locações na Bahia, impondo uma rotina de produção que a Globo precisava provar possível (e provou) tanto aos espectadores, quanto para si mesma, depois do feito da Manchete em Pantanal.
Em minha pesquisa, defendo que essa estilização maneirista de Renascer pratica e exibe o poderio artístico, técnico e tecnológico do Padrão Globo de Qualidade, criando uma dicotomia entre o elogio ao universo cordial narrado e a explicitação da modernidade que a própria emissora ostentava, o que ficava evidente principalmente pela direção. Na tese, recorto três grandes blocos temáticos de cenas maneiristas: as cenas de nascimento das personagens (José Inocêncio, Maria Santa, Mariana, Damião, Tião & Joana), o conjunto de cenas que chamo de “sonhos, aparições e deslocamentos” e, por fim, as cenas de morte (Padre Santo, José Venâncio, Tião, Teodoro e Inocêncio). Falaremos um pouco mais sobre isso no próximo post…
Referências bibliográficas
BERGALA, Alain. “De certa maneira”. Cahiers du Cinéma no. 370, abril de 1985.
OLIVEIRA JR, Luiz Carlos Gonçalves de. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno — São Paulo, 2015.
SHEARMAN, John. Mannerism. London: Penguin Group, 1967.
Parte 17 – Primeiras pulsações: apresentações dos personagens

Na análise narrativa e estilística que proponho em minha pesquisa, começo recortando justamente as cenas de “nascimento” de alguns personagens centrais de Renascer — mais especificamente, José Inocêncio, Maria Santa, Mariana, Damião e o casal Tião e Joana. Sabendo da insuficiência deste espaço para conter a totalidade dessas análises, trago aqui uma pitada, quase uma provocação, do que me parece haver de mais interessante nessas cenas.
José Inocêncio e o Jequitibá-Rei
Na apresentação de José Inocêncio, destaco a construção misteriosa e altiva do herói desde sua primeira aparição (como silhueta numa clareira enevoada), bem como a introdução do confronto “homem e natureza” (típico dos westerns, como aponta André Bazin) e a composição ambígua dada ao facão, num enquadramento que faz do objeto fincado uma cruz (ou seja, o pacto da vida antevê a morte). Outro ponto, é a singular representação do corpo que a novela propunha desde ali:
O corpo é colocado desde aqui de forma rara nas novelas. Geralmente zelosa em relação ao público (para não o perder), a novela enquanto formato quase sempre tratou do corpo e da carne de maneira asséptica. Sua própria carne no que concerne ao estilo – o estilo é a própria carne da obra (BORDWELL, 2013) – é saneada, límpida e pouco elaborada, propicia às vistas apressadas lançadas ao quadro pequeno e carente de informações da televisão. Em Renascer, pele, sangue, suor e terra são elementos presentes e fundidos desde a primeira cena. A câmera não hesita em ultrapassar a segurança dos medium close-ups, confortáveis aos operadores de câmera (BUTLER, 2009, loc. 1055), para captar a textura dos corpos em movimento. O estilo não mais delimita a ocupação da cena pelos corpos, como é comum na novela, mas os corpos pulsam de tal forma que afetam o estilo, ou seja, a mise en scène, a montagem e o som. A cena inicial estabelece várias das regras do jogo que será visto em Renascer. (Cruz, 2018, p. 179)
Maria Santa, José Inocêncio e o Boi
Começo analisando a restrição de Maria Santa em sua janelinha, e o rito do Bumba, que, do lado de fora, se especializa numa “cenografia de circo […], ideal para mostrar todas as facetas de uma situação” (Jullier; Marie, 2009, p. 51). Já na fazenda de Inocêncio, a ocupação do Boi se reorganiza numa cenografia de parque, com a câmera livre e errante, como se estivesse num parque de diversões. É a partir dessa visualidade solta que Maria Santa se insere, na roda e rodando, e que os giros da saia impõem uma montagem rítmica, com o movimento dentro do quadro impulsionando o movimento da montagem de um quadro a outro (Eisenstein, 1990, p. 91). Por fim, encontro na cena uma alternância entre o olhar feminino (curioso pelo festejo) e o masculino (que objetifica Maria Santa).
A variação da epistemofilia à escopofilia nesta cena de Renascer ressalta essa diversidade [da multiplicidade e alternância entre olhares]. Ao longo da novela, a curiosidade do olhar feminino é direcionada aos espaços, enquanto os corpos são lançados a um olhar voyeurista e fetichista. (Cruz, 2018, p. 184)
Damião: a entrada do caubói
Pensando a mise en scène do western a partir de uma perspectiva maneirista (usando como referência o filme Rápida e mortal, de Sam Raimi), localizo a apresentação de Damião como uma cena típica do gênero — a chegada da ameaça ao saloon (no caso, a venda de Norberto). Nesse sentido, a decupagem dilata a ação em planos que suspendem a identidade — isto é, o rosto — de Damião, alternando-se entre plongée, contra-plongée, além de um acentuao uso de sombras. Assim, há uma progressão do clima de perigo (e da desconfiança de Norberto), para que o rosto de Damião surja, enfim, ameaçador como nunca:
“Damião, se apresenta o personagem de Jackson Antunes, ainda parado na entrada do local, de costas para a câmera, com uma ameaçadora sombra desenhada sobre a porta. “Damião do que?”, insiste Norberto. “Só Damião, retruca o outro. “O amigo fala pouco”, diz o dono da venda, puxando a trilha sonora (que mais uma vez acentua o perigo) e o corte para Damião, agora com as costas desfocadas. Mas, ao virar-se rapidamente, o jagunço se aproxima da câmera, entrando em foco num primeiríssimo plano potente e ameaçador como nunca antes na cena. “E o amigo fala muito”, pontua Damião, com os olhos vidrados em Norberto, pouco antes de morder o sanduíche de mortadela, ato realizado com violência ambígua […]”. (Cruz, 2018, p. 198)
Tião e Joana: corpos camuflados na lama
Da apresentação de Tião e Joana, o que mais me interessa é a construção de uma mise en scène baseada na afinidade da cor e do tom entre os corpos (enlameados) e espaços, e no papel fundamental dos movimentos e dos gestos para que os atores se destaquem aos olhos do público. É simbólico que esse casal que quer um pedacinho de chão inicie sua trajetória na lama do mangue, consumidos e impregnados a ponto de se invisibilizarem. A montagem segue a mesma toada, toda construída em fusões — não é só o espaço que se impregna aos corpos, as próprias imagens impregnam-se umas nas outras.
Num gesto quase teatral (como se aguardasse a “deixa”), o ator Osmar Prado se levanta, revelando a face e a mão agarrada a um caranguejo. O corpo todo está em quadro, mas só se destaca do cenário por conta do movimento, item potente na atração do olhar e que impulsiona a exposição do corpo a áreas de diferentes brilhos no espaço (a diferença de tonalidade é provocada principalmente pela penetração da luz do sol em determinadas áreas). (Cruz, 2018, p. 200).
A cena de Mariana já foi analisada em post anterior deste projeto (no post de 6 de fevereiro de 2024, “O Nascimento de Mariana”). Na próxima publicação, seguiremos às cenas de sonhos, aparições e deslocamentos.
Referências bibliográficas:
BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Unicamp, 2013.
BUTLER, Jeremy G. Television style. Londres: Routledge, 2010. Kindle ed.
CRUZ, Álvaro André Zeini. “Renascer”: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira. 2018. 1 recurso online (287 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, c1990.
JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo, SP: SENAC São Paulo, 2009.
Parte 18 – Sonhos, aparições e deslocamentos: palpitações contra o fluxo televisivo

Ainda pensando narrativa e estilo como ruptura do fluxo televisivo, recortamos, em Renascer (1993), cenas ou sequências singulares a partir de três temáticas — sonhos, aparições e deslocamentos. Além de quatro cenas isoladas, há um conjunto de cenas em que Teca e Inácia visitam a casa do Bumba, além do arco narrativo que transporta e contrapõe Damião à cidade. Vamos a elas.
Mariana: divina e diaba
Apresentada no capítulo 53, a cena não delimita se o sonho é de Mariana (Adriana Esteves), João Pedro (Marcos Palmeira) ou se é compartilhado pelos dois. Começa idílica, com o casal cedendo ao desejo em meio a uma imensa pastagem. A figura de Mariana é marcante: vestida de noiva, ela usa um véu que se abre e tremula de maneira artificial. Na conversa — que começa com vozes assíncronas, descoladas dos corpos —, Mariana coloca João contra o pai. Os dois se beijam e rolam na relva, até que… encontram anteparo nas botas do coronel, que surge, furioso, em contra-plongée. A cena muda de tom, disparando a corrida do casal e a onipresença de José Inocêncio (Antônio Fagundes) e sua espingarda; mais do que isso, a montagem se pulveriza, abrindo-se aos raccords imperfeitos, à repetição dos gestos, aos jump cuts — a fuga lembra a de Rosa e Manuel em Deus e o diabo na terra do sol.
Para enfrentar a ubiquidade do coronel, Mariana se infiltra e se fragmenta na montagem, tomando a cena em duas versões: a noiva de vestido branco e a viúva, de vestido e véu pretos. Uma rápida progressão de planos articula a montagem metafórica, que tensiona pai, filho, as duas Marianas e planos de uma cobra. A voz de Mariana alinhava as imagens a partir da repetição — “mata ele, João”. Quando a frase culmina num grito, pai e filho apontam as espingardas um contra o outro, num plano de perfil típico dos duelos de western. A novidade é que Mariana rodopia entre eles, como vórtice venenoso do conflito. Os tiros em sincronia dão fim ao sonho, que começara no quarto de João e termina com Mariana se levantando assustada.
Tião, Joana e a encenação do mito de Dafne
O sonho/delírio de Tião (Osmar Prado) acontece depois de uma briga com Joana (Tereza Seiblitz), que pensa em ceder ao assédio de Teodoro (Herson Capri) para livrá-los da exploração do coronel. Descontrolado diante dessa possibilidade, Tião deixa a casa em meio a uma noite de tempestade. Corre pelas pastagens até chegar à mata, onde reencontra Joana; não a que estava na casa, mas outra, constituída como uma divindade luminosa que se dissimula entre as sombras de galhos e cipós, tornando-se cada vez mais inalcançável a Tião. Em meu trabalho, analiso essa cena como uma releitura do mito de Dafne, ninfa que é transformada em loureiro para aplacar a perseguição do obsessivo Apolo. No que concerne ao estilo, destaco o uso da serpentinata, torção típica da pintura maneirista, sobre o corpo de Joana, sobretudo através de borrões e desfoques (imagem referente na capa). Também proponho uma aproximação com uma cena do filme Céline, de Jean-Claude Brisseua, mas, hoje, olhando em retrospecto, penso que Persona, de Ingmar Bergman, poderia também figurar nesse quadro comparativo.
Tião, sonhador acordado
Ao contrário da cena anterior, Tião tem esse outro momento, nada delirante, em que o sonho se coloca de maneira objetiva, como sonho de vida, como pedacinho de chão que ele quer ter. A cena, no entanto, tem uma ironia singular: Tião compartilha esse sonho em conversa com Padre Lívio (Jackson Costa); os dois num enorme descampado, por onde a câmera circula em steadicam. O movimento é fundamental na construção discursiva, já que a câmera circula tendo Tião e Lívio como eixos que falam justamente sobre as injustiças agrárias (“Deus quando feizi o mundo num deu terra pra ninguém. Por causa de que que tem tanto dono?”, diz Tião), ao passo que o espaço cênico se reorganiza o tempo todo para mostrar a imensidão daquela terra improdutiva em que estão, sem planta, nem boi, só mato.
“Captadas pela câmera em steadicam, as pastagens se estendem ao horizonte. As caminhadas da câmera junto a Lívio e Tião não são suficientes para percorrê-las, por mais que os planos e a própria cena se dilatem. Na negociação do duplo discurso entre narrativa e estilo, o estilo ironiza a escassez de terra posta no diálogo. Afinal, para onde quer que se olhe, há terra. Para onde que que se corte, também”. (Cruz, 2018p. 215)
Sonho da Paixão de Cristo
A sofrimento de Padre Lívio ao se apaixonar por Joana ganha essa leitura metafórica-cristã, que se aproveita da semelhança (apontada por outros personagens) entre o personagem e as representações mais correntes (eurocêntricas) de Jesus Cristo. Lívio, portanto, se torna Cristo crucificado, enquanto Joana se coloca como Maria Madalena aos pés da cruz. Para além dessa representação simbólica crítica (que correlaciona o celibato ao martírio de Cristo), a cena interessa pela introdução do “artificialismo explícito” (Collaço, 2013) que caracterizaria a obra de Luiz Fernando Carvalho a partir de Hoje é Dia de Maria. Vários dos elementos já se antecipam nessa cena: a paisagem externa reproduzida em galpão, a cenografia teatral, o background pintado, a marcação e o contraste de luz assumidamente artificial, a antinaturalidade dos gestos…
Teca, Inácia e a casa do Bumba
A casa do Bumba (Cacá Carvalho), Quitéria (Ana Lúcia Torre) e Maria Santa (Patrícia França) ressurge em cena através de Teca (Paloma Duarte), que, sensitiva, entra na casa e encontra o espírito da Santinha (que aparecerá para ela em outros momentos). A cena, que tem também a participação dos personagens Neno e Pitoco, começa com clima (e música) de suspense, mas se transforma no momento desse encontro, estabelecido por uma panorâmica e, depois, por campo e contracampo contrastados — Teca sob a luz estourada (no plano terreno) e Maria Santa, sob um dossel e uma luz difusa, espiritual.
Ao saber da experiência da menina, Inácia (Chica Xavier) vai até a casa, onde encontra o espírito de Quitéria. O contraste luminoso novamente delimita o mundo dos vivos e dos mortos; enquanto Inácia é bem iluminada (ainda que sob uma luz dura), Quitéria surge sempre como um vulto em contraluz, que, vez ou outra, se coloca sob a luz que penetra pelas telhas quebradas. A cena, no entanto, é mais lembrada pelo final: quando Quitéria revela que um dos amigos de Teca é o filho de Morena reencarnado, a cantoria do Bumba ressurge e a câmera abandona a casa, iniciando um giro vertiginoso. A cena termina sob esse olhar em transe, quase possuído pelo espírito da casa do Boi, que se torna uma abstração em meio aos rodopios.
Damião na cidade
Um entrecho suprimido da Renascer 2024 é essa fuga de Eliana (Patricia Pillar) e Damião (Jackson Antunes) à cidade. Em São Paulo, Eliana tenta “civilizar” o namorado. O objetivo não se concretiza (não como ela esperava), mas abre-se esse conjunto de cenas em que a metrópole “engole” o sujeito que lhe se configura como seu máximo outsider dentro da narrativa. Dois momentos merecem menção: aquele em que Damião ergue o facão contra a cidade visto por um travelling circular, num contra-plongée ambíguo, que engrandece Damião, mas eleva também os prédios austeros, a selva de pedras (na tese, faço um paralelo com uma cena do filme O Homem que virou suco).
O segundo momento é ainda mais inusitado: Eliana leva Damião para a academia, e, enquanto ela se exercita, ele circula entre os aparelhos como uma espécie de Frankenstein de identidades — o chapéu de caubói contrasta à gola rolê, mas ambos sublinham o olhar intrigado de Jackson Antunes nesta cena, que simula (criticamente) uma estilística publicitária da imagem. Esse interlúdio paulistano é todo filmado em película, acentuando o contraste não só entre rural e urbano, mas entre videotape e filme através das texturas das imagens. As cenas de morte fecharão esse recorte de cenas no próximo post…
Referências bibliográficas
COLLAÇO, Fernando Martins. Luiz Fernando Carvalho e o processo criativo na televisão: a minissérie Capitu e o estilo do diretor. 2013.
CRUZ, Álvaro André Zeini. “Renascer”: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira. 2018. 1 recurso online (287 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP.
Parte 19 – A Morte e o maneirismo

Partindo do princípio de que é preciso cruzar a morte para renascer, o último conjunto de cenas analisa justamente a encenação do fim da vida, estilizada de maneira singular a cada personagem.
Padre Santo e a morte plácida
À beira-mar, a morte de Padre Santo (Jofre Soares) evoca o imaginário do “mar inaugural”, que nos atravessa de Euclides da Cunha a Glauber Rocha. Entretanto, em Renascer não trata de um mar inalcançável, já que a novela antecipa a ideia que Lúcia Nagib observa no Cinema da Retomada — “o sertão é o mar” (NAGIB, 2006, p. 51). Ao lado de Padre Lívio (Jackson Costa), no jipe das aventuras, Padre Santo encontra uma morte plácida à beira dessas águas calmas, ao som de uma Ave Maria instrumental. O plano mais contundente da cena é o detalhe da mão dele e de Lívio, postas lado a lado, para que Padre Santo observe: “Olhe. É uma mão. Não tem um dedo igual. Não tem um”. É o aforisma derradeiro deixado ao padre que o substituirá, mas que, diante da morte, se desespera. Lívio encerra a cena ajoelhado na quebra das ondas, enquanto a câmera, humana, orgânica, o observa de uma distância respeitosa ao luto.
José Venâncio: o som na hora da morte
Se a morte do Padre é construída como natural, a de Venâncio (Taumaturgo Ferreira) carrega a violência de uma vida interrompida prematuramente. Nesse sentido, é calcada no suspense dilatado pela montagem alternada (os irmãos na caminhonete / o assassino incógnito à espera) e no uso acentuado do som, que traz para primeiro plano o ruído acentuado de uma moagem. Conforme o veículo se aproxima da tocaia, a montagem vai se acelerando, até chegar a uma grua que avança sobre o maquinário ruidoso e um lenço que ali está pendurado, tremulando, como se se despedisse. Quando o disparo acontece, a montagem se pulveriza em jump cuts, preocupando-se mais com a expressão dramática do que com as continuidades. A cena só se reestabelece quando João (Marcos Palmeira) tira Venâncio do carro e o posiciona entre os braços. Ali, uma enorme quantidade de água cai sobre os dois, estourando a luz e trabalhando as dimensões poética e decorativa da cena. Na tese, proponho paralelos desta cena com outras de Terra em transe e Bonnie & Clyde.
Tião e as mortes injustas
Antecipada por questões nos bastidores, a morte de Tião (Osmar Prado) é o fim trágico dessa existência narrativa atravessada por injustiças. Nas mãos do poder público, Tião é acusado pela tocaia a Teodoro, carregando mais uma injustiça nas costas, com a diferença de que, desta vez, ela vem do Estado. Desamparado, ressentido e humilhado, ele dá cabo da própria vida, enforcando-se na cela. Ainda que o ato seja sugerido ao público, a imagem dessa morte só se coloca pelo olhar do delegado, que se depara com o corpo pendente. O assombro do personagem é também o nosso diante dessa última composição de Tião Galinha, cuja corpo dependurado remete ao de Cristo, mas, principalmente, a uma das mais traumáticas fotografias de nossa História — a da injustiça brutal cometida contra Vladimir Herzog.
Teodoro: morte e distorções
A morte do principal algoz de Tião é também a mais maneirista no que há de mais característico ao estilo — isto é, nas distorções. Isso porque, enquanto foge dos tiros que o alvejam, Teodoro (Herson Capri) é perseguido pela câmera “armada” de uma lente olho-de-peixe, que, ora se coloca sobre o cano da espingarda, ora cola no rosto suado do coronel. As imagens, portanto, são típicas do uso dessa lente, com os cantos do quadro distorcidos, mas o efeito se potencializa quando a câmera se põe rente ao rosto do ator: o nariz adunco é distorcido, as olheiras aprofundadas. A cena se estiliza como a morte grotesca de uma vida abjeta. Curiosamente, essas imagens geradas pela objetiva grande angular remetem a uma das pinturas primordiais do maneirismo — o Auto-retrato diante do espelho convexo, de Francesco Mazzola (também conhecido como Parmigianino).
José Inocêncio: a morte como renascimento
Sobrevivente de tantas tocaias, José Inocêncio (Antonio Fagundes) é derrubado (literalmente) pela terra; quer dizer, pelas irregularidades do terreno onde transita com a cadeira de rodas. Ele havia deixado, há pouco, a venda de Norberto, que recebia ali, na rua, uma caravana mambembe. Esse duplo evento (a saída de Inocêncio, a chegada da trupe) emparelha a montagem. A “Grande companhia de entretenimentos Renascer” anuncia: “eis o mundo […] onde se dará a luta feroz entre o frio e o quente, o áspero e o macio, entre o chamejante e o aéreo”. “A peleja da vida contra a morte”. O anúncio está dado. A cadeira tomba enquanto as representações da vida e da morte pelejam com malabares; a vida como um fino equilíbrio, a morte como o abismo cadavérico da boca aberta. José Inocêncio perde suas forças com o corpo sobre a terra, sucumbindo às forças da natureza. O fio do facão desfaz o nó entre pai e filho ao passo que corta a corda do grande equilibrista.
Referências bibliográficas:
CRUZ, Álvaro André Zeini. “Renascer”: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira. 2018. 1 recurso online (287 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP.
NAGIB, Lúcia. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo, Cosac Naify, 2006.
Parte 20 – Negociações de uma cordial-modernidade

“Painho não queria ter instalado essa antena. Se não tivesse instalado, a gente tava aqui, isolado do mundo”, diz José Bento (Tarcísio Filho), que liga no Manhattan Connection e interliga a fazenda de José Inocêncio (Marcos Palmeira) a uma das mais midiatizadas metrópoles mundiais. Uma ponte para o mundo; “uma ponte para a vida”, como diria o personagem Ned Scott (William Reynolds) no clássico Tudo o que o céu permite (1955).
No desfecho da tese, penso a presença narrativa e estilística da televisão em Renascer. Isso porque, como já dito, a trama de 1993 é programada num momento de crise socioeconômica e política do país, proporcionando ao telespectador um escapismo às paisagens, mas, sobretudo, a um mundo mais simples, justamente porque é calcado na menor das instituições — a família, regulada por um “pai ideal”. Não é à toa, portanto, que a novela vai se desvencilhando dos signos da modernidade, permitindo, no seio da fazenda, a perpetuação do aparelho que anuncia e consolida uma identidade nacional modernizada.
A TV é apresentada como uma das poucas benesses da modernidade admitidas nesse universo arcaico e nostálgico, justamente porque ela materializa a própria modernidade brasileira — uma modernidade descrita por diversos autores (Ortiz [1989;2018], Rowe & Schelling [1991] Schelling [2000]) como conciliatória, negociada reiteradamente com a tradição. Em Renascer, desponta ainda como uma espécie de suprassumo da modernidade, já que, graças aos satélites e ao sistema Globosat, leva à sala de José Inocêncio imagens do mundo todo, inclusive dessa elite midiática que olha o Brasil a partir de Manhattan. Além disso, a TV na TV é também essa interface que permite olhares trocados: no capítulo 106, enquanto Inocêncio assiste imagens de São Paulo, Damião (Jackson Antunes) vê o campo diretamente da maior cidade do país.
A presença da televisão também não é alheia a um dos temas centrais da novela: se Inocêncio, Belarmino (José Wilker) e Teodoro (Herson Capri) reproduzem o coronelismo republicano, sistema em que o poder econômico supre a ausência do Estado, no Brasil pós-ditadura (Santos, 2006), a televisão (e o rádio, jornais e cia.) configura um coronelismo eletrônico, uma vez que a concessão das emissoras afiliadas é dada a grupos que detêm poderes econômicos e políticos, locais ou regionais. Grupos privados que, claro, têm interesses próprios, e que costumam pensar em nós, telespectadores, mais como consumidores do que como cidadãos.
Mas, como nem toda contradição é maniqueísta, a televisão tem também suas nuances. Por exemplo: em um modelo de TV generalista, que busca alcançar o maior público possível, a televisão se vê obrigada a promover uma contínua negociação cultural, envolvendo culturas hegemônicas e subalternas, equilibrando a massificação calculada e as porosidades abertas às infiltrações genuinamente populares. Nesse movimento, agencia avanços e retrocessos, sempre atenta ao tempo e à decodificação do público. A telenovela é produto central nesse conjunto de articulações complexas.
Sob essa perspectiva dos Estudos Culturais, termino a tese encontrando em Renascer uma novela nostálgica pelo homem cordial e seu reino domesticado, mas que, ao mesmo tempo, explicita no estilo — nas imagens e sons maneiristas — a modernidade da emissora, intrínseca no valor de produção e na constituição dos olhares lançados a esse universo narrativo. Em suma, se o conteúdo aponta para a tradição, a forma exibe (à maneira exibicionista) a modernidade técnica, tecnológica e criativa, consolidada no chamado Padrão Globo de Qualidade.
Conciliando costumes tradicionais a um desenvolvimentismo consumidor/material, a modernidade brasileira está na própria vinheta de Renascer, em que o Jequitibá pare nada menos do que um prédio prateado. A árvore do coronel dá à luz à Vênus Platinada. Estabelece-se, desde aí, a retroalimentação em que cada renascer é um processo cíclico de renovação e perpetuação, onde há sempre algo que se conserva, enraizado naquilo que se moderniza. Nesse sentido, arrisco, inclusive, uma releitura da duplicidade das orbes da logomarca da Globo — “se a esfera interna adquire as cores impregnadas num espaço do imaginário nacional — o sertão —, a esfera externa resplandece a técnica e a tecnologia que compõem as imagens e sons de Renascer, intrincados em gruas, steadicams e um valor de produção que se quer posicionar como inédito na televisão brasileira”.
Por fim, chego ao último parágrafo, aquele que encerra a tese e, também, este Projeto Renascer, que teve o objetivo de resumir e compartilhar, em linguagem mais cotidiana, o conteúdo da pesquisa acadêmica Renascer: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira:
“Em Renascer, a ideia de renascimento tem valor de continuidade, conservação. Preserva-se o imaginário construído sobre um determinado Brasil, assim como sobre a própria emissora, que, mesmo “ferida” (BORELLI; PRIOLLI; 2010), reafirma seus status perante (e adiante) às outras. Se por um lado o símbolo da Globo sintetiza as ideias de modernização da emissora sem fazer referências a signos locais (HAMBURGER, 2015, loc. 341), por outro, resguarda-se sob o arrojo da superfície cromada, um núcleo cordial; dissimulado em outras telenovelas, explícito e reverenciado em Renascer. Vislumbra-se, como em raras oportunidades, a conservação de um paradoxo: a modernidade superficial que serve ao encantamento nostálgico por um mundo de alma conservadora. Renascer se insere em meio ao fluxo das imagens eletrônicas para refletir sobre as paredes platinadas, essa modernidade paradoxal, porque é conservadora, enraizada numa tradição. Renascer explicita as negociações e débitos da moderna Vênus Platinada com a poeira remanescente — e impregnada — de um passado cordial.”
Referências bibliográficas:
BORELLI, Silvia Helena Simões; PRIOLLI, Gabriel. A Deusa ferida: porque a Rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência. São Paulo: Summus, 2010.
CRUZ, Álvaro André Zeini. “Renascer”: narrativa cordial e estilo maneirista na telenovela brasileira. 2018. 1 recurso online (287 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP.
HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1989.
ROWE, William; SCHELLING, Vivian. Memory and modernity: popular culture in Latin America. Londres: Verso, c1991.
SANTOS, Suzy. ESucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do coronelismo nas comunicações brasileiras. ECompós:Revista da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Comunicação, Brasília, vol. 7, p. 127, dez. 2006, dossiê temático Economia Política da Comunicação. Disponível em: <http://www.compos.org.br/seer/index.php/e- compos/article/view/104/103>
SCHELLING, Vivian. Through the kaleidoscope: the experience of modernity in Latin America. Londres: Verso, 2000.







