Projeto Crítica

O que é a crítica? Quem a faz? Ou melhor, quem pode fazê-la? (Eu posso?)

Essas e outras questões me instigavam em meados de 2010; na verdade, me assombravam desde que passara a me arriscar na crítica com mais frequência durante a graduação em Cinema e Vídeo. Escrever me era natural; às vezes, era também inevitável. Mas será que aqueles textos eram dignos de serem chamados de crítica, tal qual as que eu lia em revistas como a Contracampo, a Cinética e cia? Havia crise nos textos — e havia crise a partir dos filmes —, mas como validar essa escrita-risco em tempos em que eu deixava de engatinhar, quando, a meu ver, a crítica impunha um saber, uma sensibilidade fundamentada em tempo e repertório. Faço crítica?

Foi essa pergunta que me estimulou a escrever um projeto de pesquisa sobre o tema, submetido ao programa de Multimeios da Unicamp, em 2010. Mas como respondê-la? O caminho proposto era esmiuçar e buscar uma resposta na crítica que eu lia, essa que havia se estabelecido na internet no final dos anos 1990; mais precisamente entre 1997 e 1998, com o surgimento do Cinema em Cena e da Contracampo, respectivamente. Spoiler: não respondi à pergunta; aliás, saí com mais dúvidas do que quando me lancei na pesquisa, a partir de 2011. Mas continuei escrevendo (a crítica e a dissertação); de quebra, fiz uma breve historicização analítica de um recorte dessa crítica online, feita entre revistas, sites e blogs, entre ensaios com vestígios acadêmicos, jornalismo cultural e uma cinefilia diversificada.

A Crítica cinematográfica na internet é o título da dissertação que desenvolvi e defendi em 2013. Logo na introdução, aviso: a crítica não é um corpo exato, estanque, bem delineado, mas se alimenta justamente do contrário — da provocação, da diferença e, sobretudo, da dúvida e do enfrentamento. Críticas ao invés de Crítica; se há um diagnóstico no trabalho, é este, o plural. Críticas que, como lembram Cynthia Nogueira (2006) e Regina Gomes (2013), encontraram espaço de expressão independente no meio online, propício a “experiências partilhadas” (seja com públicos amplos ou específicos), sem as costumeiras restrições do impresso, como o tamanho do texto, a linguagem, ou mesmo a possibilidade de publicação.

Era um novo momento para a crítica brasileira (e mundial), já que, como aponta Rodrigo Carreiro (2009), a crítica virtual vivia um crescimento inversamente proporcional ao espaço dado a esse tipo de texto pelo jornalismo impresso. Carreiro, por sinal, via naquele momento duas tendências críticas majoritárias: uma feita por cinéfilos que não conseguiam transformar o ofício em profissão (mas não deixavam de escrever) e outra realizada por profissionais que já não encontravam mais o devido espaço “nos limites jornalísticos de tempo, espaço e orientação editorial (2009, p. 2). Entre esses dois vieses, encontro algo em comum: a recorrência de uma crítica que pressupõe que o leitor chegou ao texto depois de ver o filme. A pressuposição de uma crítica Pós-créditos.

É um pouco nesse sentido que retomo esse trabalho 11 anos depois de seu encerramento, consciente de que, agora, ele não está mais colado aos acontecimentos. O que, no entanto, não descompassa o panorama histórico traçado, nem várias questões levantadas, que continuam pertinentes. O Projeto Crítica nasce na esteira (e nos moldes) do Projeto Renascer, em que tentei sintetizar minha pesquisa de doutorado, colocando-a em linguagem mais acessível, menos acadêmica. A ideia, aqui, é voltar ao meu trabalho de mestrado nessa mesma toada, num passeio que privilegiará as revistas e fará um tour mais rápido pelos blogs. Em tempos em que o Letterbox recoloca a crítica em pauta, a pergunta deixada por Regina Gomes continua pertinente — “caiu na rede, é crítico?”. O objetivo não é responder essa ou outras questões levantadas (até porque, várias delas continuam me inquietando), mas apresentar a síntese de um mosaico crítico para que o leitor tire suas próprias conclusões.

Bem-vindos.

Referências bibliográficas:

CARREIRO, Rodrigo. História de uma crise: a crítica de cinema na esfera pública virtual. Contemporânea, n. , p.01-15, Dez. 2009.

GOMES, Regina. Caiu na rede, é crítico? Publicado em 19/03/2013. Disponível em: http://citricafunceb.wordpress.com/2013/03/19/caiu-na-rede-e-critico

NOGUEIRA, Cyntia. Cinefilia e crítica cinematográfica na internet: uma nova forma de cineclubismo? Estudos de Cinema e Audiovisual Socine, São Paulo, n. , p.157-163, 2006.

O post anterior apresentou algumas características e possibilidades da crítica na internet, e um recorte que privilegia uma crítica que, mais do que guia de consumo, tem como leitor ideal o espectador que já assistiu ao filme/série/novela etc. Costurando um discurso entre marcas retóricas e marcas contextuais (Gomes, 2006, 2010), essa crítica consolida no texto uma sensibilidade do crítico, que é oferecida ao diálogo (ou embate) com uma sensibilidade do leitor. Reparem que o artigo indefinido foi usado e repetido propositalmente, pois esse conjunto de sensibilidades e de experiências estéticas não são únicos ou estagnados; pelo contrário, são móveis, momentâneos e maleáveis — a experiência diante de um filme é viva, pode mudar com o tempo (na memória), nas revisões, às vezes, até durante a escrita do próprio texto!

A crítica, portanto, vive uma contradição: ela “congela” o olhar do crítico de determinado momento, tornando-se um registro duradouro e objetivo (ainda que se dê entre subjetividades), mas com prazo de validade. A crítica expira, mas permanece para inspirar outras crises a partir dessa disposição entre olhares, sendo o do crítico, desde o ponto final, um olhar passado.

Feito esse breve devaneio, passemos (objetivamente) às revistas compreendidas pelo trabalho. Apesar de, na cronologia, não ser a primeira, Contracampo abre o recorte analisado, pelo peso e influência que teve no desdobramento de outras publicações. Como, por exemplo, a Cinética, nascida de uma dissidência da Contracampo, e, por isso, analisada numa justaposição que propicia comparações. Cinequanon, Filmes Polvo, Paisá (na época, já Interlúdio) e Foco completam esse recorte de publicações que se apresentavam como revistas, escritas pela então chamada “nova crítica”.

Mas a pesquisa ultrapassa essa delimitação, até porque, embora tivessem diferenças evidentes, havia também muitas semelhanças entre as perspectivas críticas dessas revistas. Assim, a dissertação se debruça também sobre o decano Cinema em Cena, o Críticos.com, a Rua – Revista Universitária do Audiovisual (para onde escrevi na graduação e mestrado), além dos sites Omelete e Adoro Cinema, que, entre outros conteúdos, contém críticas mais direcionadas pelo jornalismo cultural. Ah, há também os blogs, mas isso é história para mais tarde.

Começaremos, portanto, pelas revistas, mais ou menos na ordem apresentada acima, sem perder de vista a veiculação online, que se apresentava sob o otimismo das possibilidades de democratização (algo que hoje, na era da mineração de dados e dos algoritmos controlados pelas big techs, soa como um passado meio Poliana). Algumas coisas, no entanto, já eram bem evidentes, como os efeitos do imediatismo sobre uma nova cinefilia; uma cinefilia sem deslocamentos, a não ser os dos cliques numa mesma tela. Nesse contexto, a mesma crítica que se livra das pressões editoriais do impresso, encontra questionamentos mais recorrentes, dos mais variados tipos (afinal, questionar ou atacar o crítico passava a ser coisa de um email ou comentário).

Inácio Araújo aponta bem essa contradição quando diz, em 2010, que “o que melhor se faz em crítica está na internet”, mas especula (noutra ocasião) que essa onda inédita de discordâncias dos leitores se deve ao fato de que “a crítica — como atitude diante do mundo — não é para consumidores, mas para cidadãos. E o mundo se desenha mais para consumidores do que para cidadãos” (2013). Esse é um ponto a se questionar quando se olha um texto crítico (ou proto-crítico, ou pretensamente crítico) nos dias de hoje: essa crítica se dirige a mim mais como consumidor ou mais como cidadão? Fazer essa pergunta talvez seja um exercício interessante, seja a propósito dos (poucos) artigos que persistem em jornais, seja nos tweet-reviews que transbordam pelo Letterbox. Inácio pontua sua constatação de maneira pessimista: “azar o nosso”.

Num cenário em que tudo é crítica mesmo se ser, este projeto espera provocar um estado de crise permanente, colocando o leitor de prontidão. Porque para ter um pouco mais de sorte nesse mundo de consumidores, é preciso estar de olhos abertos. E livres, como diria o “muso” da “nova crítica”, o cineasta e crítico Carlos Reichenbach.

eferências bibliográficas:

ARAÚJO, Inácio. Crítica, cidadãos, consumidores. Publicado em 01 abr. 2013.

ARAÚJO, Inácio. A crítica de cinema como parte da atividade cinematográfica. Publicada em julho de 2010. Entrevista concedida ao Jornal UFG.

CRUZ, Álvaro André Zeini. A crítica cinematográfica na internet. 2013. 228 p. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1621486.

GOMES, Regina. Crítica de cinema: história e influência sobre o leitor. Crítica Cultural, Tubarão, p.1-4, jul. 2006.

GOMES, Regina. A crítica de cinema nas revistas Veja e Bravo!: um estudo comparativo. Xi Estudos de Cinema e Audiovisual Socine, São Paulo, p. 329-341, 2010.