“The O.C” e a potencialização de John Hughes

Por Álvaro André Zeini Cruz

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(contém spoilers)

A presença do outsider é assídua nos filmes adolescentes escritos ou dirigidos por John Hughes: em A Garota de rosa shocking, Um alguém especial, Gatinhas e Gatões e Mulher nota mil, eles são os protagonistas marginalizados por um sistema tirânico e voraz que se alastra como erva daninha nesse locus chamado “escola”. Em Clube dos cinco, mais contundente crônica teen assinada por Hughes, tal presença é ainda mais significativa: o outsider é o catalisador que desconstrói os demais estereótipos — nerd, atleta, patricinha e freak — encarcerados naquele microcosmo, trazendo à tona o âmago daquelas superfícies.

Encerrando a sinopse contida no verso da box da terceira temporada de The O.C., a passagem de uma crítica do site popmatters.com pontua: “The O.C. pode ser comparado aos filmes de John Hughes, só que no século XXI”. A comparação, a princípio, pode parecer esdrúxula, afinal, embora a série criada por Josh Schwartz também se passe no universo adolescente, há uma nítida diferença de recorte: enquanto Hughes se debruçava sobre uma adolescência dos subúrbios de classe média e escolas públicas, a trama de Schwartz se passa num dos mais ricos condados da Califórnia. Entretanto, algo atravessa essas duas adolescências americanas — à primeira vista distantes — e as aproxima: a fundamentação sobre estereótipos e a figura do outsider como engrenagem essencial na problematização desse universo.

Ryan Atwood (Ben McKenzie, o comissário Gordon da série Gotham) é o forasteiro que aparece para desconstruir o mundo de aparências de Orange County. Sua composição é emblemática: regata branca, jeans surrado, jaqueta de couro e uma espécie de cordão rente ao pescoço; ou seja, apresenta uma série de marcas externas que o fazem reconhecível em seu estereótipo de bad boy desajustado. Após o furto malsucedido de um carro (crime liderado pelo irmão) e o abandono materno, Ryan acaba adotado por Sandy Cohen (Peter Gallagher), o defensor público que cuida de seu caso, o que o coloca em confronto com um novo way of life, representado pelos demais personagens: Kirsten (Kelly Rowan), a matriarca criada à imagem e semelhança da comunidade em que vive; Seth (Adam Brody), o nerd que, como sempre, é rechaçado por todos (e que é apaixonado por Summer — Rachel Bison —, a típica patricinha descerebrada); e Marissa (Mischa Barton), a princesinha mimada e problemática, filha do corrupto Jimmy Cooper (Tate Donovan) e de Julie Cooper (Melinda Clarke), encarnação do estereótipo da perua bitch.

A dinâmica de toda a primeira temporada se equilibra entre o melodrama e o cômico: Ryan e Marissa protagonizam as storylines melodramáticas (nas quais os demais personagens interagem como coadjuvantes); Seth e Summer, as cômicas; e Sandy e Kirsten oscilam entre as duas vertentes, geralmente em tramas próprias que ocupam uma parcela menor nos episódios. O tom da trama se aproxima, portanto, do dos filmes de Hughes, sobretudo Clube dos cinco e Um alguém especial. Contudo, como showrunner, Schwarts tem a compreensão básica e essencial de que, na narrativa seriada, o envolvimento se dá antes com o personagem do que com a trama em si. São eles (os personagens) quem fazem o público voltar à série semanalmente e, portanto, diferente das figuras do cinema clássico, que passam por um processo de mudança durante a trama, devem ser descamados, expondo suas facetas aos poucos, mantendo, claro, uma coerência. Ryan, o protagonista, obedece a essa regra ao longo da série; sempre que está perto de deixar de ser um outsider, a trama faz com que ele saia em defesa de Marissa, e tal movimento sempre rememora que Ryan é um corpo estranho naquele espaço. Tal qual em Clube dos Cinco, é o desajustado que vai desvelar desajustes mais sérios daquele universo.

Uma coleção de conflitos recorrentes nas séries teens aparece: triângulos amorosos (e amores não correspondidos), divórcios paternos, gravidez indesejada, overdose em Tijuana (okay, este é uma exclusividade da série); a questão em The O.C. não está nos plots, praticamente martelados de tão batidos, mas na potencialização de seus estereótipos e universo. Se Hughes partia da superfície através da caricatura adolescente dentro de um espaço mais cotidiano (a escola de subúrbio), Schwartz encampa a mesma premissa só que deslocada para um local em que as superfícies serão agigantadas. Tudo parte da caricatura rasa — dos personagens-moldes aos cenários com cara de Tok Stok e praia em chroma key ao fundo — para vir abaixo, episódio por episódio, após a chegada do outsider, até o fim da série, quando tudo desmorona literalmente.

A compreensão dos personagens como alicerce da narrativa seriada se perdeu e tornou-se um erro crucial na segunda e terceira temporada: para privilegiar os conflitos e a narrativa novelesca calcada em ganchos, Schwarts alterou a dinâmica entre  personagens/estereótipos, imergindo todos sob o peso de melodrama. O tom “hughesiano” extinguiu-se para retornar somente na quarta e derradeira temporada, quando o show já estava  advertido sobre o cancelamento, sobretudo após a má recepção da morte de Marissa, protagonista-problema interpretada, segundo a imprensa, por uma atriz-problema.

A demissão de Mischa Barton, no entanto, colaborou para o retorno da série à sua fórmula inicial: o fantasma de Marissa, por um lado, continuou puxando Ryan em direção ao seu molde original. Todavia, com a série se encaminhando para um desfecho, uma nova personagem (introduzida como recorrente na terceira temporada) agarrou a outra ponta da corda para iniciar um movimento do protagonista em direção à mudança: a destrambelhada Taylor Townsend (Autumm Reeser) não só encaminhou Ryan para seu desfecho como trouxe de volta à O.C. uma leveza que, a princípio, era propiciada pelos personagens de Brody e Bilson (algo que, em certa medida, havia se perdido).

No penúltimo episódio, um terremoto atinge Orange County e coloca abaixo a sofisticada (e plastificada) mansão dos Cohen — após quatro temporadas minando aquela comunidade de aparências, ela, enfim, vem abaixo. Como nos filmes de Hughes, a moral surge entre os escombros — por trás de um mundo de superfícies, há sempre uma verdade que precisa ser resgatada das profundezas. A família é esse valor readquirido ao longo da série e é ela quem sobrevive em meio aos destroços, algo que só ocorre porque suas conexões deixaram de ser de superficiais para se tornarem reais. Ao final, a mudança se faz necessária para que aquela comunidade-vitrine, agora estilhaçada, fique para trás. Vitrine porque sempre foi essa a relação de Ryan para com o lugar: em sua chegada, no episódio piloto, as praias paradisíacas, antes de serem filmadas num raccord de olhar, foram reflexos voláteis sobre o vidro do carro, no qual, do outro lado, estava Ryan, observando tudo como num aquário. No series finale, outro plano representativo: a subjetiva de Ryan pelo para-brisa traseiro do carro, vendo uma bela, triste e vazia Marissa Cooper sendo deixada para trás. A morte de Marissa pode não ter agradado aos fãs, mas passou longe da incoerência: seu destino foi semelhante ao de Orange County, espaço que, mais do que qualquer outro personagem, ela personificava. Já Ryan Atwood voltou para o mundo não mais sozinho, porque, tal qual nos filmes de Hughes, seu desajuste despertou uma verdade básica, mas essencial: no fundo, somos todos outsiders.

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ps: meu texto “Cinema e adolescência: a imagem como força vital”, sobre os filmes de John Hughes e Howard Deutch pode ser lido AQUI.

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